DA PREGUIÇA
Um
bonde elétrico desliza pelos trilhos do centro de Manaus rumo aos arrabaldes da
cidade. Valentin está entre os passageiros. Ao longo do deslocamento,
rareiam-se as moradias e a exuberante vegetação torna-se mais contínua até
imperar na paisagem. O bonde penetra a floresta e, pouco a pouco, aproxima-se
da Estação das Flores, ponto final de onde repetirá o itinerário algumas vezes
mais durante o dia.
O
local reproduz uma aldeia indígena. Bebidas, alimentos, mudas de flores, cestas
e outros artigos são vendidos em ocas dispostas em um círculo. Pequenas mesas e
bancos de madeira ocupam o pátio central. Os passageiros se espalham pelo
espaço. Estão ali para passear, comprar produtos, caçar ou coletar espécies da
flora.
Valentin
visita as ocas, escuta conversas e troca palavras com os atendentes. Fotografa
a Estação. De foto em foto, penetra a mata de profundezas escondidas pela massa
de galhos entrelaçados e abarrotados de folhagens e pedúnculos.
Durante
o percurso, o olhar intervém na realidade. Foca o que acha atrativo e ignora o
de apreciação incerta para os editores. Captada pela chapa fotográfica, a parte
torna-se o todo: revela uma região de belas borboletas, de folhagens luzidias e
de frutos, favas e sementes, em formas e texturas exóticas. Fica de fora a
vegetação combalida por formigas ou anemiada por fungos, brocas e pulgões.
Atraídos pela suculenta fartura da decomposição vegetal, insetos perturbam os
sentidos, exacerbam a pele, e Valentin imagina o que a viagem lhe reserva: o
contato com a natureza rasgada de fantasias, com cada espécie a comer sua presa
e sendo comida por seu predador.
Prossegue
a exploração em passos cautelosos. De quando em quando, um grasnar próximo, um
estalar atrás, um ruflar ao lado, um farfalhar em frente movimentam seu rosto
em alerta. Ouve um espocar seco e a vida agita-se no emaranhamento do reino
vegetal. Com receio de tiros perdidos, recua na sua incursão por esse corpo
quente e úmido, de odor ora fresco, ora forte, e de rumor quase sempre
invisível.
Um
passageiro do bonde surge com uma espingarda pousada no ombro e um saco na mão.
Cumprimenta-o e se põe ao lado. Diz o nome de algumas árvores e identifica o
canto de pássaros. De repente mira um alvo e atira. Um gemido corta o ar
enquanto algo escuro cai da árvore.
-- O
que foi?
--
Venha ver.
Ao
encalço do homem, Valentin descobre uma preguiça que agoniza com seu olhar
infantil e as mãos estendidas.
-- Mas
por que atirou?
-- Ora
vivo disso.
-- O
bico tá sofrendo. Mata de uma vez, então.
--
Morre já. Outro tiro estraga a pele. Quero para empalhar.
Valentin
se contém para não esmurrar o caçador. E se ajoelha sem saber o que fazer para
confortar a agonia do bicho. O gemido do animal torna-se fraco e se extingue. Ele
ali ajoelhado, o atirador de pé e a preguiça morta no chão formam um quadro de
assombros diferentes. Valentin se levanta e anda sem dar atenção ao que o outro
diz.
--
Moço, é só um bicho.
Hora
depois, no bonde, o atirador comenta com um passageiro sobre o estranho sujeito
sentado no fundo do bonde, com a máquina fotográfica.
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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