quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Capítulo Setenta e Dois

DE NATUREZAS


A noite chega. Os Tuyukas e os hóspedes brancos estão de pé lado a lado dentro da maloca. Os Tukanos entram em fila com suas oferendas e as deixam sobre as esteiras. Depois, cumprimentam cada um dos presentes. Após a longa saudação, todos se sentam na grande roda. Os criados Makus trazem o Kahapí e servem a bebida nas cuias. Todos bebem. Em seguida circula o paricá e o ipadú. Cheirar e fumar são necessários, pelo menos na rodada inicial. Ninguém fere a regra. Um benzedor reza com baforadas exaladas para as direções cardeais, enquanto Valentin sente um sutil adormecimento na gengiva e a visão aberta para novas perspectivas. A luminosidade dos fogos, as sombras dos corpos, a soada das vozes e dos chocalhos, cria um ambiente de tons ocres e dourados que o transportam para tempos imemoriais. Recrudescem as exigências do vício. No entanto, vence-as e faz o recomendado pelo bom-tom indígena quando se está satisfeito: vira a cuia vazia sobre o chão, espeta a forquilha usada para apoiar o enorme charuto de paricá e deita o canudo para inalar o ipadú.
Tem início a música, a dança e a cantoria. Um mestre de entoações orienta o grupo de dançarinos que se exibe, formado pelos mais velhos de ambas as tribos. A roda assiste. Algumas expressões são de alegria, outras de êxtase calmo e há ainda aquelas com ar de quem está prestes a travar uma batalha. Valentin não aguenta mais ficar exposto aos narcóticos. Quando os próximos dançarinos se levantam, aproveita a movimentação e despede-se de Grünberg e Schmidt, que reagem em adorável placidez.
-- Já?
-- Por quê?
-- Estou indisposto.
-- Se é assim, o ar da noite lhe fará bem. 
-- Mas volta. A festa só começou.
Valentin sai. Na praça vazia, iluminada por tochas, inclina o tronco para frente e apoia as mãos sobre os joelhos. A vontade é de gritar, pôr para fora a pressão de querer se entorpecer. O chão de areia reluz, como raios de cristal, enquanto o som da cantoria, dos instrumentos e dos estrondos dos pés vindo da maloca reverbera no seu corpo em uníssono com a pulsação do vício. A pressão vence o controle. Caminha de volta para a casa comunitária. Porém, na porta, dá meia-volta, pega um facho e, desembestado, atravessa a praça e entra na mata.
Ao longo do percurso intempestivo, tem consciência do clarão da tocha, das trevas, do cheiro, dos ruídos da selva e da própria inquietude, provocada pela lembrança do prazer fenomenal proporcionado pelo ópio. A imagem remete seus pensamentos para o preço extorquido pela droga – para o grilhão da servidão que se torna maior a cada dádiva desfrutada e do qual teme romper apenas com a rigidez pálida da morte a evocar a ideia de ter sido um fracassado. Por orgulho, combate o vício e luta pela chance de se acertar com a sua natureza tão inadequada à realidade da vida.
Irrompe da mata para o descampado do Tiguiê-Yabuti. A amplidão escura se eleva da corredeira, ladeada pelo paredão da floresta, e mergulha o precipício que se descortina à frente, onde a massa d’água cai. É a natureza rasgada pela natureza, ao som possante de Yabuti – e a noite viva, onipotente.
Valentin finca o facho no chão, arranca a roupa e avança em passos instáveis, ora sobre as pedras, ora cobertos pelo caudal. Penumbras enluaradas, sombras balançantes, água movente e reflexos deslumbrantes povoam o trajeto. O ar é fresco, o marulhar, intenso e o som da cachoeira, poderoso. A natureza respira, umedece, excita, alucina.
Filho da solidão cósmica, inflado das necessidades do sublime, Valentin é um débil mastro a pique, em meio ao perigo de tantas potências, correntezas. Tão longe do céu, tão próximo do despenhadeiro, grita suas frustrações e dores. O grito ecoa abafado pelo som ressonante do Tiquié-Yabuti, enquanto a imagem de Catarina se projeta diante dele. Embebido das reminiscências do ardor vivido no corpo da amada, masturba-se, com as sensações ampliadas pela exposição à tamanha imensidão. A cada fricção, o quadril também se move como se copulasse com a noite. A lua brilha, flutua, deforma-se, espelhada, nas águas céleres, escuras. Valentin uiva como um lobo quando o gozo borrifa sua corporeidade leitosa sobre o despejo espumante da torrente. Esgotado, estira-se de costas numa pedra. Mira o céu estrelado - saudades apertam. Pensa em passar pelo Rio de Janeiro antes de voltar para Paris. Afinal, a natureza gosta de dar voltas, como disse certa vez Cândido Bastida. Com esse pensamento ali fica, enquanto ondas reluzentes e tépidas rolam pelas suas pernas.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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