domingo, 31 de maio de 2015

Capítulo Setenta e Um

DO FALCÃO


Ernesto conversa com Theodoro na sala reservada no Clube dos Diários. Pedira o encontro mais cedo e o põe a par de rumores ouvidos de que os concorrentes estão agindo para impedir a entrada do grupo no mercado.
-- Estou sabendo, responde Theodoro.
-- Por que não me contou?
-- Não altera o curso das nossas ações.
-- Como não, se pode inviabilizar o negócio?
-- Não há capital para proibir a participação estrangeira. Por isso, cabeça fria.
-- Mas podem criar uma lei que faça o capital de fora ficar refém do local. Estão organizando um centro de estudos da indústria brasileira. Um bom local para formar opinião e pressionar o governo.
-- Isso não passa de outro clube de engenheiros.
-- Seja mais humilde, Theodoro. Quem me contou ouviu de Jorge Osório.
-- Só podia ser. Quer nos cutucar pra gente mostrar o jogo.
-- Que seja. Mas os principais estão pra chegar. O que irá apresentar?
-- Os ativos da concessão William. Quer mais do que isso?
-- Não cante a vitória antes da hora.
-- A compra é certa. Dinheiro na mesa, a produção e a distribuição da energia é nossa.
-- O que adianta se os entraves multiplicarem com uma lei nova?
-- Ficaremos nós com a concessão e eles com os entraves que criarem. Não será uma situação confortável para o governo.
-- Fico pasmo com você. Parece que gosta da pressão
-- Ganhar é bom, mas jogar também e nessa jogada nós é que daremos as cartas.
Ernesto vai embora, e Theodoro sai em seguida. Dirige-se à Casa Rosada com planos de ali plantar um espião para ampliar suas fontes de informações sobre os adversários econômicos.
Ninon se esquiva da proposta de Theodoro, com uma leveza que ainda encobre o incômodo dele mal chegar e já estar despindo-a do penhoar. Considera a impetuosidade sexual excitante. Porém, quando recorrente, causa-lhe enfado. No entanto, não pode se dar o luxo de ferir a suscetibilidades do amante da vez. Dá-lhe as costas para que abra o corpete usado sobre a combinação e engabela seus intentos investigatórios.
-- Bijoux não tem primores para essa missão.
-- Nada que uma boa orientação e uns réis a mais não resolvam. Quero saber o que está preocupando Jorge Osório e o que grupo dele pensa em fazer.
-- Qual a razão, se conhece todos os passos possíveis a serem dados?
Pelo cadarço do corpete, puxa-a para junto de si.
-- Hei, está se recusando a me ajudar?
-- Jamais. Temo lhe prejudicar com informes de quem só sabe dizer ai! Ui! Oh!
-- Hun! – zomba e retoma a operação de liberar a peça de roupa.
-- Além do mais, não me parece que Jorge Osório seja dado a confidências.
-- Bom, se Bijoux não tem o poder para tanto, delego então a missão para você.
Ninon se sente encalacrada. Theodoro a despe e a veste com o seu casaco. Deita de costas e a chama.
-- Vem, monte-me.
No dia seguinte, Ninon manda Bijoux passar um tempo fora da cidade. Da confidencialidade do que é dito ali, entre lençóis, dependem os lucros da Casa Rosada. Disposta a enfrentar a ameaça da concorrente Louise com outras armas, concentra-se em Theodoro: como lhe dar a sensação de que é você quem vai embora, meu falcão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Capítulo Setenta



DIFICULDADES INESPERADAS


A tipografia fornecedora do Comércio do Brasil avisa Varela que não pode mais imprimir o diário por falta de condições operacionais. Após negociação, acorda-se a impressão por alguns dias a mais e inicia-se a procura de outro fornecedor. Ouro Preto usa seus relacionamentos e fecha o serviço com a tipografia de um diário opositor do governo. Novas adversidades os atingem, dessa vez a partir da distribuição do jornal. Exemplares encalham e as vendas caem. O grupo suspeita do governo como a causa provável das dificuldades. Fabrício acha a perspectiva plausível.
-- Conversaram com nossos apoiadores, por que não tramariam nos bastidores?
-- Vamos denunciar, sugere Lima.
-- Melhor ignorar e acompanhar de perto a distribuição, propõe Herculano.
-- Além de montar logo a nossa tipografia, acrescenta Agostinho.
-- Com máquinas usadas, adverte Morais, porque novas, além do tempo para importar, podemos enfrentar demoras urdidas por eles.
-- Não temos fundos, revela Varela. O que entrou usamos para pagar a operação e ainda não recebemos todo o dinheiro das assinaturas.
-- Fechar a porta é que não podemos, reage Agostinho.
-- Falarei com os apoiadores. Tenho certeza de que nos ajudarão a sanar essa dificuldade, declara Fabricio.
Brito indaga sobre o comandante da operação.
-- Não é tempo de Sodré estar conosco?
-- Tem de ser poupado, responde Lima. Alias, informo que já tenho um secreta nos meus calcanhares.
-- Que gastem a sola do sapato. Não nos intimidarão, diz Varela.

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Capítulo Sessenta e Nove

O COMÉRCIO DO BRASIL


Theodoro passou o fim de semana nos braços de Ninon. Só pela manhã tomou conhecimento do lançamento do Comércio do Brasil e acaba de receber em seu gabinete, o chefe de polícia.
-- Ia ao seu encontro.
-- Antecipei-me e creio que pelo mesmo motivo.
-- Explosiva a publicação, diz mostrando o jornal.
-- Tanto que peço licença para, em casos como esse, incomodá-lo onde estiver quando se ausentar de vossa residência.
Theodoro desconfia de que Silva Castro esteja ciente de qual foi o seu paradeiro nos últimos dias. Ignora o fato e o pedido.
-- Quando soube do jornal?
-- Na madrugada de domingo, mas isso aqui, na manhã de sábado, fala e lhe estende uma folha.
Theodoro lê uma carta de Leopoldino a Varela. Fica ciente da satisfação do remetente em informar que a causa da regeneração da República se propaga pelo país afora com novas adesões. Passa os olhos pela lista dos novos correligionários que se comprometeram em vender assinaturas do jornal e pergunta o que depreendeu de ter acessado o conteúdo:
-- Imagino que redobrou sua atenção no Correio e Telégrafos.
-- Exatamente como combinamos.
-- O que pensa fazer agora?
-- A carta original será entregue hoje ao deputado e a cópia para o ministro.
-- Acautele-se. Seabra informará o presidente e ambos ficarão precavidos com seus métodos de trabalho.
-- Com os nossos!
-- Claro que sim, mas é você que quer pô-los a par.
-- Entenderão a nossa intenção em não sobrecarregá-los fora de hora.
-- Aconselho-o a transformar o conteúdo em conjecturas. São compatíveis com a sua mente arguta e se se beneficiará com esse procedimento. 
-- Porém a carta é a prova.  
-- Brás Lopes está na lista e escreveu no jornal. Tem o que precisa.
-- Mas não pego Leopoldino.
-- Pense bem na adequação de denunciar gente do relacionamento de um superior. Irá deixá-lo sem espaço para manobrar a situação conforme a conveniência dele. O desconforto pode se voltar contra você.
-- Não está preocupado com a segurança nacional?
-- Preocupadíssimo. Mas graças a sua eficiência já sabemos quem sustenta os insurretos. E a situação se configura como uma briga de família. Tem de ser resolvida de outro jeito. O presidente ouvirá pela voz do ministro suas suspeitas e saberá como agir. Enquanto você terá cumprido seu papel da melhor forma e sem se expor.
Theodoro vence a peleja. Acompanha o chefe de polícia até a porta e se dirige ao gabinete presidencial para encarar de vez as consequências de não ter evitado aquela publicação. Na antessala, cruza com o ministro da guerra, que acabara de sair de uma reunião com Rodrigues Alves. Logo mais, está sentado diante do presidente. As edições do Comércio do Brasil se exibem sobre a mesa.
-- Sinto pela publicação: escapou por completo ao meu controle.
-- Conter a oposição é colher água com a mão. Cuide para que esse jornal não puxe para baixo vossa eficiência.
-- Cuidarei. E garanto ao senhor: o projeto da vacina será reapresentado em breve e agirei para acalmar os ânimos da redação do Comércio do Brasil.
-- Ótimo. Se procurado pela imprensa, não dê importância ao apelo de intervenção armada. Bata na tecla de que o contraste de opiniões faz parte da democracia.
-- Há a perspectiva de aplicarmos a lei caso continuem a instigar a sedição?
-- Apenas em última instância que não ocorrerá. Vamos trabalhar para chamar a razão dos nossos conhecidos.
-- Perfeitamente.
-- Irei ver quem pode ombrear com o senhor esses esforços e volto a lhe falar para evitarmos as cabeçadas de tarefas duplas.
-- Sim, senhor.
-- Faz-se necessário.


Após a reunião com o presidente, Theodoro instrui BV.
-- Descubra quem é o proprietário do imóvel, se usam tipografia própria ou alheia, quem fornece tinta, papel, como distribuem o jornal e para que cidades. Levante também com que banco trabalham e me descubra quem é Apolônio Cidadão. Quero um relatório completo. Bote o Coelho para te ajudar .
-- Sim, senhor. Os gastos correm como de costume?
-- Exato. Onde está Vivaldino?
-- Na viração.
-- Quero-o dentro da redação. A prioridade lá é esse tal de Apolônio Cidadão.
-- Pode deixar. Quanto a Vivaldino, ele tem jeito para contínuo e expediente para pedir a vaga, mas sem um empurrão não consegue entrar.
-- Vou arrumar uma carta de recomendação, diz e libera BV, cismado com o desconhecido jornalista. Quem é esse sujeito?

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segunda-feira, 25 de maio de 2015

Capítulo Sessenta e Oito

DA RELIGIÃO DA PÁTRIA



-- Extra. Extra. Há giornale nuovo no paidze.
-- Chegou o Cumércio do Brasil.
-- Tutti mundo unido pela moralisazzione da república do Brasile.
Os pregões dos meninos jornaleiros soam melodiosos para Herculano. Como os demais companheiros, amanheceu na rua para acompanhar a distribuição da primeira edição do Comércio do Brasil. A manchete conclama o Exército a intervir nos desmandos do país. A satisfação reluz sobre as marcas de cansaço no seu rosto.
Separa alguns exemplares para distribuir aos operários. Ao contrário do recomendado por Brito, manteve a agenda com o grupo. O número de participantes tem decrescido. A impossibilidade de atender às expectativas de amparo material responde pelas evasões. No entanto, Herculano aposta que os artigos do jornal mostrem ao grupo que não estão sozinhos na luta por um governo melhor. Inclusive em seu artigo de estreia, assinado com o pseudônimo de Apolônio Cidadão, defendeu muitos pontos de interesse deles, como a redução da jornada de trabalho, o descanso remunerado e a instrução para o trabalho. Crê que esse e outros conteúdos gerem entusiasmo e favoreçam a retenção dos participantes. Imbuído dessa convicção, toma o bonde levando os exemplares do jornal.
Pouco a pouco, a Capital Federal se inteira do lançamento do Comércio do Brasil. Entre reações positivas e negativas, leitores assimilam o teor combativo do jornal, que dedica espaço a promoção do primeiro de maio como o Dia Internacional do Trabalho. A promoção ocorre também em outras gazetas. Jornalistas discorrem sobre as precárias condições de vida dos operários. Outros analisam os riscos de que incitadores, com o predomínio de imigrantes, insuflem a desarmonia entre os patrões e os empregados.
Euclides da Cunha assina o artigo Um Velho Problema num jornal da cidade de São Paulo. Aborda o mundo do trabalho à luz dos conceitos de Karl Marx. Diz que esse falecido pensador alemão demonstrou de modo claro e científico que a fortuna dos capitalistas resulta da espoliação de grande parte da riqueza produzida pelos trabalhadores. Enfatiza que essa espoliação só cessará quando houver a socialização dos meios de produção. Prevê resistência dos patrões às reformas destinadas a pôr fim à exploração do trabalho alheio e, por decorrência, catástrofes sociais. Porém, crê em modos de evitá-las: basta que haja a expansão da consciência dos explorados e que eles cruzem os braços. Afirma que esse método triunfará e que as leis positivas da sociedade criarão o reinado tranquilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração.
Herculano não gosta do artigo e se preocupa com as ideias do amigo.
Barreto também se dedica a refletir sobre a exploração humana. À mesa do simplório quarto, ele se expressa na voz de um personagem do romance que escreve: “Pois o senhor acha justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer viver famílias inteiras? O senhor não vê que a pátria não é mais do que a exploração de uma minoria, ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração, e que domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela? O público ainda não entrou nos mistérios da religião da Pátria... Ah, quando ele entrar!”.

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Capítulo Sessenta e Sete

INSEGURANÇAS AMPLIADAS


O grupo conspirador se reúne na Casa de Agostinho. Varela traz boas notícias de São Paulo. Está de posse do dinheiro prometido pelos apoiadores e, em breve, um portador trará a lista dos potenciais assinantes do jornal. 
Fabrício toma a palavra e informa que a viagem de Varela também ensejou entendimentos diretos entre Sodré e os nossos apoiadores.
-- Sodré será o nosso comandante
Palmas são dadas, inclusive por Herculano e Brito. Lima faz um aparte.
-- Para preservar o guião, ele só estará conosco em momento oportuno. Muita água irá rolar por debaixo dessa ponte. Sendo assim, não tem porque haver precipitação.
-- Concordo. Todo cuidado é pouco, opina Agostinho.
Herculano entende que Lima participou desse acordo. Caso contrário, não faria o esclarecimento. Fabrício volta a falar.
-- Outro entendimento diz respeito à natureza do nosso futuro governo. Se houver a aprovação de mais leis arbitrárias, o Congresso Nacional será fechado.
-- Dissolvido, corrige Lima. O acordo prevê a chamada de novas eleições tão logo tenham se realizado as reformas de interesse nacional.
Herculano sente o olhar de Brito sobre si e o ignora. Receia que alguém perceba o entreolhar e suspeite de discordância com o informado por Lima.  
-- A orientação é acelerarmos o lançamento do jornal. Varela nos atualizará acerca dos procedimentos cabíveis, diz Fabrício.
Durante a exposição, o grupo discute sobre colaboradores possíveis do jornal. O nome do Visconde de Ouro Preto é ventilado e Herculano se oferece para assinar uma coluna diária. O oferecimento é aceito com a recomendação de usar um pseudônimo para preservá-lo de reações persecutórias na Escola.
Terminada a reunião, Herculano e Brito caminham para pegar o bonde. Ambos estão surpresos com a confirmação do envolvimento de Ouro Preto e preocupados com os termos políticos pactuados. Brito conjectura.
-- Será que o consenso foi apenas para evitar distensões antes da hora?
-- Se sim, nada impede que os apoiadores estejam se valendo de Sodré para unir as forças possíveis. Depois dão o xeque-mate e põem outro no lugar dele.
-- Podem também querer usar o jornal apenas para pressionar o governo por causa de algum interesse não atendido. Uma vez obtido o que querem, abandonam o levante.
-- Tem esse risco.
-- Lorota dizer que o futuro do Congresso será decidido com base na atuação parlamentar. Desse mato nunca saiu coelho, por que sairá agora?
-- Pode haver surpresa.
-- Assusta-me a sua confiança nesse balaio de gatos.
-- Confio na oportunidade, não neles.
-- Não sente o ranço da mesmice?
-- Talvez. Mas percebi empenho para reprovar os projetos de lei do governo. Por isso os cenários. Sodré irá trabalhar com mais afinco nos bastidores do Congresso.
-- São pequenas as chances. Até agora a oposição não conseguiu fazer maioria.
-- Mas a pressão das ruas pode ajudá-los.
-- Em todos os casos, melhor adiarmos o convencimento dos alunos, até ter certeza do que vem pela frente.
-- Tenho feito isso.
-- Faça também com os operários. Adie o início dos tais encontros.  
Em noite de inseguranças ampliadas, Herculano deixa o colega desabafar.

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quinta-feira, 21 de maio de 2015

Capítulo Sessenta e Seis

QUE DIOS LOS ACOMPANHE


Abreu Vaz pensa, repensa, refaz perguntas e chega às mesmas conclusões: se é para gastar, há de se gastar direito. Posso hospedá-la num hotel. Se tudo der certo, se for moça honesta, mais pra frente, eu arrumo uma casinha pra nós. Deu-me a vida plena de volta. Vale esse mimo. Ademais trabalho tanto para quê? Tenho as prerrogativas da minha natureza e novamente sou homem com H. Ó meu piteuzinho! Não vivo mais sem você. E quem não tem uma amante nos dias atuais? Isso não é um mal à família. Apenas a extravagância de um cavalheiro. Carlota precisa espairecer. Passar uma temporada com Angélica! Depois desfrutar da companhia de Amarílis. E, na ida e na volta, se hospeda com Violeta. As duas se dão tão bem. Sempre senti as meninas terem ido morar longe, e nunca pensei no bem que essas viagens fariam a Carlota. Fora que toda mãe precisa estar próxima das filhas e acompanhar de perto a educação dos netos. No Natal todos vêm pra cá e a família celebra as festas unida e feliz. Assim será, porque morrerei em vida se perder o meu elixir.
Tudo bem pensado, Abreu Vaz parte em direção à Casa Rosada.
Ao ouvir a grande notícia, Mariinha o abraça.
-- Ó ioiô, isso é bom demais.
-- Mas terá de ser como eu mandar.
-- Pode ser diferente?
-- Vá arrumar suas coisas, então.
-- Tá tudo pronto, só falta falar com a senhora.
-- Já acertei com Ninon o que precisava acertar.
-- Não falo disso, mas do certo que todo homem tem de fazer.
-- O que quer agora, menina?
-- Pede minha mão pra senhora. Sou moça séria e o senhor não pode pedir minha mão pro meu pai de criação. Quero sair daqui direito. Faz mais esse agrado por mim, que todo dia farei um pra ti.
Mariinha e o magistrado saem da Casa Rosada, com a benção de Ninon. Soledad fecha a porta e caminha para os seus afazeres.
-- Tontita? Yo quien soy! Que Dios los acompanhe!

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Capítulo Sessenta e Cinco

A CAÇA CAIU NA ARMADILHA


Desde que soube da notícia da gravidez de Catarina, Theodoro luta contra as desconfianças de não saber até onde a mulher foi para realizar o desejo de terem um filho. Julga suas desconfianças estúpidas, conservadoras, ainda mais que o banho de mar se mostrou terapêutico.
Algo mais o estorva ao coche que o leva para casa ao final de um dia de agenda cheia. Após assinar a esperada participação acionária, decidiu celebrar o feito no Clube dos Diários. Entre amigos, soube que Ninon está de partida para a Europa rumo ao encontro de um antigo amante. O sangue esquentou. Não se conformou com a notícia nem com a zombaria que se seguiu de não ter conhecido as crepitações na cama dela. E nesse instante, no coche, não se conforma com a própria irritação se vive a satisfação de triunfos mais significativos. Escarnece da cortesã, em pensamentos, e imagina o amante dela como um decrépito de ganso muxibento que a tomará para ser sua bengala. Que vá, farão um mútuo bem: o braço de um apoiará o outro a andar. Tenho a puta que quiser que faz o que quero e sem falar.
Porém, o escárnio tem efeito contrário. Como as modernas escavadeiras alemãs, usadas nas obras da Avenida Central, abocanha e remove as empedradas emoções: de fome da posse negada, de humilhação com as zombarias de ter sido preterido por um estrangeiro. Decide transformar a derrota em vitória. Na primeira hora do dia seguinte, envia para a cortesã uma mensagem: pode me receber hoje à noite?
Feliz em perceber que a caça caiu na armadilha, Ninon responde o bilhete: venha jantar comigo. Em seguida, prepara a grande entrega. Dedica a si o mais caprichado cuidado, providencia para que a aprimorada arrumação dos seus aposentos evoque a viagem; monta o cardápio da ceia, escolhe bebidas e, quando tudo está organizado, imprime o seu toque pessoal ao cenário da trama.
Soledad introduz Theodoro na sala contígua à alcova de Ninon, repleta de bagagens, e sai. Transcorrem minutos de tensa esgrima mental com as malas.
A belíssima surge.
-- Que alegria revê-lo, diz.
Caminham em direção um do outro. Ninon estende a mão para Theodoro, que a toma, bem como enlaça a cintura dela e a traz para junto do seu corpo.
-- Ui!
A exclamação feminina é abafada com um beijo na boca. Durante um átimo, os lábios dela não se ajustam aos dele. Não por rejeição, mas, sim, por surpresa com tamanha voluptuosidade. Contudo, descortinada a percepção de que aquele beijo entrará para o rol dos bons, espraiada para as mais íntimas partes a sensação prazerosa da boca, passada a surpresa inicial, os lábios se coadunam em comum voracidade. Theodoro começa a despi-la, a mostrar a que veio e como será a ordem da programação. Tudo bem entendido, o casal se consome até a exaustação, sem nenhum dos dois mencionar a pretensa viagem nem a longa corte, que retardou o deleite vivido.
Quando Ninon acorda, o leito está vazio. Sorri para a marca da cabeça no travesseiro ao lado, para o repuxo do lençol, para a constatação de que se Theodoro a tivesse agarrado há mais tempo com a mesma ousadia da véspera, com certeza, teria sido tão bem-sucedido como foi na noite anterior. Mas quis o destino que a coroa de louros fosse lhe dada no momento mais conveniente para si mesma. Inevitável não pensar na duração desse reinado: uma estação, duas, três, quantas? À tarde, recebe flores com o cartão: estarei com você logo mais. Theodoro retorna e não encontra na antessala nenhuma caixa de chapéu e menos ainda baús de viagem.
  
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Capítulo Sessenta e Quatro

AS BADALADAS DO CARRILHÃO CELESTIAL


Mariinha está diante de Abreu Vaz, num quarto da Casa Rosada. Sua camisola é branca e o cabelo está solto. O magistrado, por sua vez, sentado numa poltrona, apoia as mãos apoiadas numa bengala. Elegante, ostenta num mindinho um anel de rubi e se esforça para seguir os conselhos de Ninon de silenciar suas preocupações. Mariinha também recebeu incisivas recomendações, sobretudo com relação a não pôr a carroça na frente dos bois para conquistar a proteção aspirada. Repetida até no último instante, a recomendação gerou insegurança, e, embora simpatizada com a figura do magistrado, que acha ter cara de protetor, titubeia sem saber como iniciar o que lhe cabe fazer. Embaraçado numa hesitação parecida, o juiz procura se tranquilizar, acalmando-a. He carries the fashionable Homburg hat , 1907, painting by Anders Zorn , 1907
-- Não tema, senhorita, serei muito respeitador e gentil.
Como um vento, a declaração dissolve o encabulamento de Mariinha, que, com mãos lépidas e ar faceiro, pressiona as faces do magistrado.
-- O senhor é tudo o que eu sempre sonhei!
Em olhos febris, boca em bico pela pressão das bochechas comprimidas, o rendido rosto expressa o pavor do fracasso sexual misturado ao desejo suplicante de atendimento. Durante esses instantes, Abreu Vaz vê as mãos libertarem seu rosto, lançarem a bengala ao lado e entrelaçarem-se ao redor do seu pescoço. Sente a jovial carne roçar por entre suas pernas. Seu baixo ventre se contrai e o formigamento se dissipa pelas entranhas afora. Relampeia a percepção de que um milagre pode ocorrer e ele não se contém: enlaça a milagrosa pela cintura com o fervor de um penitente ungido pela misericórdia divina. Mariinha o acolhe num carinhoso abraço.
-- Como sou feliz do senhor me querer.
Os seios tenros a almofadar a face... O sexo ansiado a pressionar o ventre... O calor! A fragrância! A maciez da carne... Tudo embebeda Abreu Vaz e lhe dá certezas de que encontrou o elixir da sua masculinidade. Num súbito sôfrego, ergue a barra da camisola e Mariinha reage em estimulante aprovação.
-- Ahhh, ioiô! Ai!
O magistrado arrepia-se de prazer ao tocar a pele nua.
-- Oh meu pitéu, meu piteuzinho!
A jovem apoia uma perna dobrada sobre a dele e o desbravamento avança: da cabeça aos pés, o juiz estremece ao espalmar as nádegas que meneiam ao sabor do afago. Outros estremecimentos ocorrem quando alisa a densa pelugem. A moça adora ao sentir os dedos abrirem as pétalas da sua preciosidade e deslizarem para dentro.
O magistrado geme. Mariinha também. E a ressureição da carne evolui. Frenético, Abreu Vaz abocanha um seio coberto, depois o outro, em seguida os tira para fora do decote e divide a avidez de tê-los em sua boca.
-- Ah! Oh! Ui, Ioiô, o senhor é demais!
Batimentos cardíacos acelerados, olhar vidrado, Abreu Vaz se declara.
-- Nunca, nunca, conheci alguém como a senhorita.
-- E eu que há tanto espero pelo senhor!
Mariinha afaga o rosto arrebatado enquanto contorna a poltrona. Atrás do encosto, deixa cair a parte de cima da camisola e, com a ponta do nariz, roça a nesga de pescoço deixada à mostra pelo hirto colarinho.
-- Hun, que cheiro bom! 
Prossegue as carícias. Resvala os seios no pescoço do magistrado, lambe suas orelhas, enquanto a cabeça de Abreu Vaz pendula de um lado para outro, meio tombada para frente, e o pênis treme em arrebites, como um zanga-burrinho esguelhado e sem força para baixar por completo a vertente oposta. De estímulo em estímulo, tátil e verbal – vamos ficar folgadinhos –, Marinha retira o casaco, o colete, a gravata e o colarinho de Abreu Vaz, a essa altura um todo de brancura corada que diz sim, sim, sim, a cada pedido para ser despido. Como um balão, seu rosto parece aumentar quando a jovem se põe na frente dele, desfivela o cinto da calça e o tira num puxão. A visão dos seios nus exige a nudez completa – e Abreu Vaz a despe, atabalhoadamente. Devora de alto abaixo o corpo curvilíneo e fixa no tosão da vulva.
-- Gosta meu ioiô?
-- Oh, e como!
Em dedos febris, Abreu Vaz desabotoa a braguilha... Mariinha se vira para trás e põe o cinto sobre uma mesa baixa.
Os volumosos montes rebitados, o alucinante regaço, cada milímetro da sustância contemplada endoidece e tortura Abreu Vaz.
-- Você é minha, minha e de mais ninguém, diz ainda estatelado na cadeira.
Mariinha vira o rosto e avista a rósea cabeça do pênis à mão febril.
-- Que peixão, ioiô! Num quer brincar com ele aqui? 
Lança o convite e rebola os quadris... De pronto o magistrado se ergue, esbaforido – a calça cai. Agarra uma anca e com a outra mão força o peixão a penetrar por entre os montes. Sem êxito, lança-se de joelhos no chão e afunda o rosto nas nádegas e as beija e as separa e as lambe e suga o que quis penetrar.
-- Oh, Ioiô! É bom... É bom... É bom demais, exclama Mariinha.
Arrebita mais a nádega, agora com os braços cruzados sobre a mesa.
-- Toma pra ti, ioiô, que é tudo do senhor.
O magistrado se lambuza de mais prazer.
Ocorrem outros sucessivos ohs! ahs! uis!
-- Morrerei sem você, diz com a respiração entrecortada.
-- Morre, não! Sou toda tua. Bom... – diz e se vira. Com ar dengoso, continua a falar: -- Guardei minha preciosidade só pro senhor.
-- Ó, meu anjo, responde o magistrado ajoelhado, pênis semirrígido para fora da ceroula branca comprida e a calça arregaçada até os tornozelos.
-- Cuidará bem de mim depois?
-- Cuidarei, meu piteuzinho.
-- Palavra de doutor?
-- Sim, meu elixir. 
Mariinha suspira! Sem tirar os olhos dele e com uma expressão iluminada por convidativas safadices, deita-se de costas e escorrega o ventre um tanto para fora da mesa, com as pernas separadas.
O deslumbre luz no rosto de Abreu Vaz, que admira os lábios vaginais, como se andasse num ir-e-vir por entre eles.
-- És um vulcão, menina.
-- Vem! Aguardo o senhor desde que nasci.
Tomado pelo frenesi, o magistrado esfrega a cabeça do pênis ao longo do úmido e escorregadio solo. O peixão ganha potência e penetra o sorvedouro, em êxtase. “Consegui” pensa. Logo mais, goza. Chega ouvir as badaladas do carrilhão celestial. 
Na manhã seguinte, Mariinha a ostentar o anel de rubi do juiz. Renascido em vida, Abreu Vaz regressa no fim do dia, para rever sua fantástica menina. Felicíssima de vê-lo de volta, Mariinha se esmera nas brincadeiras com o peixão dessa vez na cama. De novo, o carrilhão badala em júbilo.
-- Menina, você é demais.
-- O senhor que é e para tristeza minha.
-- Ora por que diz isso?
-- Porque quero ser só do senhor.
-- E é. Já falei com Ninon. Você é minha e de mais ninguém.
-- Mas aqui?
-- Sim terá um quarto só pra ti e pro seu ioiô.
-- Não é a mesma coisa.
-- Que coisa?
-- Não sou mulher da vida – só uma moça que por precisão veio para cá e, de tanto rezar pela salvação, teve a graça de encontrar o senhor.
-- Aonde quer chegar com essa estória?
-- Quero que me tire desta vida e monte casa comigo.
-- Que caraminhola é essa?
-- Não vai gastar para eu ser só tua? Gaste bem com uma casinha só pra nós.
-- Não posso!
-- Por que não?
-- Mal nos conhecemos.
-- E já somos tão felizes.
-- Mas leva-se tempo para tomar uma decisão como essa.
-- O peixão aí não precisou desse tempo todo para saber o que quer.
-- Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
-- Se é assim, nunca mais me verá.
Num pulo, Mariinha se levanta da cama e veste a camisola.
-- Não me ameace, nem se atreva a fazer isso.
-- Se não voltar em cinco dias com uma decisão, fugirei e vou buscar um homem corajoso para ser o meu protetor.
-- Não posso ter uma teúda e manteúda. Sou casado, um magistrado, um juiz.
-- Problema do senhor, porque eu serei de um que pode.
Nu, perplexo, sentado na cama, o magistrado vê Mariinha sair.
-- Ó, meu Deus, o que faço? Não vivo mais sem essa diabinha.
  
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segunda-feira, 18 de maio de 2015

Capítulo Sessenta e Três

DE AMBIÇÃO ASSUMIDA


As portas dos camarotes do Theatro Lyrico se abrem e Herculano sai, em companhia de Páscoa. Avista Agostinho e Morais com Varela, que não havia sido localizado até o primeiro intervalo. A expressão grave dos colegas lhe sugere a ocorrência de algo relacionado aos demais companheiros ausentes. Inclusive Sodré, o esperado da noite não compareceu. Dividido entre o desejo de se unir aos colegas e a necessidade de acompanhar a esposa, autoriza que ela faça sozinha o percurso até o toalete. Brito se aproxima, o grupo recua para a sacada, fechando atrás a porta. Isolam-se do saguão. Varela estende para Herculano uma carta. Com Brito, reacomoda-se sob a luz tênue do lampião da sacada.
Excelentíssimo Senhor Deputado Dr. Alfredo Varela,
Temos entre amigos conversado sobre a ajuda para a publicação do jornal destinado a propagandear a purificação da República. De imediato, podemos apoiar com uma quantia para imprimir, em tipografia alheia, os primeiros números do periódico que remeterá as pessoas cujos nomes eu enviarei numa relação de cerca de dois mil assinantes prováveis. Logo após o terceiro número, peço que envie um cobrador. Empenharemos para que haja o pagamento das assinaturas, o que estimo totalizar cerca de vinte contos de réis, com os quais montará a tipografia. Para maior probabilidade de êxito no pagamento adiantado, recomendo facultar assinaturas trimestrais, semestrais e anuais. Com relação a sua atitude, tão digna nos tempos infamíssimos de hoje, asseguro que é quase unânime neste Estado, e na grande família monarquista, à exceção de poucos mal orientados, a disposição em dar-lhe franco apoio na propaganda para guerrear as oligarquias e salvar o país. Até que a moral se restabeleça nas práticas administrativas, parece-me que o objetivo comum deve ser a implantação da Ditadura Republicana. Se esse também for o seu parecer e se aprovar os alvitres expostos por mim de como publicar o jornal tão ansiado pelos amigos daqui, peço responder-me com urgência a fim de abreviar a remessa da lista que, por ser muito numerosa, dá trabalho de alguns dias para ser feita.
Aceite minhas estimas e saudações,
Leopoldino M. de Andrade.
Da leitura, Herculano depreende que Varela é tanto o articulador intelectual do movimento, como o elo com os monarquistas. Mas é ansioso, pondera, reduzindo com este atributo receios quanto o potencial de ameaça que o político possa ter em seus interesses no levante. Finge que relê a carta novamente. Com isso se dá tempo para saber com agir com relação ao inesperado objetivo comum aventado por Leopoldino. A precipitação de Brito o favorece. 
-- O que esse senhor entende por ditadura republicana?
-- Ora, o fechamento do Congresso, responde Varela.
-- Não está escrito isso aqui.
-- Mas desde a Roma antiga é esse o entendimento, fala Agostinho.
-- Sei disso, mas é bom que esses senhores também elucidem isso.
Herculano observa impaciência nos demais ao som do primeiro sinal para o início do terceiro ato. Indaga uma preocupação.
-- Imagino que Sodré esteja ciente do teor da carta.
-- Deixei-o conversando com Lima e Fabrício sobre os termos, responde Varela.
-- Quer amadurecer a questão, o que é normal, acrescenta Agostinho.
Sodré não gostou dos termos, infere Herculano. Permanece quieto, numa tentativa de levar os demais a falar. Exatamente o que acontece na voz de Varela.
-- Penso em ir para São Paulo e fechar um acordo inicial. O que acha?
-- Sodré sabe disso?
-- A interlocução ainda está comigo e precisamos do jornal.
-- Recomendo que o ouça.
-- É só para pôr a procissão na rua, não para definir a ladainha, justifica Morais.
-- O conteúdo da carta é claro: pede concordância com a reza.
-- Pactos se ajustam, retruca Agostinho, e a princípio é o que você sempre quis.
-- Sim, como um pensador, não como um seguidor norteado pela visão de quem de direito. A precipitação pode atrapalhar a nomeação do comando aspirado e é melhor que todos se lembrem de que somos os comandados.
O argumento gera hesitação. Varela se desgarra do impasse.
-- Temos de correr riscos. Se decidirmos já, consigo pegar o noturno e amanhã posso chegar a um bom termo com Leopoldino, sem desperdiçar tempo.
-- Eu voto na sua ida, fala Morais. Ergue o antebraço e pergunta: -- Quem mais?
Vacilante, Brito endossa o gesto e fita Herculano de braço abaixado. O único. O descompasso parece gritar e causa mal-estar nos demais. De novo, Varela passa por cima do percalço.
-- Só falta decidirmos quem falará com Sodré sobre a nossa decisão.
Agostinho se prontifica, Morais também. Ao som do segundo sinal, retiram-se em companhia de Varela. Brito, confuso com a reação de Herculano, indaga-o.
-- Por que votou contra?
-- Expus as minhas razões.
-- A troco de quê, se podemos confirmar o terreno que pisamos?
-- A recíproca também é verdadeira.
-- Não pensei por esse lado. Crê que Sodré concordará com os termos?
-- No passado foi contra quem ousou conter a indisciplina parlamentar.
-- Porém, essa é a chance de ter a presidência perdida para Campos Salles.
-- Razoável supor algum pudor.
-- Se houver mudanças dos termos, caímos fora.
-- As coisas não são tão simples assim.
-- O contrário são oportunismos.
-- Próprio das guerras.
-- Não é o caso. Nem questão de tampar o sol com a peneira.  
-- Sei disso.
Toca o terceiro sinal.  Brito pensa na esposa e na sogra à sua espera no camarote.
-- Vamos entrar?
-- Ficarei um pouco mais.
-- A gente se vê depois.
-- É bom ter você junto.
-- Em frente – até onde der.
Sozinho, Herculano mira a paisagem noturna, em porte alteado pela satisfação. Ao votar contra a sua aspiração, crê que reforçou o conhecimento alheio acerca da sua obediência à hierarquia. Preferiu o risco da divergência falsa ao perigo da convergência verdadeira. Essa só frisaria suas crenças e o enfraqueceria no caso dos termos propostos virem a ser repactuados. Venceu seus rigores e avançou na criação de uma cortina de fumaça com o propósito de proteger seus interesses. Hei de formar e comandar uma tropa popular. Essa será a força real desse levante... A ambição se solta das amarras da retidão e o desejo de poder se expressa: Por que Sodré, se eu posso ser o chefe da nação? Empossado dessa confiança, tomado dessa excitação, retorna ao camarote, onde Páscoa palpita ora pela aflição de pensar que o marido a procura, ora pelo frenesi despertado pelo encontro que acabou de ter com Grego.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Sessenta e Dois

DE SENSAÇÃO INUSITADA


Na Escola Militar, Correia informa Herculano sobre suas articulações.
-- Reuni um povo bom pra começar a instrução. Não deu para ser no CCO porque o Touro diz que lá não entra mais. É arisco quando confrontado, mas depois amansa. Por isso nem falei com o Dr. Vicente, pra não ofender. Mais pra frente, a gente conversa com ele e une as forças.
Herculano gosta do relatado. Após o encontro com o marceneiro, percebeu que errara ao propor o CCO como local de reunião. O correto teria sido propor um espaço reservado para evitar que o seu envolvimento com o grupo viesse a público.
-- Um bom encaminhamento. Onde nos reuniremos?
-- No quintal da loja. Tem uma parte coberta e não dá na vista. Seu Fortunato autorizou o uso e também quer participar.
-- Será bem-vindo. Quando começamos?
-- Por mim podia ser já. Mas o povo achou melhor guardar os dias santos e começar no outro domingo, por volta das quatro da tarde. Está bom para o senhor?
-- Muito bom. Estarei lá.
Com essa programação e o novo local do encontro, Herculano experimenta uma sensação inusitada, quase mística. Sente como se a própria força da vida concorresse a seu favor, numa evidência de que está certo ao pensar que o momento é propício à realização dos seus anseios mais íntimos. Deixa o gabinete e atende a um chamado de Agostinho, que lhe informa sobre o cancelamento da reunião semanal do levante.
-- Não há porque nos reunirmos sem o retorno dos apoiadores.
-- Sabe o motivo dessa ausência?
-- Um atraso natural pelo que Fabrício comentou. Agora as boas novas. Sodré comparecerá à estreia da ópera no Teatro Lyrico, no sábado. Bom se todo o grupo fosse.
-- Comprarei o ingresso ainda hoje e falarei com o Brito.
-- Isso! Leve a esposa e peça para ele também levar.
Será preciso? O pensamento de Herculano é atravessado pela explicação do colega.
-- A família sempre nos compõe em público e dará maior prestígio a Sodré.
Faz sentido. Preciso me apresentar melhor. Páscoa está bem disposta, corada. Fará bonito. Será o meu presente de aniversário para ela.

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