quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Capítulo Oitenta e Quatro

ALMA GENTIL


Como um ladrão, Valentin aproxima-se do solar. Espreita o jardim e o atravessa. Pela varanda da ala íntima, adentra a sala de estar. Sem cruzar com uma alma sequer, atravessa o espaço, sobe a escada e invade o quarto do casal. Catarina petrifica-se, sentada na poltrona. Seu olhar gruda no intruso, que tranca a porta, caminha em sua direção, se inclina, apoiando os braços nos da poltrona, e sussurra no seu ouvido:
-- Sórdida.
Vira o rosto de lado, mas o outro faceia o seu.
-- Entendo agora cada promessa do seu olhar, cada ardor do seu corpo. Quis que eu a engravidasse.
-- Não é verdade e, por favor, me deixe respirar.
O pedido é ignorado.
-- Fui escolhido como um escravo reprodutor.
-- Está fora de si.
-- Estou sem chão, isso sim. Estarrecido com essa trama ignóbil urdida por vocês, diz em gestos amplos que o levam a se afastar. 
Catarina sente uma contração e tenta sobrepujar a dor. A última coisa que quer é que Valentin perceba a proximidade da hora do parto.
-- Respeite o meu estado.
-- Respeito? O que sabe desse sentimento se me jogou no limbo desse acinte?
-- O que posso fazer para convencê-lo da minha sinceridade?
-- Nada. A farsa acabou. Ruiu por terra o álibi da viagem para Petrópolis. Descobri onde Theodoro se escondeu para liberar sua cama para mim e quem mais o ajudou nessa encenação. Não foi preciso muito esforço para eu entender o seu papel primeiro de amante de voluptuosa, depois de adúltera arrependida.
Catarina se espanta com a perspectiva de que Theodoro tenha tido a mesma ideia que a sua para solucionar o problema da fecundação – e a sua mente opera em moto contínuo. Lampeja a dificuldade dele para admitir a própria esterilidade e lhe propor a transgressão. A rejeição ao seu corpo, como uma inesperada reação conservadora à sua entrega a Valentin. A incapacidade em retribuir com ardor à sua cumplicidade de lhe dar o atestado público de virilidade. Tudo se configura como uma verdade insuportável: Theodoro não é o raro entre raros que pensou que fosse. Recupera o controle.
-- Por que diz isso? De onde tirou essas ideias? Que esconderijo é esse?
-- Tolinha! Quem pergunta hoje sou eu: tramaram a farsa entre beijos e gozos?
-- Poupe-me de suas ofensas e conte-me o que pensa saber.
Valentin recusa a lhe dar armas para novas dissimulações.
-- Pergunte ao seu comparsa. E confesse: essa criança é minha.
-- Aceite a verdade: Theodoro é o pai.
-- Por quanto tempo acha que pode esconder a mentira?
-- O que preciso fazer para lhe convencer da minha sinceridade?
-- Hipócrita.
-- Por que me trata assim?
-- Eu que pergunto: por que se tornou tão vil?
-- Oh, meu Pai! – diz sentindo a dor de outra contração.
Fecha os olhos e inspira profundamente, como se o ar puxado pudesse extrair a dor. Valentin entende a reação como medo e intensifica a pressão.
-- Irei defender a paternidade nos tribunais.
-- Não faça isso, pelo amor de Deus.
-- Aguarde e verá.
-- Nenhum tribunal irá curar mágoas.
-- Mas as compensará com a vergonha que sentirão.
-- Por tudo que lhe é mais sagrado, livre-se da vingança de um desejo impossível.
-- Não tem estatura moral para dizer o que devo fazer.
-- Pare de se martirizar. Se dê a chance de ser feliz.
-- Chama de chance resignar-se a uma trama sórdida como a que urdiram?
-- Não existe trama alguma.
-- Isso quem decidirá é a justiça.
-- Será responsável por um mal irreparável. Marcará com escândalo sem razão de ser a vida de um inocente e constrangerá a si mesmo no espírito dele. É o que quer?
A perspectiva de prejudicar o filho o cala. Por um átimo permanece estuporado ante a própria impotência para se vingar da violência sofrida e lutar pela criança. Mas a dor não lhe dá paz e exige que imponha tormento similar à fonte do seu sofrimento.
-- Não posso poupá-lo de conhecer a crueza da vida e dane-se o outro. Não foi isso que sempre me recomendou?
-- Basta, Valentin.
-- Não acha que tenho nas mãos um excelente enredo de um folhetim?
-- Irá se jogar nos braços das trevas.
-- A cada semana uma revelação picante e todos ávidos de saber mais.
-- Tão logo caia em si, se arrependerá amargamente.
-- Será um sucesso sem precedentes.
-- Não se maltrate assim. Sua alma é gentil.
-- Por que então me destruiu?  -- ele grita.
-- Entenda de uma vez por todas: esta criança é de Theodoro e jamais, nunca, em tempo algum, eu lhe faria mal.
Nasce em Valentin a dúvida de que Catarina esteja falando a verdade, de que o plano tenha sido maquinado somente por Theodoro. A dúvida o fragiliza de vez. Sai antes que desabe em prantos, que implore amor. Na escada, esbarra com Josefa: sofrimento e surpresa se miram, até que cada um segue seu rumo. A criada penetra o quarto e encontra a patroa de pé, apoiada numa parede e o rosto marcado pela dor.
-- D. Catarina!
-- Mande chamar a médica. Minha hora chegou.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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