RIO ACIMA
4.7. 1904.
Há dois dias desembarquei em São Gabriel da
Cachoeira. Com o apoio de Cluny, superintendente do local, que conheci a bordo,
eu organizo a próxima etapa da viagem. Comprei uma canoa com tolda de palmeira
na popa. Contratei dois tapuios, índios sem tribos que fazem serviços para os
sítios da região. Foram entregar mercadorias mais na frente, trazidas pelo
batelão. Pedi para arranjar outra montaria e remadores. Não me imagino
espremido entre bagagens e homens. Minha alma precisa de espaço e ando com um
humor de lascar. Cansei de ver paisagens paradisíacas e habitantes
fragilizados. Nada nesses sertões sinaliza o florescimento de uma sociedade
próspera.
São Gabriel é o retrato fiel dessa
desalentadora realidade. Criada por missões religiosas, há cerca de 250 anos,
para o aldeamento dos nativos, a vila recebeu em 1763 um forte para proteger as
fronteiras portuguesas dos domínios espanhóis. Com a forma de uma estrela, a
construção ainda está de pé sobre o maciço de uma rocha perto da única rua da
vila. A vegetação tomou conta da construção e os canhões de ferro viraram peças
de museu. Cinco soldados vigiam quem sobe e desce o rio.
A maioria das casas está abandonada. Os
poucos habitantes sobrevivem da pesca e do que conseguem extrair de um solo
rochoso coberto por uma camada de húmus nada fértil. Conforme a exploração do
“ouro negro” avança na região, os nativos recuam cada vez mais mata adentro,
com medo da violência que acompanha esse avanço. Só saem para negociar caças e
artefatos quando os batelões atracam na vila. Depois, desaparecem. E há a
idílica natureza: o sinuoso rio Negro de águas límpidas e frescas, com suas
ilhas verdes e suas quietas enseadas de areia branca ornadas por palmeiras e
pedras. Tudo o mais é mata densa. Distante, a leste, há a imponente serra de
Curicuriary, com suas encostas íngremes e, a oeste, a magistral serra do
Cabary, modulada como uma mulher deitada com as mãos postas sobre o corpo e o
rosto a mirar o céu. Mais um deslumbramento do mundo natural num cruel
contraste que vela e desvela o desolador e modorrento cenário humano local.
Dias depois, Valentin
parte de São Gabriel com duas montarias e a tripulação acrescida de três índios
Desana, moradores de matas mais distantes, em passagem pela vila. Pilotam a
canoa onde estão as bagagens da expedição e levam a reboque uma ubá.
O rio Negro
corre sobre uma pedraria continuada e logo os navegantes enfrentam o fervedouro
de ondas. A primeira montaria vence o rebojo espumante e alcança um remanso,
enquanto a detrás rodopia e a ubá rebocada é lançada de um lado para outro.
Numa manobra precisa, o piloto Desana escapa das investidas das correntezas.
Mais na frente, rochas à flor da água se interpõem no caminho. O grupo contorna
os cachopos num ziguezague ondeante. No final do trecho, procuram a margem para
descansar. Em dia de sol forte, as águas escuras reluzem. Valentin tira
fotografias.
Ao
cair da tarde param em uma pequena praia para pernoitar. Penduram redes nos
galhos de árvores, acedem fogueiras e servem-se do rancho providenciado em São
Gabriel. Um som forte chega da mata. -- São macacos, diz Wenceslau, o tapuio,
chefe da tripulação, que fala português e conversa com os outros nativos na
Língua Geral. Com cara de coragem, Valentin enfrenta o medo de dormir no
relento.
Pela
manhã o comboio penetra o Uaupês de águas verde-escura. Ora avança em curso
calmo, ora se atrasa nas águas bravas e rápidas. Bem antes do entardecer,
Wenceslau sugere pousar. Exausto, mordido de pernilongos, Valentin acata a
sugestão. Descobre no dia seguinte que tomou a atitude correta. Só depois de
sete horas de pesada remada, encontram uma praia para atracar. Ali se acomodam.
Um temporal desaba. A friagem chega. Os carapanãs não dão sossego. Piretros são
acessos e os pensamentos do viajante vagam a falta de sentido das noites
medonhas e dos dias estafantes vividos.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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