segunda-feira, 25 de maio de 2015

Capítulo Sessenta e Oito

DA RELIGIÃO DA PÁTRIA



-- Extra. Extra. Há giornale nuovo no paidze.
-- Chegou o Cumércio do Brasil.
-- Tutti mundo unido pela moralisazzione da república do Brasile.
Os pregões dos meninos jornaleiros soam melodiosos para Herculano. Como os demais companheiros, amanheceu na rua para acompanhar a distribuição da primeira edição do Comércio do Brasil. A manchete conclama o Exército a intervir nos desmandos do país. A satisfação reluz sobre as marcas de cansaço no seu rosto.
Separa alguns exemplares para distribuir aos operários. Ao contrário do recomendado por Brito, manteve a agenda com o grupo. O número de participantes tem decrescido. A impossibilidade de atender às expectativas de amparo material responde pelas evasões. No entanto, Herculano aposta que os artigos do jornal mostrem ao grupo que não estão sozinhos na luta por um governo melhor. Inclusive em seu artigo de estreia, assinado com o pseudônimo de Apolônio Cidadão, defendeu muitos pontos de interesse deles, como a redução da jornada de trabalho, o descanso remunerado e a instrução para o trabalho. Crê que esse e outros conteúdos gerem entusiasmo e favoreçam a retenção dos participantes. Imbuído dessa convicção, toma o bonde levando os exemplares do jornal.
Pouco a pouco, a Capital Federal se inteira do lançamento do Comércio do Brasil. Entre reações positivas e negativas, leitores assimilam o teor combativo do jornal, que dedica espaço a promoção do primeiro de maio como o Dia Internacional do Trabalho. A promoção ocorre também em outras gazetas. Jornalistas discorrem sobre as precárias condições de vida dos operários. Outros analisam os riscos de que incitadores, com o predomínio de imigrantes, insuflem a desarmonia entre os patrões e os empregados.
Euclides da Cunha assina o artigo Um Velho Problema num jornal da cidade de São Paulo. Aborda o mundo do trabalho à luz dos conceitos de Karl Marx. Diz que esse falecido pensador alemão demonstrou de modo claro e científico que a fortuna dos capitalistas resulta da espoliação de grande parte da riqueza produzida pelos trabalhadores. Enfatiza que essa espoliação só cessará quando houver a socialização dos meios de produção. Prevê resistência dos patrões às reformas destinadas a pôr fim à exploração do trabalho alheio e, por decorrência, catástrofes sociais. Porém, crê em modos de evitá-las: basta que haja a expansão da consciência dos explorados e que eles cruzem os braços. Afirma que esse método triunfará e que as leis positivas da sociedade criarão o reinado tranquilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração.
Herculano não gosta do artigo e se preocupa com as ideias do amigo.
Barreto também se dedica a refletir sobre a exploração humana. À mesa do simplório quarto, ele se expressa na voz de um personagem do romance que escreve: “Pois o senhor acha justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer viver famílias inteiras? O senhor não vê que a pátria não é mais do que a exploração de uma minoria, ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração, e que domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela? O público ainda não entrou nos mistérios da religião da Pátria... Ah, quando ele entrar!”.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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