quarta-feira, 4 de março de 2015

Capítulo Quatro

DISCIPLINA INTELIGENTE E PENSANTE


Cedo na vida, Herculano conheceu a penúria das crianças libertadas pela lei do ventre livre. Apartadas aos oito anos de idade de suas mães, que continuam escravas, eram encaminhadas às instituições de menor, mas nem todas ali permaneciam. Muitas fugiam dos maus tratos dos seus cuidadores que podiam tirar proveito dos seus serviços, como aquelas que ficavam nas senzalas. Mais tarde, já rapazola, Herculano se habituou a cruzar com os sexagenários alforriados, que perambulavam pelas ruas e, a toda hora, ouvia rumores sobre negociatas realizadas com os recursos do Fundo de Emancipação, criado para apoiar ex-cativos. Ressentia-se com essa realidade e com o arrastado abolicionismo que lhe suscitava a perspectiva sombria de ser concluído com os libertos abandonados à própria sorte.  Acima de tudo, revoltava-se com o parlamento, a quem culpava pelo tempo e saber desperdiçados para pôr fim à tamanha desumanidade.
No lugar de Pedro II, já teria recorrido ao poder moderador, superior ao do parlamento, para fazer o que precisava ser feito: acabar com a escravidão, integrar os emancipados na sociedade e inserir a pátria na era industrial. Da mesma forma, teria sido inflexível na investigação das denúncias do mau uso do erário público e no disciplinamento dos desviantes. Para Herculano, nem a moral teológica guiava a conduta de muitos brasileiros. Achava que esses indivíduos encontravam-se num estágio de evolução, no qual as afeições egoístas suplantam as altruísticas e impedem os esforços comuns em prol do progresso social e o da nação.
Outra questão decorrente afligia Herculano. Há alguns anos, soldados infringiam a lei que proibia a classe de se manifestar. Primeiro opinaram a favor da abolição, depois defenderam também a honra atacada por políticos, que qualificaram de insubordinação os pronunciamentos. Sucessivas punições e infrações acirraram os ânimos entre o Exército e o Visconde de Ouro Preto, presidente do conselho ministerial da monarquia brasileira. Nesse clima, o marechal Deodoro da Fonseca, leal monarquista e forjado, até então, na mais rigorosa disciplina, ignorou a ordem de prisão a um oficial infrator e foi punido com a transferência para Mato Grosso. A solidariedade ao marechal contagiou as ideias e os debates dos jovens da Escola Militar da Praia Vermelha.
Parte dos alunos associou o agravo à honra dos oficiais a mais uma das moléstias da monarquia, num cenário em que a República era o porvir necessário, único e inadiável dos povos humilhados e abatidos da sua dignidade. Outros atribuíram o deplorável agravo ao despreparo moral do gabinete imperial para reconhecer o valor do Exército na luta pelo fim da escravidão. A solução estava na deposição do gabinete, não em mudar a forma de governo. No meio do fogo cruzado, e de modo inusitado, Herculano se expressou a favor da liberdade de crítica dos oficiais. Debaixo de aplausos esfuziantes encerrou a exposição.
-- Os soldados são cidadãos. Têm o direito de seguir uma disciplina que seja inteligente e pensante, e jamais poderão se calar diante de uma ordem opressora.
Como dois rios caudalosos, o clamor antagônico da mocidade militar convergiu para a ideia de que a livre expressão era um direito superior ao dever da obediência. O consenso alcançado transformou-se em reconhecimento e respeito a Herculano. Nunca antes o Exército e o jovem formaram um só corpo harmonioso como nesses dias de debates acalorados e de bandeiras desfraldadas em nome da liberdade dos negros e dos direitos dos homens e do cidadão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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