DE NATUREZAS
A
noite chega. Os Tuyukas e os hóspedes brancos estão de pé lado a lado dentro da
maloca. Os Tukanos entram em fila com suas oferendas e as deixam sobre as
esteiras. Depois, cumprimentam cada um dos presentes. Após a longa saudação,
todos se sentam na grande roda. Os criados Makus trazem o Kahapí e servem a
bebida nas cuias. Todos bebem. Em seguida circula o paricá e o ipadú. Cheirar e
fumar são necessários, pelo menos na rodada inicial. Ninguém fere a regra. Um
benzedor reza com baforadas exaladas para as direções cardeais, enquanto
Valentin sente um sutil adormecimento na gengiva e a visão aberta para novas
perspectivas. A luminosidade dos fogos, as sombras dos corpos, a soada das
vozes e dos chocalhos, cria um ambiente de tons ocres e dourados que o
transportam para tempos imemoriais. Recrudescem as exigências do vício. No
entanto, vence-as e faz o recomendado pelo bom-tom indígena quando se está
satisfeito: vira a cuia vazia sobre o chão, espeta a forquilha usada para
apoiar o enorme charuto de paricá e deita o canudo para inalar o ipadú.
Tem
início a música, a dança e a cantoria. Um mestre de entoações orienta o grupo
de dançarinos que se exibe, formado pelos mais velhos de ambas as tribos. A
roda assiste. Algumas expressões são de alegria, outras de êxtase calmo e há
ainda aquelas com ar de quem está prestes a travar uma batalha. Valentin não
aguenta mais ficar exposto aos narcóticos. Quando os próximos dançarinos se
levantam, aproveita a movimentação e despede-se de Grünberg e Schmidt, que
reagem em adorável placidez.
-- Já?
-- Por
quê?
--
Estou indisposto.
-- Se
é assim, o ar da noite lhe fará bem.
-- Mas
volta. A festa só começou.
Valentin
sai. Na praça vazia, iluminada por tochas, inclina o tronco para frente e apoia
as mãos sobre os joelhos. A vontade é de gritar, pôr para fora a pressão de querer
se entorpecer. O chão de areia reluz, como raios de cristal, enquanto o som da
cantoria, dos instrumentos e dos estrondos dos pés vindo da maloca reverbera no
seu corpo em uníssono com a pulsação do vício. A pressão vence o controle.
Caminha de volta para a casa comunitária. Porém, na porta, dá meia-volta, pega
um facho e, desembestado, atravessa a praça e entra na mata.
Ao
longo do percurso intempestivo, tem consciência do clarão da tocha, das trevas,
do cheiro, dos ruídos da selva e da própria inquietude, provocada pela
lembrança do prazer fenomenal proporcionado pelo ópio. A imagem remete seus
pensamentos para o preço extorquido pela droga – para o grilhão da servidão que
se torna maior a cada dádiva desfrutada e do qual teme romper apenas com a rigidez
pálida da morte a evocar a ideia de ter sido um fracassado. Por orgulho,
combate o vício e luta pela chance de se acertar com a sua natureza tão
inadequada à realidade da vida.
Irrompe
da mata para o descampado do Tiguiê-Yabuti. A amplidão escura se eleva da
corredeira, ladeada pelo paredão da floresta, e mergulha o precipício que se
descortina à frente, onde a massa d’água cai. É a natureza rasgada pela
natureza, ao som possante de Yabuti – e a noite viva, onipotente.
Valentin
finca o facho no chão, arranca a roupa e avança em passos instáveis, ora sobre
as pedras, ora cobertos pelo caudal. Penumbras enluaradas, sombras balançantes,
água movente e reflexos deslumbrantes povoam o trajeto. O ar é fresco, o
marulhar, intenso e o som da cachoeira, poderoso. A natureza respira, umedece,
excita, alucina.
Filho
da solidão cósmica, inflado das necessidades do sublime, Valentin é um débil
mastro a pique, em meio ao perigo de tantas potências, correntezas. Tão longe
do céu, tão próximo do despenhadeiro, grita suas frustrações e dores. O grito
ecoa abafado pelo som ressonante do Tiquié-Yabuti, enquanto a imagem de
Catarina se projeta diante dele. Embebido das reminiscências do ardor vivido no
corpo da amada, masturba-se, com as sensações ampliadas pela exposição à
tamanha imensidão. A cada fricção, o quadril também se move como se copulasse
com a noite. A lua brilha, flutua, deforma-se, espelhada, nas águas céleres,
escuras. Valentin uiva como um lobo quando o gozo borrifa sua corporeidade
leitosa sobre o despejo espumante da torrente. Esgotado, estira-se de costas
numa pedra. Mira o céu estrelado - saudades apertam. Pensa em passar pelo Rio
de Janeiro antes de voltar para Paris. Afinal, a natureza gosta de dar voltas, como disse certa vez Cândido Bastida. Com esse pensamento ali fica, enquanto ondas reluzentes e tépidas rolam pelas suas pernas.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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