segunda-feira, 2 de março de 2015

Parte III - Capítulo Um

NOVO DIA


É a antemanhã do novo dia. Minuto a minuto, se esvai, um pouco mais, o negror dos morros de São Sebastião do Rio Janeiro. Num crescendo de nitidez, escarpas nuas e elevações verdejantes se exibem distantes, abeiradas ou erguidas do mar. Na direção da cidade velha, os raios dos lampiões ainda delineiam a sinuosidade da orla modelada pelo Atlântico. E, entre as encostas, no aglomerado dos casarios, amarelam ali e acolá as janelas de púlpito e de parapeito que vedam o súbito das candeias acesas pelo despertar. Acordam também as ruas que desaguam no cais. Num ponto e outro, venezianas de quiosques iluminados a bico de gás se abrem e logo carroceiros, estivadores e catraieiros se aproximam do balcão, onde se servem de broa, café e caninha. Dos restaurantes do insone mercado, cavalheiros, em alegrias etílicas, saem abraçados a damas da noite e se dispersam em coches tomados à Praça Quinze ou em barcas do vizinho Pharoux. À medida que o sol se levanta, mais pessoas e veículos afluem às ruas, e cascos coloridos, em toldos brancos, singram as águas resplandecentes da Baía da Guanabara. Em pouco tempo, a Capital Federal palpita na cadência febril do primeiro dia útil, do décimo-quarto ano, da República dos Estados Unidos do Brasil.
Herculano e Dr. Eugênio tomam o bonde no arraial de Copacabana com destino ao centro da cidade, onde cada um tem o que fazer. O médico se encontra com um colega e o militar cede seu lugar ao conhecido e se isola em outro banco. Se não fosse o adiantado da hora, teria esperado o próximo carro para realizar o trajeto sozinho. Ainda lhe é vivido o modo brusco com que Dr. Eugênio retirou Páscoa da cama e, da mesma forma, não esqueceu a figura da esposa vergada sobre aquele braço, como uma boneca de pano rota e desconjuntada. Imagina a mulher no colo de um desconhecido, em meio às ondas do mar... Não. Não posso autorizar esse banho. Páscoa tem de reagir.
Pensa no desalento da esposa como algo factível de ocorrer em homens que tiveram arruinados anseios longamente acalentados. Conhece essa arruinaria e o esforço exigido para não sucumbir aos seus efeitos. Porém, não entende em quê a vida desapontou Páscoa, se possui tudo o que uma mulher pode aspirar e jamais sentiu na pele o grande problema da existência: as afeições egoístas que impedem a Pátria de ser uma mãe gentil com toda a sua prole. Se tivesse sofrido um mínimo do que a maioria sofre, não se deixaria ser dominada por emoções descabidas, conclui. Este é Herculano: um crente do primado do autodisciplinamento e da razão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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