quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Capítulo Sessenta e Um

O PLANO


As cortinas cerradas, os móveis pesados e a fisionomia abatida da anfitriã dão ao ambiente um ar soturno. Sobre a mesa, um serviço de chá divide o espaço com uma garrafa de Porto. Carlota se serve de uma taça e bebe um gole farto.
-- Adoça o fel que sinto.
-- Passará, responde Catarina.
-- É uma agonia atroz.
-- Sinto muito, muito mesmo.
-- Não esquecerei seu apoio.
-- Há algo mais que eu possa fazer?
Carlota dá uma risada sarcástica.
-- Me ajudar matar o desgraçado e a meretriz.
-- Vamos pensar em algo que não chame uma desgraça maior.
-- Você é única, Catarina. Nada a espanta.
-- O que seria das figuras de linguagem sem as nossas emoções?
-- Mas meu ódio é real e clama por vingança.
-- Imagino que sim. Porém o feitiço jamais pode se voltar contra o feiticeiro. E há a possibilidade do Magistrado recuperar a lucidez.
-- Impossível. Homem acostumado à lascívia tem repúdio ao amor casto.
-- É um juiz, a sensatez não lhe faltará para sempre. Melhor do que ninguém ele sabe os riscos da situação.
-- Minha vontade é denunciar que tem uma teúda e manteúda.
-- O escândalo será seu também. Deve se poupar e proteger-se.
-- Recolho-me à dignidade do silêncio, enquanto ele se diverte. Que destino!
-- Ou recolhe-se à dignidade do seu silêncio e age.
-- O que posso fazer?
-- Disse denunciar esse triste acontecimento. Por que então não escreve para a seção A Pedidos dos Leitores pedindo providências contra as meretrizes?
O olhar triste de Carlota ganha um brilho diferente.
-- Fale-me mais.
-- Bom, é apenas uma ideia. Mas recomendo usar um pseudônimo masculino e no plural, para dar mais força a causa.
-- Um nome... Qual?
-- Ocorre-me Os Cruzados. O que acha?
-- Gosto, fala Carlota sorvendo perspectivas futuras com o olhar parado no nada: -- Denuncio o salafrário?
-- Apenas o mal e de modo impessoal. Algo como a necessidade de salvar a família das mundanas e as mulheres de bem dessa exposição degradante nas ruas.
A resposta lhe tira daquele estado e imprime vigor na voz
-- E acabar com os bordéis. Já ouviu falar da Ninon de Valoir?
-- Já.
-- A meretriz do magistrado saiu do antro dessa mestra da podridão.
-- O falatório também esvaziará esse estabelecimento. Quem irá querer correr o risco de se expor se os olhos de todos estiverem atentos aos hábitos alheios?
-- Precisaremos de muitas cartas para provocar esse efeito.
-- A mesma carta pode ser publicada em vários jornais. Depois, com algumas mãos-escrivãs, envie missivas para as redações só para alimentar a fogueira.
-- As mãos-escrivãs precisam assinar com o pseudônimo masculino?
-- Se quiserem.
-- Sei quem podem ser as escrivãs: as madres da Nossa Senhora das Grandes Causas. Muitas são letradas e a minha irmã é a Sóror. Falarei com ela.
-- Terá um exército, então! Contudo, instrua a Sóror para fazer dessa convocação uma iniciativa em prol dos bons costumes e não para atender ao seu pedido. Quanto menos gente souber que está por detrás da campanha, melhor será. 
-- Fique tranquila. Minha irmã é igual a você. Pensa como um homem.
-- Como ser diferente? Se não deciframos a esfinge, ela nos devora.
O humor de Carlota se altera e o desânimo se estampa no seu rosto.
-- Todo esse esforço será em vão. O mundo não vive sem as dissolutas.
-- Não pense nisso, mas somente que tentar está dentro das suas possibilidades.
-- E se não der certo?
-- Sinto muito, querida, só me ocorre esta ideia para ajudá-la.
A confiança retorna à anfitriã.
-- Melhor essa ideia do que nenhuma. Pode escrever a carta para o jornal?
-- Posso. Mas precisamos de ajuda para a questão comercial.
-- Um homem?
-- Acima de qualquer suspeita, para ir ao jornal e expedir as cartas.
-- Não confiaria em nenhum dos meus conhecidos.
-- Acho que com um agrado posso conseguir esse ajudante do bem.
-- Por favor, tente e ponha na minha conta. Pagarei o que for preciso para botar o magistrado acabrunhado aqui em casa e fazer a marafona conhecer o inferno.
Carlota bebe e o prazer despertado pela vingança urdida se confunde com o sabor do Porto. Catarina também saboreia seu chá, sentindo o gosto antecipado da vitória. Conseguiu o que queria: um escudo para o seu plano e mãos santas para executá-lo. Acredita que as cartas despertarão as redações dos jornais para a questão do meretrício e os jornalistas agitarão a opinião pública a ponto de criar um constrangimento que iniba a presença dos respectivos maridos no bordel de Ninon de Valoir. A animação volta a palpitar o seu peito com a perspectiva de tirar Theodoro da cama alheia.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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