segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Capítulo Setenta e Cinco

PARA A POSTERIDADE


Meu amigo, esperas, divagações e acomodações marcam meus dias. Nenhuma posição me é confortável e nenhum espaço suficiente para eu me caber. Estou enorme! E, a cada manhã, acordo maior, mais pesada e inchada. Sinto-me uma lua cheia de uma trepidante e expansiva terra. Só mesmo uma mulher para saber os efeitos dessa ação vivificante da Natureza fundida à tarefa divina da Criação. Não entenda meu desabafo como insatisfação, pois não há desconforto mais sublime do que gestar um novo ser. E que apreensão mais doce? Com quem o bebê se parecerá? Nascerá saudável? Terei a boa fortuna de entregar um neném rosado e forte ao meu marido?
Assim têm sido os meus dias. Administrando os afazeres do solar, inteirando-me pelo jornal das notícias de interesse do meu esposo, interpretando Chopin para ele, após o jantar, bem como, mantendo as correspondências da família em dia e recebendo minhas amigas da saudosa Ordem da Estrela e os meus sogros – sim, eles retornaram felizes com o nascimento de Anna Christina e ficaram ainda mais alegres quando souberam do meu estado interessante – assim eu prossigo com a leveza de espírito e a brandura no trato que compõe a poesia de uma esposa dedicada aos cuidados do lar e ao afeto do consorte. A gravidez me desabrochou por inteiro para a dimensão real do casamento. Sem saudosismos infantis, acolhi o curso natural da vida conjugal. Renunciei às ingenuidades de outrora e me tornei uma esposa-mãe amorosa, lúcida e digna, no desempenho do sagrado encargo do matrimônio.
Graças a Deus e a Nossa Senhora, minha amada e dadivosa estrela-guia, nenhum infortúnio, de espécie alguma, atravessou o meu destino. Vivi apenas contrariedades e impeditivos próprios de uma gravidez, os quais, aliás, à luz do meu franquíssimo e espontâneo modo de ser, atesto como sacrifícios suportáveis. Estou certa de que, ao ter o meu bebê nos braços, dissabores serão esquecidos e renúncias recompensadas.
Diferentemente do costumeiro “eu”, Catarina assina seu nome. Leva as mãos às ancas e espicha o tronco... Sente uma contração. Acaricia a barriga e se recosta no espaldar da cadeira refletindo sobre o texto escrito. Acha que não romantizou além da conta nem deixou lacunas comprometedoras ao entendimento de que perdeu a condição de amante do marido: com um mínimo de inteligência a posteridade poderá intuir que assumi com galhardia o inevitável e apreciar a mulher que fui. Entretanto, a mágoa pela traição de Theodoro continua a latejar e a desafiar sua capacidade de compreensão. Reage com a sua visão de si: rainhas não nasceram para se abalar com frivolidades.
Josefa entra na biblioteca.
-- A Soror Helena está no vestíbulo, quer ver a senhora.
Catarina se espanta com a visita inesperada da irmã de Carlota. Após o evento da Avenida Central, a questão do meretrício foi eclipsada das páginas dos jornais por outros temas da vida pública e o marido da amiga voltou a se valer dos seculares direitos masculinos. Sem êxito na sua tentativa de acalmar Carlota, passou a evitá-la e ainda não respondeu ao seu último pedido de ajuda. Teme o que ela possa estar a fazer.
-- Conduza Soror Helena até a sala e providencie um lanche. Sigo já.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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