segunda-feira, 2 de março de 2015

Capítulo Dois

PEDRO II


A morte do pai, quando Herculano era bebê, determinou a mudança da família do quarto de um cortiço para outro na Santa Casa de Misericórdia, onde a mãe se empregou como cozinheira. Anos depois, Sabina encaminhou a filha Ester para o internato das freiras que serviam naquele hospital e dirigiu sua determinação para obter uma bolsa de estudos para o filho que, nessa época, cursava o primário numa escola pública. 
O rigor da faina materna cedo se evidenciou ao espírito do garoto, bem como as diferenças entre o seu mundo e o outro, no qual a labuta se mostrava leve para aqueles que trajavam roupas elegantes e moravam em belos casarios. Dessa observação, nasceu uma sensação de abafamento e da sensação vicejou o desejo de desfrutar do bem-estar observado. O caminho da realização se descortinou nas palavras de Sabina: “não arrelie ninguém e estude para ser aceito no Pedro II. Quem estuda lá, sempre vira um doutor”. O propósito da mãe se tornou o do filho – e a porta do imponente externato se abriu para o adolescente em 1876, bem como a do alojamento dos empregados, onde passou a morar com Sabina, a nova cozinheira do colégio.
Na condição de um dos educados à custa do monarca, Herculano se relacionou, no estrito do necessário, com os colegas. Temia o risco de uma confiança ilusória ou de um ato imprudente que pudesse lhe tirar a dádiva desfrutada. Portava-se como o menino que fizera da contenção de si o meio para não importunar alguém, com poder de desalojá-lo do quarto do emprego da mãe. Convivia sem conviver numa disciplina rigorosa dentro da sala de aula e em passagens rápidas pelos demais espaços da escola. Com essa atitude, despertou antipatias e indiferenças e passou despercebido para alguns alunos, como para Theodoro de Alcântara Avelar, que cursava série anterior e pertencia ao grupo dos jovens cavalheiros, como eram chamados os não bolsistas, filhos de família aristocrática. Nada fez para reduzir tal invisibilidade e desafeição. Ao contrário. Expandiu sua natureza reservada, observadora, e sua concentração no estudo. Obteve boas aprovações dadas com louvor até pelo imperador, que acompanhava de perto as atividades dessa instituição batizada com o seu nome e menina dos seus olhos.
Dom Pedro II gravitou na vida de Herculano, como um sol. Porém, a descoberta da teoria da evolução comprometeu essa luminosidade. A existência como obra do acaso fortaleceu o papel dos governos no ordenamento das condições de vida dos povos e incitou questionamentos acerca da eficiência do monarca enquanto estadista. Como um soberano amante do saber possui um reino, onde impera a escravidão e a prosperidade alcança poucos? O ressentimento com essa realidade ora nublou a luz do astro-rei, ora foi trespassado pelos raios desse sol. A ambição do jovem encorpou-se. 
Sabina faleceu de repente sem ver o filho formado e sem ter o dote exigido para o noviciado pretendido pela filha Ester. A situação do órfão chegou ao conhecimento de Pedro II, que o chamou para conversar. Durante a audiência, marcada pelos sentimentos de receptividade e rejeição ao consolo real, uma transformação se processou no súdito. Seu porte se alongou em altivez, seu olhar se tornou mais direto e a sua voz, mais firme. Pleiteou a troca da sua bolsa de estudos pelo dote da irmã. D. Pedro se preocupou.
-- Irás interromper os estudos?
-- De modo algum, Majestade. Continuarei no curso preparatório da Escola Militar da Praia Vermelha. Penso fazer engenharia e Estado-maior.
-- Queres mesmo servir o Exército?
-- Sim, tenho a vocação, respondeu com o corpo retesado por mentir.
Era-lhe impossível falar a verdade. Coisas do orgulho. Da vergonha de revelar que escolhera premido pela necessidade. Poderia até ter optado pela Marinha, se a corporação oferecesse as vantagens da Escola Militar: curso superior, alojamento, comida e uniforme, tudo de graça, além do benefício de um soldo mensal.
-- Sei... E a menina sente o chamado para a religião?
-- Desde pequena, respondeu tomado pelo conforto da verdade, mas, em seguida, se inquietou porque o monarca ficou quieto com um olhar distante, até que o fitou.
-- Pensei que fosses seguir o caminho da humanidades.
-- Dessa vereda de luz, jamais me afastarei.
-- Faço votos. Estude os livros da Guerra, mas devote-se a entender bem os da Natureza e da Paz, porque fora dessa compreensão só pode haver ciência de papagaios – não o conhecimento das coisas e dos homens! Esse saber te ajudará a nunca abrir teu coração ao ódio e te orientará a sempre pôr teus dons a serviço do bem. Nesse credo fui educado e aconselho que o abraces também.
A declaração acendeu a culpa em questionar a eficiência do estadista Pedro, assim como acirrou a ansiedade desencadeada pela negociação em curso.
-- Farei meu o vosso credo, Majestade.
-- Terás bons professores para te orientar.
-- O Exército é rigoroso. Exige média final maior que a da Marinha.
-- Responderás à altura: és inteligente e aplicado. Tens o meu apoio. Ademais, a paz precisa da lucidez de grandes generais.
O coração de Herculano rufou como tambores e sentimentos flamejaram. O alívio do pleito atendido e o orgulho do dever cumprido com a irmã amenizaram a tristeza de deixar o Colégio, ao mesmo tempo em que as perspectivas de um destino promissor, suscitadas pelas palavras ouvidas, abrandaram a dor da orfandade e as inseguranças com o futuro. Aflorou a vontade de abraçar Pedro como um filho pródigo que, arrependido, se lança aos braços compadecidos do pai amado e amoroso. Mas a personalidade contida e o respeito ao protocolo uniram-se em bloqueio, e o jovem apenas beijou a mão quente e macia do rei enquanto sentiu a outra pousar sobre sua cabeça, numa benção que jamais esqueceu. Inesquecível também foi o encaminhamento do pleito. Ester entrou para o convento e Herculano foi transferido para o internato do colégio, lá em São Cristóvão, onde se formou e de onde partiu em 1884 para iniciar o curso superior.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

2 comentários:

  1. Tereza, a cada leitura, mais e mais me surpreendo com a maestria com que você entrelaça a ficção à realidade, tornando seus personagens tão verossímeis, que temos a impressão que, de fato, eles existem, passeiam pelas ruas deste Rio de Janeiro tão distante, sofrem, amam e sonham como nós! Parabéns! Sua leitura me proporciona um oásis de prazer, em meio aos dias tumultuados que vivemos. Viva a literatura! Grande abraço desta fã
    Ludmila Saharovsky

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  2. Obrigada, minha querida irmã de alma e companheira de tantas jornadas.

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