A TRAGÉDIA
O
receio de Catarina aumenta ao ver o corpo ereto da Sóror em rosto abatido
--
Benção, reverendíssima.
--
Deus te abençoe.
-- Por
favor, queira se sentar.
-- Desculpe-me
aparecer sem ter-lhe avisado.
--
Sinta-se em casa.
-- Não
sabia do seu estado.
--
Aguardo para dezembro, diz Catarina, mentindo.
-- Que
Nossa Senhora lhe dê uma boa hora.
--
Assim seja, amém.
--
Talvez devesse poupá-la das razões da minha visita, porém não posso.
-- O
que houve?
--
Carlota faleceu.
O
assombro eclode em Catarina e o neném chuta as costelas.
-- Não
é possível.
--
Infelizmente é e aconteceu da forma mais triste que possa imaginar.
Os
olhos de Catarina marejam espantados.
--
Prefiro não saber como foi.
--
Evite então ler os jornais dos próximos dias.
--
Quando será o enterro?
-- Já
ocorreu, só com a presença dos familiares.
-- Onde
será a missa de sétimo dia?
--
Sinto, mas ocorrerá em reserva. O caso não permite missa de exéquias.
Catarina
entende que Carlota se suicidou.
-- Ah,
não!
--
Deus deve ter-lhe concedido in extremis
a graça do arrependimento.
--
Carlota estará nas minhas preces.
-- É
um conforto saber.
-- Como está o magistrado?
-- Atônito. Mas fará tudo que estiver ao seu alcance para a alma de Carlota poder descansar em paz e os vivos seguirem adiante sem peso adicional.
Catarina reconhece no comentário uma alusão à campanha dos Cruzados.
-- Há algo que eu possa fazer?
-- Manter-se em alerta
-- Não entendi.
-- Entre os pertences de minha irmã, encontrei correspondências que
trocaram ultimamente e outra lacrada para a senhora. Estão aqui.
Do
bolso da veste, a Sóror retira um maço de cartas amarradas com uma fita e o estende.
Catarina empalidece e recusa a receber o volume.
-- Não
tenho forças.
-- As
circunstâncias exigem empenho extraordinário.
-- Se
quiser, leia, mas só para si.
-- Com
sua licença.
A
Soror abre o envelope lacrado e lê a ultima mensagem de Carlota para Catarina.
-- Um
pedido de ajuda. Não teve tempo de enviá-lo.
-- Por
favor, reverendíssima, isso é muito mais do que eu posso suportar.
-- Tranquilize-se. Não irei estender o assunto. Apenas precisava saber o conteúdo da
carta, ainda que os motivos do ato de Carlota nos sejam bem conhecidos.
--
Sinto muito, muito mesmo, mas não podia fazer nada.
--
Estou ciente. Tentaram o impossível, não?
--
Carlota lutava pelo casamento.
-- E
acreditou na campanha. Quanta ilusão!
-- A senhora há de convir: ser
preterida deve ser uma dor brutal.
-- Com
certeza. Cedo na vida, conheci a rejeição. Tão bem que decidi ser freira.
--
Desconhecia como ocorreu vosso chamado para a vida religiosa.
--
Ante o nosso destino carente, pareceu-me a melhor escolha. E foi. Consegui
instrução, respeito e o comando que exerço.
--
Casou-se com a congregação.
-- O
consenso é com Cristo.
--
Elizabeth I se casou com a Inglaterra.
-- Uma
mulher sensata.
-- Nem
todas são capazes ou podem realizar escolhas similares.
--
Concordo. Mas não vim aqui para julgar as duas e sim para comunicá-la do ocorrido e dos procedimentos que tomei. Não precisamos de revelações inapropriadas.
Catarina
vislumbra um cenário sombrio: a descoberta da sua participação na campanha dos Cruzados, seu nome na seção policial dos
jornais, a decepção de Theodoro...
--
Acredita que recolheu tudo?
--
Penso que sim.
-- Alguém mais tem conhecimento disso?
-- Não
posso precisar as confidências de Carlota para Eudóxia Novaes e Amélia Amarante.
Irei participá-las do ocorrido ainda hoje.
Lampeja
em Catarina a possibilidade de que as amigas saibam da campanha.
--
Foram sempre muito próximas. Ficarão abaladas.
-- E precisam ser alertadas para tomar os cuidados devidos.
-- A
situação exige mesmo discrição e atenção.
-- Sobretudo
com os jornalistas. São hábeis em explorar tragédias e ganhar com a curiosidade
malsã dos leitores.
-- Oh, nem me fale.
-- Agora,
se me der licença, devo ir.
-- Não
quer esperar o café?
--
Agradeço, mas, como disse, tenho outras visitas a fazer.
Catarina
acompanha Sóror Helena até a porta. De volta à sala, sente um arrepio correr a
sua espinha. Pega as correspondências e sai. Em uma bacia sobre a borda do poço
do pomar, põe fogo na carta lida e a deita sobre as demais. Labaredas se
alastram pelas folhas, em contorções flamejantes que suscitam pensamentos sobre
os suplícios de Carlota. Registros consumados, joga as cinzas em um canteiro e
ordena ao jardineiro plantar um pé de rosas no local.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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