O PLANO
As
cortinas cerradas, os móveis pesados e a fisionomia abatida da anfitriã dão ao
ambiente um ar soturno. Sobre a mesa, um serviço de chá divide o espaço com uma
garrafa de Porto. Carlota se serve de uma taça e bebe um gole farto.
--
Adoça o fel que sinto.
--
Passará, responde Catarina.
-- É
uma agonia atroz.
--
Sinto muito, muito mesmo.
-- Não
esquecerei seu apoio.
-- Há
algo mais que eu possa fazer?
Carlota
dá uma risada sarcástica.
-- Me
ajudar matar o desgraçado e a meretriz.
--
Vamos pensar em algo que não chame uma desgraça maior.
--
Você é única, Catarina. Nada a espanta.
-- O
que seria das figuras de linguagem sem as nossas emoções?
-- Mas
meu ódio é real e clama por vingança.
--
Imagino que sim. Porém o feitiço jamais pode se voltar contra o feiticeiro. E
há a possibilidade do Magistrado recuperar a lucidez.
--
Impossível. Homem acostumado à lascívia tem repúdio ao amor casto.
-- É
um juiz, a sensatez não lhe faltará para sempre. Melhor do que ninguém ele sabe
os riscos da situação.
--
Minha vontade é denunciar que tem uma teúda e manteúda.
-- O
escândalo será seu também. Deve se poupar e proteger-se.
--
Recolho-me à dignidade do silêncio, enquanto ele se diverte. Que destino!
-- Ou
recolhe-se à dignidade do seu silêncio e age.
-- O
que posso fazer?
--
Disse denunciar esse triste acontecimento. Por que então não escreve para a
seção A Pedidos dos Leitores pedindo
providências contra as meretrizes?
O
olhar triste de Carlota ganha um brilho diferente.
-- Fale-me
mais.
-- Bom,
é apenas uma ideia. Mas recomendo usar um pseudônimo masculino e no plural,
para dar mais força a causa.
-- Um
nome... Qual?
--
Ocorre-me Os Cruzados. O que acha?
-- Gosto,
fala Carlota sorvendo perspectivas futuras com o olhar parado no nada: -- Denuncio
o salafrário?
--
Apenas o mal e de modo impessoal. Algo como a necessidade de salvar a família
das mundanas e as mulheres de bem dessa exposição degradante nas ruas.
A
resposta lhe tira daquele estado e imprime vigor na voz
-- E
acabar com os bordéis. Já ouviu falar da Ninon de Valoir?
-- Já.
-- A
meretriz do magistrado saiu do antro dessa mestra da podridão.
-- O
falatório também esvaziará esse estabelecimento. Quem irá querer correr o risco
de se expor se os olhos de todos estiverem atentos aos hábitos alheios?
--
Precisaremos de muitas cartas para provocar esse efeito.
-- A
mesma carta pode ser publicada em vários jornais. Depois, com algumas
mãos-escrivãs, envie missivas para as redações só para alimentar a fogueira.
-- As
mãos-escrivãs precisam assinar com o pseudônimo masculino?
-- Se
quiserem.
-- Sei
quem podem ser as escrivãs: as madres da Nossa Senhora das Grandes Causas.
Muitas são letradas e a minha irmã é a Sóror. Falarei com ela.
--
Terá um exército, então! Contudo, instrua a Sóror para fazer dessa convocação
uma iniciativa em prol dos bons costumes e não para atender ao seu pedido.
Quanto menos gente souber que está por detrás da campanha, melhor será.
--
Fique tranquila. Minha irmã é igual a você. Pensa como um homem.
--
Como ser diferente? Se não deciframos a esfinge, ela nos devora.
O humor
de Carlota se altera e o desânimo se estampa no seu rosto.
--
Todo esse esforço será em vão. O mundo não vive sem as dissolutas.
-- Não
pense nisso, mas somente que tentar está dentro das suas possibilidades.
-- E
se não der certo?
--
Sinto muito, querida, só me ocorre esta ideia para ajudá-la.
A
confiança retorna à anfitriã.
--
Melhor essa ideia do que nenhuma. Pode escrever a carta para o jornal?
--
Posso. Mas precisamos de ajuda para a questão comercial.
-- Um
homem?
--
Acima de qualquer suspeita, para ir ao jornal e expedir as cartas.
-- Não
confiaria em nenhum dos meus conhecidos.
--
Acho que com um agrado posso conseguir esse ajudante do bem.
-- Por
favor, tente e ponha na minha conta. Pagarei o que for preciso para botar o
magistrado acabrunhado aqui em casa e fazer a marafona conhecer o inferno.
Carlota
bebe e o prazer despertado pela vingança urdida se confunde com o sabor do
Porto. Catarina também saboreia seu chá, sentindo o gosto antecipado da
vitória. Conseguiu o que queria: um escudo para o seu plano e mãos santas para
executá-lo. Acredita que as cartas despertarão as redações dos jornais para a
questão do meretrício e os jornalistas agitarão a opinião pública a ponto de criar um constrangimento que iniba a presença dos respectivos maridos no bordel de Ninon de Valoir. A animação volta a palpitar o seu peito com a
perspectiva de tirar Theodoro da cama alheia.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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