sábado, 21 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta e Dois

NA CASA ROSADA


Acompanhado de um criado uniformizado, Valentin guarda numa chapelaria a bagagem e adentra o salão principal: um espaço amplo de paredes revestidas de tecido e teto pintado com arabescos. Poltronas em veludo vermelho formam pequenos ambientes na entrada e nos fundos do espaço. A parte central possui mesas redondas e defronta um palco onde beldades dançam e cantam fantasiadas de ninfas salientes. De um lado da ribalta, há um bar e, na diagonal do outro, músicos se dispõem ao redor de um piano. Formosas em decotes exuberantes entretêm clientes às mesas e outras, solitárias, são vistas nas poltronas. Fartas cortinas adornam janelas e também uma porta de madeira decorada por frisos dourados.
Valentin pergunta onde pode lavar as mãos. Levado pelo criado, passa pela porta, percorre um corredor, vira ali, depois acolá e entra no toalete. Ao sair, o criado não está mais a espera. Anda e abre a porta errada. Depara-se com uma festiva reunião masculina da qual Theodoro participa. Ambos se veem e lastimam consigo mesmos o reencontro. Valentin não se move com um ar blasé, já Theodoro caminha em sua direção com um sorriso amplo e nada franco. O criado entra ao encalço do intruso.
-- Senhor, por favor, me acompanhe.
-- Deixe-o, é meu convidado, diz Theodoro e, em seguida, põe as mãos nos ombros de Valentin.
-- Por que não deu notícias?
-- Cartas se afogam nos rios.
-- Sempre um gozador. Quando retornou?
-- Horas atrás.
-- Bom te ver. Estou de passagem. Ossos do ofício.
-- Nem o vejo aqui.
-- Este é o meu amigo. Vamos para outro aposento.
-- Não se incomode, estou de saída.
-- Faço questão.
Theodoro pega o braço de Valentin, que insiste.
-- Fique à vontade.
-- Estou. É apenas uma celebração. Aprovamos a vacina contra a varíola.
-- Razão para voltar.
-- Há tempo pra tudo. Já escolheu a dama?
-- Não sei se vou ficar.
-- Tenho meus contatos na casa. Pedirei o melhor regalo para ti.
Valentin pensa no disparate de seus dilemas morais: sofre por desejar a mulher do próximo, enquanto o próprio se farta em luxúrias extraconjugais. Provoca o rival.
-- Passei pelo solar quando cheguei.
Theodoro não gosta de saber – e o esboço de insatisfação que se delineou na sua feição imediatamente se transforma num ar jactante.
-- Viu a surpresa?
-- Vi. Parabéns.
-- Obrigado. Mais um mês e fumamos um charuto juntos. Ficará no solar, não?
-- Agradeço. Tenho outros planos.
-- Que não impedem de estar conosco.
-- Em absoluto.
Theodoro abre uma porta e faz menção para o amigo entrar.
Os olhos de Valentin passeiam pelo ambiente. Um confortável divã estende-se ao longo de uma parede, com almofadas de ponta a ponta. Tapetes macios cobrem o chão; uma divisória de treliças indica a existência de outro ambiente.
-- Belo espaço.
-- Reservei para homenagear um convidado especial. Não pôde vir. Cedo a vez para você. Merece o oásis depois de meses na selva.
-- Sempre me oferecendo o melhor.
Theodoro se inquieta com a ironia e, como sempre, dissimula sua emoção.
-- Tenho você como um irmão. Um vinho de entrada?
-- Impossível recusar.
-- Irei providenciar. Já volto.
Valentin pensa em ir embora, mas a ideia de que Theodoro seja o convidado especial do espaço o retém. Quer confirmar a suspeita. Ultrapassa a divisória e vê uma cama de casal envolvida pela cortina transparente de um dossel. Observa duas portas. Anda até a mais próxima e descobre que está trancada. Dirige-se para a outra que se abre para a sala de banho, onde uma espaçosa banheira de louça mira a claraboia do teto. Urina, numa majestosa privada pensando em quanto Theodoro é um otário. Sente prazer de ter possuído Catarina. E o amor conhecido no baile fiscal, florescido em Paris, consumado em uma inesquecível noite de paixão e lembrado ao longo dos rios da Amazônia como a fonte capaz de minorar a sensação de uma vida desguarnecida de afeto e sentido, esse amor tem seu significado reduzido a um ‘perdi, mas levei também’.
Em meio aos devaneios, um odor ocre e velho conhecido o alcança e o faz salivar. Prontamente, Valentin refaz o caminho e para diante do que vê: um biscuit vivo, de olhos orientais, ajoelhado à mesa baixa da sala, com a piteira de um narguilé à boca carnuda de carmim. O biscuit bafora a fumaça do ópio e a névoa do condão do bem-estar se eleva em espiral e ondula o espaço acima da mesa ocupada por uma garrafa de vinho e taças. Um bilhete está ali: Boas vindas. Até qualquer hora. T. Os olhos orientais abaixam-se ao ver Valentin – e o pênis pressiona a calça.

Theodoro não se demora na Casa Rosada. Parte com a ironia ouvida a inquietá-lo. Tão logo chega ao solar, assusta a esposa com a sua entrada intempestiva no quarto.
-- Por que não me mandou avisar?
O coração de Catarina dispara.
-- Do quê?
-- Ora, de Valentin.
-- Aguardava você para contar. Como soube?
-- Não interessa. Se aparecer de novo, não o receba. Mande dizer que está indisposta. Quero ele longe daqui. Boa noite, diz e sai.
Catarina abraça a barriga: Estrela-guia me cubra com seu manto.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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