segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Capítulo Cinquenta e Seis

DA PREGUIÇA


Um bonde elétrico desliza pelos trilhos do centro de Manaus rumo aos arrabaldes da cidade. Valentin está entre os passageiros. Ao longo do deslocamento, rareiam-se as moradias e a exuberante vegetação torna-se mais contínua até imperar na paisagem. O bonde penetra a floresta e, pouco a pouco, aproxima-se da Estação das Flores, ponto final de onde repetirá o itinerário algumas vezes mais durante o dia.
O local reproduz uma aldeia indígena. Bebidas, alimentos, mudas de flores, cestas e outros artigos são vendidos em ocas dispostas em um círculo. Pequenas mesas e bancos de madeira ocupam o pátio central. Os passageiros se espalham pelo espaço. Estão ali para passear, comprar produtos, caçar ou coletar espécies da flora.  
Valentin visita as ocas, escuta conversas e troca palavras com os atendentes. Fotografa a Estação. De foto em foto, penetra a mata de profundezas escondidas pela massa de galhos entrelaçados e abarrotados de folhagens e pedúnculos.
Durante o percurso, o olhar intervém na realidade. Foca o que acha atrativo e ignora o de apreciação incerta para os editores. Captada pela chapa fotográfica, a parte torna-se o todo: revela uma região de belas borboletas, de folhagens luzidias e de frutos, favas e sementes, em formas e texturas exóticas. Fica de fora a vegetação combalida por formigas ou anemiada por fungos, brocas e pulgões. Atraídos pela suculenta fartura da decomposição vegetal, insetos perturbam os sentidos, exacerbam a pele, e Valentin imagina o que a viagem lhe reserva: o contato com a natureza rasgada de fantasias, com cada espécie a comer sua presa e sendo comida por seu predador.
Prossegue a exploração em passos cautelosos. De quando em quando, um grasnar próximo, um estalar atrás, um ruflar ao lado, um farfalhar em frente movimentam seu rosto em alerta. Ouve um espocar seco e a vida agita-se no emaranhamento do reino vegetal. Com receio de tiros perdidos, recua na sua incursão por esse corpo quente e úmido, de odor ora fresco, ora forte, e de rumor quase sempre invisível.
Um passageiro do bonde surge com uma espingarda pousada no ombro e um saco na mão. Cumprimenta-o e se põe ao lado. Diz o nome de algumas árvores e identifica o canto de pássaros. De repente mira um alvo e atira. Um gemido corta o ar enquanto algo escuro cai da árvore. 
-- O que foi?
-- Venha ver.
Ao encalço do homem, Valentin descobre uma preguiça que agoniza com seu olhar infantil e as mãos estendidas.
-- Mas por que atirou?
-- Ora vivo disso.
-- O bico tá sofrendo. Mata de uma vez, então.
-- Morre já. Outro tiro estraga a pele. Quero para empalhar.
Valentin se contém para não esmurrar o caçador. E se ajoelha sem saber o que fazer para confortar a agonia do bicho. O gemido do animal torna-se fraco e se extingue. Ele ali ajoelhado, o atirador de pé e a preguiça morta no chão formam um quadro de assombros diferentes. Valentin se levanta e anda sem dar atenção ao que o outro diz.
-- Moço, é só um bicho.
Hora depois, no bonde, o atirador comenta com um passageiro sobre o estranho sujeito sentado no fundo do bonde, com a máquina fotográfica.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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