segunda-feira, 30 de março de 2015

Capítulo Vinte e Seis

DIVINA NEGRÃO


Abdias atravessa o Largo da Carioca, ainda eriçado com o cerco da Brigada Sanitária, e acena para Benevides Vidal, outro empregado de Theodoro. Pequeno e moreno, quarenta anos recém-feitos, usa chapéu de coco, casaca curta sobre colete, calça de listras negras e botinas bem engraxadas, num todo em que a elegância da indumentária resiste ao tempo pelo esmero com que é tratada. À sela do também escovado e lustroso Tufão, BV, como gosta de ser chamado, trota rumo à Praça Tiradentes, situada mais adiante.
Ladeada acima pela Rua da Carioca e, abaixo, pela Sete de Setembro, a Praça é ampla, arborizada e famosa pelos teatros e cafés-cantantes de suas cercanias. O nome homenageia o dentista Joaquim José da Silva Xavier que morreu enforcado, em 1792, por ter tentado realizar, de uma única vez, o que precisou do concurso do tempo para ocorrer em duas etapas: a independência do Brasil de Portugal, em 1822, e a proclamação da República, em 1889.
Divina Negrão mora quase à esquina da Sete de Setembro, na São Jorge, que corre aos fundos da Praça. Na cozinha, mexe um doce ao fogo de um potente fogão de lenha. Louças secam ao peitoril da janela e tabuleiros de madeira, tachos de cobre, cestos de vime e bacias de alumínio, cobertos por panos alvos, repousam sobre os móveis. De fora, chega o canto em duas vozes femininas: Perdão, Emília, se te faço sofrer, quisera amar-te, mas não posso, porque gelado trago o peito meu; não me recrimines que não sou culpado, amor no mundo pra mim morreu. Era eu um...
Pensa no seu coração solitário e reconhece: cedeu de menos, exigiu demais e anelou o impossível: um homem trabalhador, de olhar iluminado e palavras sábias que a arrebatasse de paixão. Reconhece também que a providência não quis. Jamais pôs no seu caminho esse ser capaz de almofadar com seus braços a dureza da vida a ponto de fazê-la preterir a liberdade que custou para comprar pela labuta diária compartilhada com alguém. No desenrolar do fado de senhora da própria vida, curadora, consoladora e protetora de gente, o tempo passou, a juventude se foi e um desmemoriado vazio se formou. Às vezes, como neste instante, o vazio se alembra de si e recorda do amor anelado de um modo tão saudoso, que parece coisa de encantamento, por que como é possível sentir saudades do que nunca se conheceu? Divina suspira! O doce borbulha, desgruda do fundo do tacho, dá o ponto. Chamados substituem a cantilena.
-- Divina! Corre, espia o muro. Ó Divina, chega cá!
A mulher afasta o tacho do fogo, tampa a trempe e chega à porta aberta para o terreiro. A banda do lado esquerdo não é muito grande, apesar de possuir pés de goiaba, bananeiras e uma bica de lavar roupa. A frente é avantajada: toalhas de mesa secam em varais de bambu fincados no chão e outras toalhas quaram sobre pedraria ao lado, perto de uma cerca de madeira. Desse lado, a propriedade se estende em uma imprecisa área retangular. Há árvores, canteiros de horta e de ervas, além de galinheiro, chiqueiro e dois pares de casinholas geminadas. Conceição, de cinquenta e alguns anos, passa roupa em uma das casas. Por sofrer de baixa audição, não ouviu os chamados de Corina e de Delfina no quintal dos varais. Mais moças, avental molhado, mãos na cintura, as duas fitam BV, que parece em ascensão do outro lado do muro enquanto saboreia uma fruta. O homem ergue o chapéu para Divina.
-- Bom dia, senhora!
-- O que faz aí, assustando o povo?
-- Peço mil perdões, mas a culpa é desta goiaba. A boca encheu d’água.
-- E precisou apanhar assim?
-- Sou filho de Cosme e Damião. Subi no dorso do meu Tufão e cá estou a fazer a vontade dos meus protetores enquanto aprecio a paisagem.
-- Num brinca com os santos que eles num são bobo, ralha Corina.
-- E isso aqui é propriedade particular, acrescenta Delfina.
-- Que propriedade! Quase não se vê uma com tanto espaço vazio, pelo menos tão juntinho do centro da cidade.
Divina não gosta do comentário. O alargamento da Rua Sacramento em curso, perto da Praça, despertou o olho grande na casa, onde há décadas mora, em uma história de realizações que lhe gera receios de ter um final infeliz. Aos vinte anos, obteve permissão do seu senhor, Caetano Negrão, para vender quitutes no final do dia e fazer dinheiro para comprar sua alforria. Com o passar do tempo, criou clientela e a fama se espalhou. Sempre tinha alguém a dizer que seus doces e salgados eram bom demais e outro alguém a indagar que Divina era aquela: -- A do Negrão.
Certa vez, ao tabuleiro, conheceu Constância do Rosário, mulher viúva, sem filhos, que sabia se virar muito bem sozinha. Enturmada com o pessoal da Alfândega e dos navios, Sinhá Cota do Rossio, como era conhecida, comprava artigos importados e os revendia a preço superior. O lucro emprestava a juros em percentual inferior aos da praça, o que lhe garantia muitos clientes. Intermediado pelos quitutes e pela mútua simpatia, o contato entre as mulheres se estreitou, e Divina solicitou para Sinhá um empréstimo para comprar sua liberdade.
-- Com os ganhos do tabuleiro, pago vosmicê com os mais dos juros.
-- Empréstimo é coisa de gente livre. Cativo num tem garantia pra dar.
-- Compra eu, então, do meu sinhô com o trato d’eu ficar na lida dos meus quitutes porque o que quero é fazer meus réis para pagar minha alforria.
-- Queres morar na minha casa e trabalhar na minha cozinha de graça?
-- Cozinho pra vosmicê em troca.
-- Ah, assim fica melhor.
-- Então tá tudo combinado?
-- Eta negra impertinente. Tenho que pensar.
Sinhá pensou. Imaginou o crescimento do negócio dos tabuleiros e apreciou a possibilidade de ser sócia de Divina, bem como dela lhe fazer companhia, já que suas mucamas, Anunciata e Josefa, não eram dadas à prosa. Pediu sociedade, com despesas de moradia descontadas da futura receita, consonante com o seu lema de que cada um tem que pôr seus tostões pra ajudar a fazer o forno e o bolo. Termos aceitos, comprou a proponente, levou-a para morar consigo e, três anos depois, lavrou no Oficio de Notas a liberdade daquela que filha de pai desconhecido e sem sobrenome de mãe falecida passou a ser também aos olhos da lei Divina Negrão.
Atualmente, por causa da idade avançada, a saúde de Sinhá exige cuidados, ainda que o espírito continue forte. Das posses amealhadas, sobrou-lhe algum dinheiro, o imóvel de dois andares onde moram e o terreno vizinho. Há tempos, Divina administra a casa e o trabalho de um grupo de mulheres empregadas no negócio, que cresceu. Não só vende doces e salgados para restaurantes e casas de família, como também lava, passa e cerze toalheiros, além de ler a sorte e benzer os necessitados.
Com exceção da já também idosa Anunciata e da madura Josefa, todas as outras moradoras foram chegando aos poucos, cada qual com uma história de abandono e a mesma precisão de trabalhar. Além de Conceição, Corina e Delfina, que é mãe do jovem Juliano, há Bebiana e as filhas solteiras, Lindalva e Gracinda. As três estão na entrega de mercadorias e coleta de serviços. Há também Belizária que, como Josefa, é empregada em casa de família e, como as demais, contribui com as despesas de moradia. Com tanta gente que depende do negócio e do imóvel, Divina teme pelo destino da propriedade após o passatempo de Sinhá Cota, razão pela qual as palavras de BV alvejaram seu coração receoso.
-- Já pegou o que quis, agora pica a mula que a gente tem o que fazer.
-- Estou de saída, mas antes posso saber quem é o dono da propriedade?
-- Tá perguntando demais.
-- Não me queira mal, só pergunto pra saber se o proprietário tem interesse de venda. Às vezes calha d’eu conhecer um comprador e olha aí a oportunidade.
-- Bateu no muro errado e fim de prosa, diz Divina já andando para a bica.
-- Há o interesse ou a senhora não sabe dizer?
-- Num ouviu a ordem, não?
-- Óia que a gente chama a guarda!
Divina aproxima-se do muro com um balde cheio de água.
-- Moço: ou sai por bem ou sai por mal.
-- Com vossa licença, bom dia.
BV desaparece e as mulheres se entreolham.
-- Onde já se viu? Que sujeito intrometido!
-- Tá cobiçando a casa.
-- Só morta sinhá sai daqui.
-- O que será da gente quando ela for dessa pra melhor?
-- Basta a cada dia o seu fardo, Corina. Vamos trabalhar que é melhor, fala Divina, que retorna para a cozinha. Ali adentra a sala de jantar conjugada a de visita, vê Sinhá e Anunciata cochilando na cadeira de balanço – a visão da velhice suscita a sua a caminho: oh, meu Pai, nos proteja! Chega à saleta ao lado, separada por uma cortina. Dispostos num oratório, santos, em estatueta, miram a porta da rua, enfeitados com pendões de flores de papel, terços e cordões de miçangas. Nossa Senhora da Lampadosa ocupa posição central: traz à palma da mão um coração circundado por um aro dourado e, no outro braço, carrega Jesus menino, que segura uma pomba. Uma mesa está encostada à parede que faz ângulo com a do oratório. Duas cadeiras ladeiam o móvel coberto por toalha de renda branca sobre feltro, onde búzios, deitados em uma peneira, dividem o espaço com uma cambraia dobrada, um baralho e um castiçal.
Divina cobre a mão da Santa e do Menino Jesus.
-- Dadivosa e inocência, protegei esta casa.
Tudo o que sabe sobre orixás, búzios, ervas e benzeção, aprendeu com o babalaô da senzala do ex-senhor. Quanto aos mistérios católicos, os ensinamentos vieram da esposa do seu Negrão. Mais tarde, ao tabuleiro, conheceu o baralho com a cigana Najma. Só de ver as cartas, sortilégios vinham à sua mente. O acerto era tão grande que Sinhá Cota lhe deu de presente um baralho que mandou trazer do estrangeiro. Desde então, lê as cartas também.
Senta-se à mesa, acende as velas do castiçal e invoca a permissão dos orixás para jogar. Lança os búzios, que caem virados para baixo, num sinal de jogo fechado: por que não quer falar, meu Orí? Afasta a peneira, estende a cambraia e traz o baralho ao encontro do peito. A imagem de um coração trespassado lhe chega. Pensa em São Sebastião. Embaralha e divide em montes o baralho, une as partes em outra disposição e depois retira três cartas e as deita sobre o tecido. Um céu carregado de nuvens se exibe na primeira; uma montanha, na segunda; uma cruz, na terceira. Divina pressente tempos difíceis e não quer saber mais. Porém uma dúvida se formula: o que aquele homem tem a ver com isso?
O homem vai longe, na marcha do seu Tufão e rumo ao encontro do patrão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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