O BEATO ANTÔNIO CONSELHEIRO
Em novembro de
1896, notícias vindas da Bahia puseram Herculano de sobreaviso. O relato contava que
um juiz daquele estado pedira proteção policial para o governador recém-eleito,
porque seguidores de um beato, chamado Antônio Conselheiro, planejavam saquear
sua cidade para retirar uma mercadoria que fora ali comprada e não havia sido
entregue por causa de desavenças comerciais. Uma tropa se deslocou para o
local. Como nada encontrou, o destacamento resolveu averiguar a conformidade em
Canudos, vilarejo onde moravam os ameaçantes. No meio do caminho, houve um
confronto no qual morreu uma centena de sertanejos e uma dezena de praças. Em
nome dos soldados mortos, políticos baianos exigiram o revide e o governador
solicitou reforço federal.
Herculano sabia da existência do beato. Há dois anos lera em uma gazeta que Conselheiro se recusara a pagar impostos e comandava dois mil homens com o intuito de restaurar o antigo regime. O distante local do comando e o número de comandados o impressionaram. Não o objetivo do comando. Tinha que os erros do presente republicano arremessavam para as terras do olvido os pecados do passado monarquista. Deslembrança, nostalgia. Tão célere
como passara pela imprensa, o religioso atravessou o campo de atenção de Herculano, e agora retornava, acompanhado do parecer de um senhor local, o barão de Jeremoabo.
-- O deplorável
fanatismo e a anarquia devem cessar para a honra do povo brasileiro, para quem
é triste e humilhante que, ainda na mais inculta nesga da terra pátria, o
sentimento religioso desça a tais aberrações e seu partidarismo político
desvaire em tão estulta e baixa reação.
Quinhentos
soldados marcharam para Canudos, numa ordem expedida pelo vice-presidente
da nação que, desde novembro, substituía Prudente de Morais, licenciado por
motivos de saúde.
Preocupado com o prenúncio de outra guerra civil no país, Herculano esperou a vitória e se alarmou quando soube que a expedição fracassara. Mais um agrupamento militar foi organizado e enviado para o local. A derrota se repetiu e também alcançou a terceira expedição que seguiu para Canudos. Como sertanejos
podiam ter tal supremacia bélica? Era a pergunta que Herculano se fazia atônito
e em uníssono com muitos. O pânico se disseminou pela população e o
clamor de imprecações se ergueu contra o governo por ter descuidado da ordem do
país: “estamos entregues a um incompetente Exército e à mercê da ferocidade de
bárbaros” era o consenso.
Herculano se
envergonhou com o fundamentado julgamento e temeu ao ouvir rumores de que
forças estrangeiras treinavam os insurretos nas mais modernas técnicas de
guerra. Uma gazeta acusou o editor de um jornal monarquista de ter enviado
armas para os sertanejos e despertou a ferocidade dos florianistas, que mataram
a punhaladas o editor. A violência se alastrou pelos estados de São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul, sem a polícia dar conta de manter a ordem
pública.
Prudente de
Morais interrompeu a licença médica e retornou ao poder. Uma quarta expedição
foi organizada, com quatro mil homens divididos em duas brigadas para realizar
ataques simultâneos a Canudos por lados contrários.
O recrutamento
alcançou Herculano, em luto pela morte da irmã, vítima da febre amarela.
Aguentou o baque de se separar da família e partiu para Aracaju, na posição de
tenente-ajudante do estado-maior da segunda brigada. Lá iniciou a viagem de
trezentos quilômetros por terreno escabroso, na companhia de soldados, alguns
acompanhados das suas famílias.
Conforme
avançavam sob o sol causticante, bolhas brotavam nos pés e a tropa sofria.
Faixas e solados improvisados substituíam botas e mitigavam dores. Pelo
caminho, ressoava um burburinho ondulado de exclamações desassombradas ou assustadas
com os relatos da guerra de Canudos. Nesse contar, bravuras adversárias eram
diminuídas, coragens militares enaltecidas e ataques pensados de como enfrentar
os sertanejos. Outros planos também eram imaginados: quando voltar para casa,
irei...
Herculano ouvia o
burburinho e observava as expressões céticas ou crédulas dos corpos suados e
empoeirados. Assemelhavam-se a uma horda que caminhava em busca de uma região
menos inóspita para viver. Mas o armamento denunciava a identidade do grupo, a
intenção que os movia e o trágico que os unia no áspero e escaldante sertão. A
cada vilarejo percorrido, o cenário humano se repetia: uma população pobre,
moradora de casebres a pau-a-pique, erguidos em territórios de um barão ou de um
coronel – título este herdado dos tempos coloniais, quando o país não possuía
Exército e o governo delegava a manutenção da ordem pública aos senhores
locais. Nessas paisagens, Herculano se constrangia ao ver a República se
apresentar àqueles brasileiros a partir do poder reluzente da fuzilaria em vez
das perspectivas luminosas do abc. Enxergava nesse abandono motivo suficiente
para qualquer um trocar o terço pela arma e lutar contra a opressão naquele fim
de mundo.
Estoicamente,
suportava a pressão de perceber que marchava para participar de um fratricídio
que não mudaria para melhor a forma de governar a nação. Poderia dar um jeito
de arranjar uma dispensa se visse futuro fora da guerra. Mas não. Tudo lhe
dizia que um feito heroico ampliaria sua visibilidade dentro do Exército. Precisava
dessa distinção para formar seguidores e concretizar sua missão de vida. Tais
devaneios o perseguiam ao longo dessa marcha, até que certa vez, pensou em
Conselheiro, no seu sonho obstinado de restituir a monarquia, e nas próprias pregações aos alunos. Reconheceu sua semelhança com o beato e
renovou sua convicção de que só podia contar com a sua tenacidade quase
fanática para realizar seu ideal.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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