segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Capítulo Setenta e Seis

A TRAGÉDIA


O receio de Catarina aumenta ao ver o corpo ereto da Sóror em rosto abatido
-- Benção, reverendíssima.
-- Deus te abençoe.
-- Por favor, queira se sentar.
-- Desculpe-me aparecer sem ter-lhe avisado.
-- Sinta-se em casa.
-- Não sabia do seu estado.
-- Aguardo para dezembro, diz Catarina, mentindo.
-- Que Nossa Senhora lhe dê uma boa hora.
-- Assim seja, amém.
-- Talvez devesse poupá-la das razões da minha visita, porém não posso.
-- O que houve?
-- Carlota faleceu.
O assombro eclode em Catarina e o neném chuta as costelas.
-- Não é possível.
-- Infelizmente é e aconteceu da forma mais triste que possa imaginar.
Os olhos de Catarina marejam espantados.
-- Prefiro não saber como foi.
-- Evite então ler os jornais dos próximos dias.
-- Quando será o enterro?
-- Já ocorreu, só com a presença dos familiares.
-- Onde será a missa de sétimo dia?
-- Sinto, mas ocorrerá em reserva. O caso não permite missa de exéquias.
Catarina entende que Carlota se suicidou.
-- Ah, não!
-- Deus deve ter-lhe concedido in extremis a graça do arrependimento.
-- Carlota estará nas minhas preces.
-- É um conforto saber.
-- Como está o magistrado?
-- Atônito. Mas fará tudo que estiver ao seu alcance para a alma de Carlota poder descansar em paz e os vivos seguirem adiante sem peso adicional.
Catarina reconhece no comentário uma alusão à campanha dos Cruzados.
-- Há algo que eu possa fazer?
-- Manter-se em alerta
-- Não entendi. 
-- Entre os pertences de minha irmã, encontrei correspondências que trocaram ultimamente e outra lacrada para a senhora. Estão aqui.
Do bolso da veste, a Sóror retira um maço de cartas amarradas com uma fita e o estende. Catarina empalidece e recusa a receber o volume.
-- Não tenho forças.
-- As circunstâncias exigem empenho extraordinário.
-- Se quiser, leia, mas só para si.
-- Com sua licença.
A Soror abre o envelope lacrado e lê a ultima mensagem de Carlota para Catarina.
-- Um pedido de ajuda. Não teve tempo de enviá-lo.
-- Por favor, reverendíssima, isso é muito mais do que eu posso suportar.
-- Tranquilize-se. Não irei estender o assunto. Apenas precisava saber o conteúdo da carta, ainda que os motivos do ato de Carlota nos sejam bem conhecidos.
-- Sinto muito, muito mesmo, mas não podia fazer nada.
-- Estou ciente. Tentaram o impossível, não?
-- Carlota lutava pelo casamento.
-- E acreditou na campanha. Quanta ilusão!
-- A senhora há de convir: ser preterida deve ser uma dor brutal.
-- Com certeza. Cedo na vida, conheci a rejeição. Tão bem que decidi ser freira.
-- Desconhecia como ocorreu vosso chamado para a vida religiosa.
-- Ante o nosso destino carente, pareceu-me a melhor escolha. E foi. Consegui instrução, respeito e o comando que exerço.
-- Casou-se com a congregação.
-- O consenso é com Cristo.
-- Elizabeth I se casou com a Inglaterra.
-- Uma mulher sensata.
-- Nem todas são capazes ou podem realizar escolhas similares.
-- Concordo. Mas não vim aqui para julgar as duas e sim para comunicá-la do ocorrido e dos procedimentos que tomei. Não precisamos de revelações inapropriadas.
Catarina vislumbra um cenário sombrio: a descoberta da sua participação na campanha dos Cruzados, seu nome na seção policial dos jornais, a decepção de Theodoro...
-- Acredita que recolheu tudo?
-- Penso que sim.
-- Alguém mais tem conhecimento disso?
-- Não posso precisar as confidências de Carlota para Eudóxia Novaes e Amélia Amarante. Irei participá-las do ocorrido ainda hoje.
Lampeja em Catarina a possibilidade de que as amigas saibam da campanha.
-- Foram sempre muito próximas. Ficarão abaladas.
-- E precisam ser alertadas para tomar os cuidados devidos.
-- A situação exige mesmo discrição e atenção.
-- Sobretudo com os jornalistas. São hábeis em explorar tragédias e ganhar com a curiosidade malsã dos leitores.
-- Oh, nem me fale. 
-- Agora, se me der licença, devo ir.
-- Não quer esperar o café?
-- Agradeço, mas, como disse, tenho outras visitas a fazer.
Catarina acompanha Sóror Helena até a porta. De volta à sala, sente um arrepio correr a sua espinha. Pega as correspondências e sai. Em uma bacia sobre a borda do poço do pomar, põe fogo na carta lida e a deita sobre as demais. Labaredas se alastram pelas folhas, em contorções flamejantes que suscitam pensamentos sobre os suplícios de Carlota. Registros consumados, joga as cinzas em um canteiro e ordena ao jardineiro plantar um pé de rosas no local.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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