segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta e Três

NÃO! NÃO PODEM SER TÃO TORPES ASSIM


Novembro começa. Theodoro sai cedo e chega tarde ao solar, após desincumbir-se da agenda tensa do dia. É um dos homens do governo federal escalado para conter a oposição que explora a insatisfação popular desencadeada pela recente aprovação da lei de vacinação obrigatória contra a varíola.
Catarina também vive um período difícil. A insegurança despertada pela presença de Valentin na cidade intensifica as sensações desconfortáveis do corpo grávido, enquanto a hora do parto, cada vez mais próxima, amplia receios relacionados às feições do bebê e aos riscos de dar à luz.
Valentin, por sua vez, permanece no bordel, tanto porque não quis ir embora, como também porque ninguém o obrigou a partir. Ao contrário. A proprietária da Casa Rosada lhe concedeu condições melhores de estada. Franqueou-lhe o acesso ao cômodo contíguo ao aposento ocupado por ele, além das tintas e pinceis ali deixados pelo pintor que decorava o teto e interrompeu o trabalho por razões de doença. Desde então, Valentin vive um mundo à parte, mergulhado na pintura. O lá fora se resume ao que Olhos Orientais lhe conta e ao que ele vê, sobretudo da janela desse ateliê que se abre para um pátio. No mais, farta-se de ópio, vinho e sexo. 
Mas nem tudo tem sido prazer. Tomado por tormentos vorazes, descarrega-os na pintura. Ao longo da desenfreada vazão emocional, borrifa tintas das cerdas do pincel para a parede ou as desliza de modo veloz, intenso e inquieto. Nada na potência descarregada informa paisagens e objetos, exceto manchas e linhas em trajetórias contínuas e descontínuas que se cruzam, afastam-se e se retomam em sobreposições e com proporções que se inflam, deformam, afinam e subitamente cessam. Olhos Orientais não entende essas imagens. Mas para Valentin ali estão ocasos vis, luas cruéis, auroras capciosas e sóis egoístas que pairam sobre mares ímpios, rios ardilosos, terras caídas e cipós estranguladores. Explosões de cores e formas que expressam a revolta de não conseguir lidar com as disposições de sua natureza rumo à superação das barreiras que os separam da mais plena realização.
Sujo de tinta, descalço, cabelos revoltos, mais uma vez procura transformar em arte seus conflitos emocionais. Do pátio interno, chega-lhe o som da algazarra feita pelas damas do bordel ao redor de um adolescente. Metido num terno apertado, o garoto tenta recuperar seu chapéu lançado por uma a outra. Irritado com o som da traquinagem, Valentin pega uma cadeira e se dirige à janela. Olhos Orientais o detém.
-- Não faça isso.
Mobilizado pelos braços femininos, percebe a própria agressividade e grita pedindo silêncio. O grupo o mira, com o garoto esbaforido afrouxando seu engomado colarinho. Uma dama ainda o arrelia, mandando lhe beijos. Uma senhora surge, ralha com as damas em um português misturado ao espanhol, pega o chapéu e a mão do menino e, com ambos, sai dali. Valentin se afasta, desce a escada e se joga na cama. Adormece.
Acorda antes do amanhecer e se põe na banheira, ainda entorpecido. Vem-lhe à mente a figura do garoto visto da janela e, em seguida, a do mensageiro que, meses atrás, trouxe a convocação da viagem inesperada de Theodoro para Petrópolis. Abre os olhos, convicto de que os dois são a mesma pessoa e entende que o amigo encenou a viagem para se ausentar do solar e se deleitar na Casa Rosada durante os feriados de Carnaval. Sorri em lábios debruados de deboche, porém uma intuição desmancha o sorriso e provoca o assombro.
-- Não!
Gira a cabeça com a testa apoiada na borda da banheira, onde bate a mão, recusando a crer que foi usado por Theodoro para realizar o que em anos de casamento não deu conta de fazer: engravidar Catarina. Delírio ou lucidez, essa ideia lhe esclarece o inesperado resgate da amizade e o convite para fotografar a reforma urbana que outros já fotografavam. Evoca desejos insensíveis e desmedidos. O sangue frio de um homem, que para ser pai, passa por cima do próprio sentimento de posse, do ciúme, e entrega a mulher para ser possuída pelo enamorado de quem a tomou. As atitudes de Catarina também se tornam compreensíveis: as promessas sensuais do seu sorriso-olhar, as provocações durante o banho de mar, a coragem para fumar ópio, a frieza que lhe dedicou após o ardor na cama... Tudo ganha sentido.
-- Não! Não podem ser tão torpes assim.
A mente estarrecida flui em novas percepções que evidenciam o motivo da fatura da estada ali não ter lhe sido emitida uma única vez pela proprietária da Casa Rosada.
-- Está mancomunada com Theodoro para me tirar de circulação.
Desnorteado, como um peru bêbado antes da degola da ceia de natal, sai da banheira. Alcança o quarto com a cabeça a pesar e o peito amargurado. Veste-se, arruma as suas coisas, pega a bagagem e ganha a rua sem ser visto por ninguém. Custa a achar um coche, mas o condutor não quer levá-lo para o centro da cidade.
-- Não vai dar não, seu doutor. Lá tá em pé de guerra.
-- Leve-me até aonde puder.
-- A corrida hoje tá mais cara.
-- Vamos logo, homem. Tire-me daqui.
O cocheiro o deixa em uma pensão nas imediações do Largo do Machado, onde se tranca sem saber o que fazer. De repente, sai rumo a São Clemente. Caminha sem conseguir um carro. Por onde passa, há guardas em sentinela, trincheiras abertas, lampiões depredados, paralelepípedos arrancados e outros vestígios de violência que lhe ecoam aquela que o martiriza


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos

Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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