quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta e Quatro

ALMA GENTIL


Como um ladrão, Valentin aproxima-se do solar. Espreita o jardim e o atravessa. Pela varanda da ala íntima, adentra a sala de estar. Sem cruzar com uma alma sequer, atravessa o espaço, sobe a escada e invade o quarto do casal. Catarina petrifica-se, sentada na poltrona. Seu olhar gruda no intruso, que tranca a porta, caminha em sua direção, se inclina, apoiando os braços nos da poltrona, e sussurra no seu ouvido:
-- Sórdida.
Vira o rosto de lado, mas o outro faceia o seu.
-- Entendo agora cada promessa do seu olhar, cada ardor do seu corpo. Quis que eu a engravidasse.
-- Não é verdade e, por favor, me deixe respirar.
O pedido é ignorado.
-- Fui escolhido como um escravo reprodutor.
-- Está fora de si.
-- Estou sem chão, isso sim. Estarrecido com essa trama ignóbil urdida por vocês, diz em gestos amplos que o levam a se afastar. 
Catarina sente uma contração e tenta sobrepujar a dor. A última coisa que quer é que Valentin perceba a proximidade da hora do parto.
-- Respeite o meu estado.
-- Respeito? O que sabe desse sentimento se me jogou no limbo desse acinte?
-- O que posso fazer para convencê-lo da minha sinceridade?
-- Nada. A farsa acabou. Ruiu por terra o álibi da viagem para Petrópolis. Descobri onde Theodoro se escondeu para liberar sua cama para mim e quem mais o ajudou nessa encenação. Não foi preciso muito esforço para eu entender o seu papel primeiro de amante de voluptuosa, depois de adúltera arrependida.
Catarina se espanta com a perspectiva de que Theodoro tenha tido a mesma ideia que a sua para solucionar o problema da fecundação – e a sua mente opera em moto contínuo. Lampeja a dificuldade dele para admitir a própria esterilidade e lhe propor a transgressão. A rejeição ao seu corpo, como uma inesperada reação conservadora à sua entrega a Valentin. A incapacidade em retribuir com ardor à sua cumplicidade de lhe dar o atestado público de virilidade. Tudo se configura como uma verdade insuportável: Theodoro não é o raro entre raros que pensou que fosse. Recupera o controle.
-- Por que diz isso? De onde tirou essas ideias? Que esconderijo é esse?
-- Tolinha! Quem pergunta hoje sou eu: tramaram a farsa entre beijos e gozos?
-- Poupe-me de suas ofensas e conte-me o que pensa saber.
Valentin recusa a lhe dar armas para novas dissimulações.
-- Pergunte ao seu comparsa. E confesse: essa criança é minha.
-- Aceite a verdade: Theodoro é o pai.
-- Por quanto tempo acha que pode esconder a mentira?
-- O que preciso fazer para lhe convencer da minha sinceridade?
-- Hipócrita.
-- Por que me trata assim?
-- Eu que pergunto: por que se tornou tão vil?
-- Oh, meu Pai! – diz sentindo a dor de outra contração.
Fecha os olhos e inspira profundamente, como se o ar puxado pudesse extrair a dor. Valentin entende a reação como medo e intensifica a pressão.
-- Irei defender a paternidade nos tribunais.
-- Não faça isso, pelo amor de Deus.
-- Aguarde e verá.
-- Nenhum tribunal irá curar mágoas.
-- Mas as compensará com a vergonha que sentirão.
-- Por tudo que lhe é mais sagrado, livre-se da vingança de um desejo impossível.
-- Não tem estatura moral para dizer o que devo fazer.
-- Pare de se martirizar. Se dê a chance de ser feliz.
-- Chama de chance resignar-se a uma trama sórdida como a que urdiram?
-- Não existe trama alguma.
-- Isso quem decidirá é a justiça.
-- Será responsável por um mal irreparável. Marcará com escândalo sem razão de ser a vida de um inocente e constrangerá a si mesmo no espírito dele. É o que quer?
A perspectiva de prejudicar o filho o cala. Por um átimo permanece estuporado ante a própria impotência para se vingar da violência sofrida e lutar pela criança. Mas a dor não lhe dá paz e exige que imponha tormento similar à fonte do seu sofrimento.
-- Não posso poupá-lo de conhecer a crueza da vida e dane-se o outro. Não foi isso que sempre me recomendou?
-- Basta, Valentin.
-- Não acha que tenho nas mãos um excelente enredo de um folhetim?
-- Irá se jogar nos braços das trevas.
-- A cada semana uma revelação picante e todos ávidos de saber mais.
-- Tão logo caia em si, se arrependerá amargamente.
-- Será um sucesso sem precedentes.
-- Não se maltrate assim. Sua alma é gentil.
-- Por que então me destruiu?  -- ele grita.
-- Entenda de uma vez por todas: esta criança é de Theodoro e jamais, nunca, em tempo algum, eu lhe faria mal.
Nasce em Valentin a dúvida de que Catarina esteja falando a verdade, de que o plano tenha sido maquinado somente por Theodoro. A dúvida o fragiliza de vez. Sai antes que desabe em prantos, que implore amor. Na escada, esbarra com Josefa: sofrimento e surpresa se miram, até que cada um segue seu rumo. A criada penetra o quarto e encontra a patroa de pé, apoiada numa parede e o rosto marcado pela dor.
-- D. Catarina!
-- Mande chamar a médica. Minha hora chegou.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta e Três

NÃO! NÃO PODEM SER TÃO TORPES ASSIM


Novembro começa. Theodoro sai cedo e chega tarde ao solar, após desincumbir-se da agenda tensa do dia. É um dos homens do governo federal escalado para conter a oposição que explora a insatisfação popular desencadeada pela recente aprovação da lei de vacinação obrigatória contra a varíola.
Catarina também vive um período difícil. A insegurança despertada pela presença de Valentin na cidade intensifica as sensações desconfortáveis do corpo grávido, enquanto a hora do parto, cada vez mais próxima, amplia receios relacionados às feições do bebê e aos riscos de dar à luz.
Valentin, por sua vez, permanece no bordel, tanto porque não quis ir embora, como também porque ninguém o obrigou a partir. Ao contrário. A proprietária da Casa Rosada lhe concedeu condições melhores de estada. Franqueou-lhe o acesso ao cômodo contíguo ao aposento ocupado por ele, além das tintas e pinceis ali deixados pelo pintor que decorava o teto e interrompeu o trabalho por razões de doença. Desde então, Valentin vive um mundo à parte, mergulhado na pintura. O lá fora se resume ao que Olhos Orientais lhe conta e ao que ele vê, sobretudo da janela desse ateliê que se abre para um pátio. No mais, farta-se de ópio, vinho e sexo. 
Mas nem tudo tem sido prazer. Tomado por tormentos vorazes, descarrega-os na pintura. Ao longo da desenfreada vazão emocional, borrifa tintas das cerdas do pincel para a parede ou as desliza de modo veloz, intenso e inquieto. Nada na potência descarregada informa paisagens e objetos, exceto manchas e linhas em trajetórias contínuas e descontínuas que se cruzam, afastam-se e se retomam em sobreposições e com proporções que se inflam, deformam, afinam e subitamente cessam. Olhos Orientais não entende essas imagens. Mas para Valentin ali estão ocasos vis, luas cruéis, auroras capciosas e sóis egoístas que pairam sobre mares ímpios, rios ardilosos, terras caídas e cipós estranguladores. Explosões de cores e formas que expressam a revolta de não conseguir lidar com as disposições de sua natureza rumo à superação das barreiras que os separam da mais plena realização.
Sujo de tinta, descalço, cabelos revoltos, mais uma vez procura transformar em arte seus conflitos emocionais. Do pátio interno, chega-lhe o som da algazarra feita pelas damas do bordel ao redor de um adolescente. Metido num terno apertado, o garoto tenta recuperar seu chapéu lançado por uma a outra. Irritado com o som da traquinagem, Valentin pega uma cadeira e se dirige à janela. Olhos Orientais o detém.
-- Não faça isso.
Mobilizado pelos braços femininos, percebe a própria agressividade e grita pedindo silêncio. O grupo o mira, com o garoto esbaforido afrouxando seu engomado colarinho. Uma dama ainda o arrelia, mandando lhe beijos. Uma senhora surge, ralha com as damas em um português misturado ao espanhol, pega o chapéu e a mão do menino e, com ambos, sai dali. Valentin se afasta, desce a escada e se joga na cama. Adormece.
Acorda antes do amanhecer e se põe na banheira, ainda entorpecido. Vem-lhe à mente a figura do garoto visto da janela e, em seguida, a do mensageiro que, meses atrás, trouxe a convocação da viagem inesperada de Theodoro para Petrópolis. Abre os olhos, convicto de que os dois são a mesma pessoa e entende que o amigo encenou a viagem para se ausentar do solar e se deleitar na Casa Rosada durante os feriados de Carnaval. Sorri em lábios debruados de deboche, porém uma intuição desmancha o sorriso e provoca o assombro.
-- Não!
Gira a cabeça com a testa apoiada na borda da banheira, onde bate a mão, recusando a crer que foi usado por Theodoro para realizar o que em anos de casamento não deu conta de fazer: engravidar Catarina. Delírio ou lucidez, essa ideia lhe esclarece o inesperado resgate da amizade e o convite para fotografar a reforma urbana que outros já fotografavam. Evoca desejos insensíveis e desmedidos. O sangue frio de um homem, que para ser pai, passa por cima do próprio sentimento de posse, do ciúme, e entrega a mulher para ser possuída pelo enamorado de quem a tomou. As atitudes de Catarina também se tornam compreensíveis: as promessas sensuais do seu sorriso-olhar, as provocações durante o banho de mar, a coragem para fumar ópio, a frieza que lhe dedicou após o ardor na cama... Tudo ganha sentido.
-- Não! Não podem ser tão torpes assim.
A mente estarrecida flui em novas percepções que evidenciam o motivo da fatura da estada ali não ter lhe sido emitida uma única vez pela proprietária da Casa Rosada.
-- Está mancomunada com Theodoro para me tirar de circulação.
Desnorteado, como um peru bêbado antes da degola da ceia de natal, sai da banheira. Alcança o quarto com a cabeça a pesar e o peito amargurado. Veste-se, arruma as suas coisas, pega a bagagem e ganha a rua sem ser visto por ninguém. Custa a achar um coche, mas o condutor não quer levá-lo para o centro da cidade.
-- Não vai dar não, seu doutor. Lá tá em pé de guerra.
-- Leve-me até aonde puder.
-- A corrida hoje tá mais cara.
-- Vamos logo, homem. Tire-me daqui.
O cocheiro o deixa em uma pensão nas imediações do Largo do Machado, onde se tranca sem saber o que fazer. De repente, sai rumo a São Clemente. Caminha sem conseguir um carro. Por onde passa, há guardas em sentinela, trincheiras abertas, lampiões depredados, paralelepípedos arrancados e outros vestígios de violência que lhe ecoam aquela que o martiriza


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos

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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta e Dois

NA CASA ROSADA


Acompanhado de um criado uniformizado, Valentin guarda numa chapelaria a bagagem e adentra o salão principal: um espaço amplo de paredes revestidas de tecido e teto pintado com arabescos. Poltronas em veludo vermelho formam pequenos ambientes na entrada e nos fundos do espaço. A parte central possui mesas redondas e defronta um palco onde beldades dançam e cantam fantasiadas de ninfas salientes. De um lado da ribalta, há um bar e, na diagonal do outro, músicos se dispõem ao redor de um piano. Formosas em decotes exuberantes entretêm clientes às mesas e outras, solitárias, são vistas nas poltronas. Fartas cortinas adornam janelas e também uma porta de madeira decorada por frisos dourados.
Valentin pergunta onde pode lavar as mãos. Levado pelo criado, passa pela porta, percorre um corredor, vira ali, depois acolá e entra no toalete. Ao sair, o criado não está mais a espera. Anda e abre a porta errada. Depara-se com uma festiva reunião masculina da qual Theodoro participa. Ambos se veem e lastimam consigo mesmos o reencontro. Valentin não se move com um ar blasé, já Theodoro caminha em sua direção com um sorriso amplo e nada franco. O criado entra ao encalço do intruso.
-- Senhor, por favor, me acompanhe.
-- Deixe-o, é meu convidado, diz Theodoro e, em seguida, põe as mãos nos ombros de Valentin.
-- Por que não deu notícias?
-- Cartas se afogam nos rios.
-- Sempre um gozador. Quando retornou?
-- Horas atrás.
-- Bom te ver. Estou de passagem. Ossos do ofício.
-- Nem o vejo aqui.
-- Este é o meu amigo. Vamos para outro aposento.
-- Não se incomode, estou de saída.
-- Faço questão.
Theodoro pega o braço de Valentin, que insiste.
-- Fique à vontade.
-- Estou. É apenas uma celebração. Aprovamos a vacina contra a varíola.
-- Razão para voltar.
-- Há tempo pra tudo. Já escolheu a dama?
-- Não sei se vou ficar.
-- Tenho meus contatos na casa. Pedirei o melhor regalo para ti.
Valentin pensa no disparate de seus dilemas morais: sofre por desejar a mulher do próximo, enquanto o próprio se farta em luxúrias extraconjugais. Provoca o rival.
-- Passei pelo solar quando cheguei.
Theodoro não gosta de saber – e o esboço de insatisfação que se delineou na sua feição imediatamente se transforma num ar jactante.
-- Viu a surpresa?
-- Vi. Parabéns.
-- Obrigado. Mais um mês e fumamos um charuto juntos. Ficará no solar, não?
-- Agradeço. Tenho outros planos.
-- Que não impedem de estar conosco.
-- Em absoluto.
Theodoro abre uma porta e faz menção para o amigo entrar.
Os olhos de Valentin passeiam pelo ambiente. Um confortável divã estende-se ao longo de uma parede, com almofadas de ponta a ponta. Tapetes macios cobrem o chão; uma divisória de treliças indica a existência de outro ambiente.
-- Belo espaço.
-- Reservei para homenagear um convidado especial. Não pôde vir. Cedo a vez para você. Merece o oásis depois de meses na selva.
-- Sempre me oferecendo o melhor.
Theodoro se inquieta com a ironia e, como sempre, dissimula sua emoção.
-- Tenho você como um irmão. Um vinho de entrada?
-- Impossível recusar.
-- Irei providenciar. Já volto.
Valentin pensa em ir embora, mas a ideia de que Theodoro seja o convidado especial do espaço o retém. Quer confirmar a suspeita. Ultrapassa a divisória e vê uma cama de casal envolvida pela cortina transparente de um dossel. Observa duas portas. Anda até a mais próxima e descobre que está trancada. Dirige-se para a outra que se abre para a sala de banho, onde uma espaçosa banheira de louça mira a claraboia do teto. Urina, numa majestosa privada pensando em quanto Theodoro é um otário. Sente prazer de ter possuído Catarina. E o amor conhecido no baile fiscal, florescido em Paris, consumado em uma inesquecível noite de paixão e lembrado ao longo dos rios da Amazônia como a fonte capaz de minorar a sensação de uma vida desguarnecida de afeto e sentido, esse amor tem seu significado reduzido a um ‘perdi, mas levei também’.
Em meio aos devaneios, um odor ocre e velho conhecido o alcança e o faz salivar. Prontamente, Valentin refaz o caminho e para diante do que vê: um biscuit vivo, de olhos orientais, ajoelhado à mesa baixa da sala, com a piteira de um narguilé à boca carnuda de carmim. O biscuit bafora a fumaça do ópio e a névoa do condão do bem-estar se eleva em espiral e ondula o espaço acima da mesa ocupada por uma garrafa de vinho e taças. Um bilhete está ali: Boas vindas. Até qualquer hora. T. Os olhos orientais abaixam-se ao ver Valentin – e o pênis pressiona a calça.

Theodoro não se demora na Casa Rosada. Parte com a ironia ouvida a inquietá-lo. Tão logo chega ao solar, assusta a esposa com a sua entrada intempestiva no quarto.
-- Por que não me mandou avisar?
O coração de Catarina dispara.
-- Do quê?
-- Ora, de Valentin.
-- Aguardava você para contar. Como soube?
-- Não interessa. Se aparecer de novo, não o receba. Mande dizer que está indisposta. Quero ele longe daqui. Boa noite, diz e sai.
Catarina abraça a barriga: Estrela-guia me cubra com seu manto.

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Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Oitenta e Um

AO IR E VIR


Arriado pelas decepções, Valentin se deixa ser levado pelo ir e vir de um bonde. Nesse trajeto retarda o encontro com a solidão de um quarto de hotel. Não se conforma com Catarina ter engravidado do marido, depois de tantos anos de casada. Acha lógico ser o pai da criança – e deseja ser, no avesso do antigo receio de pôr um filho no mundo. Porém, a paternidade negada e a rejeição sofrida revelam a realidade dos fatos: tudo acabado; ela ama Theodoro. 
Insaciáveis, os tormentos do amor exigem sofrimentos maiores. Desenterram angústias e passam em revistas frustrações. A dor o torna apático.
Bonde vazio, o trocador o observa: a expressão triste, a mala de viagem, a caixa de couro da máquina fotográfica. Pensa em alguém que trombou com a desdita e desorientado tomou o primeiro carro que passou. Acha que ficará nesse ir e vir, com risco de fazer uma doidice, a menos que uma alma caridosa o socorra. Aproxima-se. Valentin tira o dinheiro para pagar nova passagem. O trocador recusa.
-- O bilhete ainda tá valendo.
-- Tira o da volta.
-- Paga depois, diz, senta-se ao lado e pergunta o que quer saber: tá de partida ou chegando?
Valentin o fita, sem ânimo de responder. Não precisa, pois o trocador fala de novo.
-- Meto o bedelho, não por mal. Mas tem pra onde ir?
-- Logo desço.
-- Como quiser.
Emudecem. O trocador fica um ar reflexivo e olhar longínquo. Confidencia.
-- Às vezes, acordo com a veneta virada e as ideias giram que nem pião.
-- Há dias ventosos.
-- Noites também. E se for por causa de mulher, aí o pião sapateia com gosto.
-- Hun!
-- São umas desalmadas. Derrubam a gente sem dó nem piedade. É o caso?
-- De quem? - indaga meio ouriçado.
-- De quem sofre de amor Só um remédio cura: os braços de outra mulher.
-- É.
-- Tem uma botica muito boa logo em frente.
 -- Não conheço.
-- Vê-se que é de fora. Mas, garanto, é coisa de primeira, se tiver bolso pra tanta finura. Se não, há outra mais em conta quase no final da parada.
Valentin decide abrandar as dores e desce diante do bordel Casa Rosada.


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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta

NÃO FAZ SENTIDO


Valentin desembarca no Pharoux e se dirige a um coche de aluguel.
-- Livre?
-- A vossa espera, senhor. Aonde quer ir?
As exigências do desejo agitam-se no peito saudoso e se expressam:
-- Rua São Clemente.
-- É pra já.
Ao longo do percurso, tudo que Valentin gostaria de dizer a Catarina e de ouvi-la falar lhe vem à mente. Voluptuosa, a esperança o inunda e transborda do olhar. Ilumina o reconhecimento das ruas reviradas pela reforma e resiste à memória das desilusões, como o passado colonial da cidade às demolições em curso.
Sorrateiro, desce do coche e penetra o solar. Vê Catarina estirada em um recamier entre flamboyants numa lateral do jardim. À medida que se aproxima, entende a massa volumosa que a amada se tornou e deseja ser o pai da criança. Emocionado, contempla o corpo grávido de perto. Catarina sente a presença e abre os olhos, que se fixam em assombro. Tenta se levantar e logo está de pé, entre os braços de Valentin, embevecido.
-- Está mais linda do que nunca.
-- Ora, deixe disso! Preciso de ar... Por favor, me solte.
É atendida e disfarça sua inquietude com a costumeira frivolidade.
-- Que surpresa!
-- Surpresa, digo eu. É o que penso?
-- O quê?
-- Eu sou o pai?
-- Claro que não.
A decepção anuvia o rosto de Valentin – e o desejo rebela-se.
-- Não pode ter certeza.
-- Posso.
-- Como?
-- Deixe de ser indiscreto.
-- É o meu direito saber.
-- O neném nascerá no final do ano. Faça as contas você mesmo.
-- Não faz sentido!
-- A falta de sentido é você pensar diferente.
-- Essa criança é minha
-- Nunca mais diga isso. Theodoro é o pai.
Inconformado, Valentin luta pelo seu amor.
-- Fale a verdade. Não tenha medo. Juntos, vamos enfrentar tudo.
-- Não há nada que enfrentar e esqueça o que houve entre nós.
-- Impossível. Se nossa paixão está viva e dentro de você.
-- Não se engane nem me torne uma obsessão. Amo Theodoro mais do que antes e, por tudo que lhe é mais sagrado, eu te peço: não destrua a minha vida.
 O pedido agrava a dor do coração derrotado e se repete de modo radical.
-- Sabe que não tem condições de ficar aqui. Vá embora e não me procure mais.
Rendido pela rejeição, como um obediente cachorro enxotado, Valentin se afasta, aturdido e cabisbaixo, enquanto Catarina roga: Pai santíssimo, Virgem misericordiosa, não me desamparem.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Setenta e Nove

OSCILAÇÕES


Dias se sucedem e a hora do parto se aproxima. De noite, Catarina dorme mal e, de dia, sente os desagradáveis sintomas do final da gravidez. As emoções também não andam bem. Oscilam entre uma temerária confiança e uma sufocante apreensão com relação aos possíveis desdobramentos do falecimento de Carlota.  
Do mesmo modo inconstante, seus desejos se revelam. Ora quer a companhia da mãe durante o parto, ora não, bem como rejeita a ideia de ter a sogra. por perto. Receia seu olhar aguçado sobre o bebê e seu conhecimento de causa para dizer se o neto é filho do filho, antes que ela própria possa saber com quem o rebento se parece e achar semelhanças para dizer como é a cara do marido. Teme todos os receios que o seu desejo impetuoso de ser mãe desdenhou. Sentir-se-ia mais segura em companhia da tia-madrinha. Com a sua astucia e praticidade, daria uma solução ao risco que corre. Mas a possibilidade está fora de cogitação. A tia só poderá chegar para o Natal.
Outra questão desafia as forças de Catarina. Tem se consultado com Dr. Eugênio, por tradição, e, com Dra. Thereza, por empatia. Porém a médica resiste em fazer papel de amiga durante o parto. Já o médico é brioso, nada propenso a ter seus serviços preteridos, ainda mais para uma mulher. Se descartado, pode reagir mal – e alguma fofoca circular. Comprimida por tantas pressões, Catarina só quer ficar quieta, quedada como puder, com os humores imprevisíveis do seu trepidante ventre, à espera da natureza se expressar de vez.

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terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Capítulo Setenta e Oito

DO INVESTIGADOR


Outra visita surpreende Catarina uma semana depois. De luto e aflitas, Eudóxia e Amelinha confirmam a participação na campanha.
-- Mas só escrevemos umas duas ou três cartas.
-- Por que não me contaram?
-- Carlota pediu segredo, para te poupar.
-- Então foram vocês que escreveram aquela carta apimentada?
-- Não, pensamos que tivesse sido você.
-- Enganaram-se. Alguém se meteu na campanha.
-- São muitas as interessadas no combate ao meretrício.
-- Melhor encerramos esse assunto de vez.
-- Não podemos.
-- A decisão já não está mais em nossas mãos.
-- Como assim?
-- Um delegado investiga o assunto.
-- A troco de quê se o suicídio foi confirmado?
-- Adalberto também disse isso.
Catarina se empalidece de vez.
-- Em que circunstâncias?
-- Tive que contar. Não podia esconder do meu marido que um delegado esteve em nossa casa para falar comigo.
-- E depois na minha. Precisei também por Onofre a par.
Desassossegada, Catarina se remexe na cadeira. Amelinha se preocupa.
-- Sente-se bem?
-- Como poderia?
-- Oh, querida, não podíamos deixar de te avisar.
-- Fizeram bem. O que mais seus maridos sabem?
-- Só da visita do delegado e do interesse dele na morte de Carlota.
-- Santo pai, o que esse homem quer?
-- Perguntou se o magistrado tinha uma amante. Não dei trela. Falei que aquilo era desonroso e corri com ele de casa.
-- Eu também.
-- Como ele reagiu?
-- Atrevidamente. Insinuou a minha participação nos Cruzados.
-- Comigo foi categórico. Disse das cartas que escrevemos na casa de Carlota.
-- Como poderia saber?
-- Alguma criada deve ter falado. Às vezes a gente bebia um pouco de Porto para ter inspiração... Podemos ter falado alto.
-- O delegado ameaçou contar para Adalberto ou para Onofre?
-- Não. Só queria mesmo saber da causa do desespero da Carlota.
-- Estamos tão aflitas! Imagina se ele der com as línguas nos dentes?
-- Se quisesse, já teria feito isso.
-- Então por que esteve conosco?
-- É o que me pergunto.
-- O que vamos fazer?  
-- Ficar quietas. Não ganhamos nada com a precipitação.
-- Pesa-nos tanto saber que demos ilusões para Carlota.
-- Deveríamos tê-la ajudado a buscar o consolo divino...
-- Não lutar contra suas adversidades conjugais.
-- Precisamos ser fortes. Temos Sóror Helena do nosso lado. Pediu-me discrição e atenção. Esteve com vocês, não?
-- Sim e nos pediu silêncio completo para a alma de Carlota finalmente descansar.
-- Mas o problema somos nós. Como viver o luto em paz com essa ameaça?
-- A quietude nos protegerá.
-- Sinto como se uma adaga estivesse apontada para o meu peito.
-- E eu estremeço a cada batida no portão.
-- Nossa Senhora não nos faltará: como mulher, entende o que fizemos.
-- Talvez devêssemos nos confessar.
-- Já o fizemos. Não há penitência maior do que esta pela qual passamos.
-- É injusto ser culpada por ajudar uma amiga.
-- Vamos rezar uma salve-rainha pela paz de Carlota e de nossos corações.
Olhos se fecham, mãos se cruzam e lábios balbuciam a prece.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Setenta e Sete

BOA NOITE

 O colunista social, amigo do solar, notifica o falecimento de Carlota e insinua a causa da morte. Não precisava, avalia Catarina, receosa com os desdobramentos do suicídio da amiga e com raiva de Theodoro, a quem atribui a responsabilidade por sua malsucedida aliança com Carlota. O marido entra no quarto.
-- Vim lhe dar boa-noite
-- Sempre tão delicado.
A pitada de ironia é percebida.
-- Sente-se bem?
-- Sim.
-- E o bebê?
-- Parece não caber mais dentro de mim.
Theodoro arrepia. Senta-se ao lado, na beira da cama.
-- Está sabendo do ocorrido?
-- Refere-se à morte de Carlota?
-- Leu no jornal?
-- Li, mas já sabia. Soror Helena esteve aqui para me avisar.
-- Por que não me contou?
-- Preferia ser informado de madrugada, quando voltou, ou no raiar do dia quando saiu para trabalhar?
A razão da ironia é entendida.
-- Em breve compensarei os dissabores da minha agenda de trabalho.
-- O bebê também. Suas carícias serão um reconforto para mim.
-- Melhor conversarmos amanhã.
-- Como quiser.
Theodoro se levanta e caminha até a porta. Vira-se.
-- Ouvi dizer que foi suicídio.
-- Ouviu certo.
-- A Soror falou o motivo?
-- Infelicidade.
-- Que coisa!
-- Trágica.
-- Boa noite, rainha.
-- Boa noite, Theodoro.

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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Capítulo Setenta e Seis

A TRAGÉDIA


O receio de Catarina aumenta ao ver o corpo ereto da Sóror em rosto abatido
-- Benção, reverendíssima.
-- Deus te abençoe.
-- Por favor, queira se sentar.
-- Desculpe-me aparecer sem ter-lhe avisado.
-- Sinta-se em casa.
-- Não sabia do seu estado.
-- Aguardo para dezembro, diz Catarina, mentindo.
-- Que Nossa Senhora lhe dê uma boa hora.
-- Assim seja, amém.
-- Talvez devesse poupá-la das razões da minha visita, porém não posso.
-- O que houve?
-- Carlota faleceu.
O assombro eclode em Catarina e o neném chuta as costelas.
-- Não é possível.
-- Infelizmente é e aconteceu da forma mais triste que possa imaginar.
Os olhos de Catarina marejam espantados.
-- Prefiro não saber como foi.
-- Evite então ler os jornais dos próximos dias.
-- Quando será o enterro?
-- Já ocorreu, só com a presença dos familiares.
-- Onde será a missa de sétimo dia?
-- Sinto, mas ocorrerá em reserva. O caso não permite missa de exéquias.
Catarina entende que Carlota se suicidou.
-- Ah, não!
-- Deus deve ter-lhe concedido in extremis a graça do arrependimento.
-- Carlota estará nas minhas preces.
-- É um conforto saber.
-- Como está o magistrado?
-- Atônito. Mas fará tudo que estiver ao seu alcance para a alma de Carlota poder descansar em paz e os vivos seguirem adiante sem peso adicional.
Catarina reconhece no comentário uma alusão à campanha dos Cruzados.
-- Há algo que eu possa fazer?
-- Manter-se em alerta
-- Não entendi. 
-- Entre os pertences de minha irmã, encontrei correspondências que trocaram ultimamente e outra lacrada para a senhora. Estão aqui.
Do bolso da veste, a Sóror retira um maço de cartas amarradas com uma fita e o estende. Catarina empalidece e recusa a receber o volume.
-- Não tenho forças.
-- As circunstâncias exigem empenho extraordinário.
-- Se quiser, leia, mas só para si.
-- Com sua licença.
A Soror abre o envelope lacrado e lê a ultima mensagem de Carlota para Catarina.
-- Um pedido de ajuda. Não teve tempo de enviá-lo.
-- Por favor, reverendíssima, isso é muito mais do que eu posso suportar.
-- Tranquilize-se. Não irei estender o assunto. Apenas precisava saber o conteúdo da carta, ainda que os motivos do ato de Carlota nos sejam bem conhecidos.
-- Sinto muito, muito mesmo, mas não podia fazer nada.
-- Estou ciente. Tentaram o impossível, não?
-- Carlota lutava pelo casamento.
-- E acreditou na campanha. Quanta ilusão!
-- A senhora há de convir: ser preterida deve ser uma dor brutal.
-- Com certeza. Cedo na vida, conheci a rejeição. Tão bem que decidi ser freira.
-- Desconhecia como ocorreu vosso chamado para a vida religiosa.
-- Ante o nosso destino carente, pareceu-me a melhor escolha. E foi. Consegui instrução, respeito e o comando que exerço.
-- Casou-se com a congregação.
-- O consenso é com Cristo.
-- Elizabeth I se casou com a Inglaterra.
-- Uma mulher sensata.
-- Nem todas são capazes ou podem realizar escolhas similares.
-- Concordo. Mas não vim aqui para julgar as duas e sim para comunicá-la do ocorrido e dos procedimentos que tomei. Não precisamos de revelações inapropriadas.
Catarina vislumbra um cenário sombrio: a descoberta da sua participação na campanha dos Cruzados, seu nome na seção policial dos jornais, a decepção de Theodoro...
-- Acredita que recolheu tudo?
-- Penso que sim.
-- Alguém mais tem conhecimento disso?
-- Não posso precisar as confidências de Carlota para Eudóxia Novaes e Amélia Amarante. Irei participá-las do ocorrido ainda hoje.
Lampeja em Catarina a possibilidade de que as amigas saibam da campanha.
-- Foram sempre muito próximas. Ficarão abaladas.
-- E precisam ser alertadas para tomar os cuidados devidos.
-- A situação exige mesmo discrição e atenção.
-- Sobretudo com os jornalistas. São hábeis em explorar tragédias e ganhar com a curiosidade malsã dos leitores.
-- Oh, nem me fale. 
-- Agora, se me der licença, devo ir.
-- Não quer esperar o café?
-- Agradeço, mas, como disse, tenho outras visitas a fazer.
Catarina acompanha Sóror Helena até a porta. De volta à sala, sente um arrepio correr a sua espinha. Pega as correspondências e sai. Em uma bacia sobre a borda do poço do pomar, põe fogo na carta lida e a deita sobre as demais. Labaredas se alastram pelas folhas, em contorções flamejantes que suscitam pensamentos sobre os suplícios de Carlota. Registros consumados, joga as cinzas em um canteiro e ordena ao jardineiro plantar um pé de rosas no local.

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