quinta-feira, 26 de março de 2015

Capítulo Vinte e Três

EXPECTATIVAS PARA 1904


Herculano conseguiu soerguer-se do seu terremoto emocional. Retornou à função acadêmica na Escola Militar e ao acompanhamento da vida nacional, movimentada pela eleição à presidência do país e, em seguida, pela vitória de Campos Salles. Um trecho do discurso de pose chamou a sua atenção: “As paixões e violências do espírito partidário, que embaraçam a atividade governamental, devem ser proscritas; espero o patriotismo do Congresso Nacional e a austeridade da nação para tornar efetivas as providências reclamadas pela difícil situação financeira do país”. Ou cuida da saúde do Tesouro Nacional ou a bancarrota alcançará a todos. Um bom motivo para a oligarquia ser patriótica, aventou Herculano durante a leitura de jornal. Dias depois, leu sobre a nomeação de Theodoro ao cargo de secretário de Campos Salles. Desde criança, frequenta os salões dos barões e coronéis que ocupam a tribuna. Eis o mérito que o guindou ao governo, pensou com relação ao antigo colega de internato.
Decerto que houve menosprezo nesse comentário, como ironia, no anterior. Mas, ao revés do ocorrido no passado, de indignações contidas, Herculano experimentou a mais glacial frieza ao conjeturar sobre o cenário nacional. A conta do tempo e do saber desperdiçados em atender interesses particularistas chegara para ser quitada e vinha acrescida dos gastos feitos com os conflitos armados dos últimos anos.  Por outro lado, Campos Salles já dera sinais de que não se esquivaria de pagar essa conta, nem de ministrar as doses necessárias do remédio amargo para renegociar a dívida externa, controlar a inflação e criar condições de encarrilhar o país na estrada do progresso. Esses sinais se configuraram na visão de Herculano como a oportunidade que ele esperava para lutar pela República: uma conjuntura marcada tanto pelo ônus de medidas impopulares, que desencadeariam insatisfações e desejos de mudanças, como pelo bônus de já ter sido realizado o pior do ruim que precisava ser feito e que reduzia as adversidades a serem enfrentadas por um governo efetivamente revolucionário. Mirou esse futuro, convicto de que faria parte não só da efetivação desse governo, como também das forças que o protegeriam de ofensivas inimigas, sequiosas de reaver o poder perdido.
O desenrolar dos acontecimentos confirmou boa parte dos seus prognósticos. Campos Salles renegociou a dívida brasileira e pactuou com os governadores o perfil dos interessados locais em disputar a próxima legislatura. Obteve o compromisso das forças estaduais de somente apoiar candidatos adeptos da austeridade almejada. As eleições foram realizadas e os resultados, das urnas e das diplomações dos eleitos, consistentes com o teor do pacto acordado. Dali em diante, Theodoro entrou em ação para cumprir a missão que o presidente lhe dera:
-- Faça o que for preciso e me dê condições de obter, sem embaraços e sem lutas intestinas, as leis de que careço para governar. Eu sanearei as contas do país, outros que façam o saneamento das eleições, do parlamento e do que mais for preciso.
Assim foi feito. Não tardou para as marés das insatisfações se levantarem e se recuarem sob a força da Lei. Os jornais da oposição se tornaram o porta-voz de revoltas impotentes. Uns combatiam o aumento dos impostos e a carestia. Outros, a penúria da educação. Atribuíam a Campos Salles a opinião de que a população podia, sem prejuízo, dispensar a cultura intelectual e tirar proveito maior com a cultura das batatas e das urnas, onde até defuntos votavam. Já, aos balcões dos cafés da cidade, entreouviam-se as opiniões de que o governo não chegaria ao seu final. Mas precisava chegar, pensava Herculano, para não mudar a situação de seis por meia dúzia e dar tempo de surgir o comandante capaz de conduzir o ansiado movimento revolucionário.
Em novembro de 1902, Campos Salles passou para Rodrigues Alves a faixa presidencial, com a dívida externa renegociada, o crédito nacional recuperado e as contas públicas equilibradas. Deixou o Palácio do Governo, com escolta reforçada e debaixo de vaias. Pouco se importou. Trocara a popularidade pelo resultado que acabara de entregar ao seu sucessor.
Essa indiferença há algum tempo intrigava Herculano. Se havia tamanha força, tão notável galhardia, por que Campos Salles não a expressara antes mesmo do governo provisório, no tempo do império? Por que deixara interesses menores se sobrepor aos nacionais? E por que revelara o melhor de si apenas sob a pressão da catástrofe?
Não alcançou resposta diferente da formulada há quatro anos: a situação de bancarrota do país amainara as ambições que historicamente impediam a proficuidade da administração pública do país. O problema do Brasil era de cunho moral.
Dirigiu sua atenção para Rodrigues Alves, que revelou possuir perfil pragmático similar ao de Campos Salles quando divulgou as prioridades do seu governo: reformar o porto, combater às epidemias e reurbanizar a Capital Federal. Theodoro continuou no governo e na mesma função. Logo mais a maioria parlamentar concedeu poderes plenos ao prefeito Pereira Passos para modernizar a cidade, mantendo para si a atribuição de aprovar o orçamento. Regulamentos renovados passaram a normatizar os hábitos de higiene e a postura nas vias públicas e as primeiras demolições ocorreram. O povo de pronto alcunhou o prefeito de Bota-abaixo e apelidou de Mata-mosquitos o diretor de Saúde  que recebeu a missão de extinguir as epidemias. 
Em nada esse quadro abalou a convicção de Herculano de que a marcha histórica rumava para a restauração da República. Há muito a população vinha sendo fustigada pela carestia e, com certeza, se indisporia com qualquer prioridade que aumentasse suas penúrias. Do contrário, não teriam ocorrido as greves que pipocaram na cidade ao longo dos últimos dois anos, nem havido, em maio último, a reivindicação de redução da jornada de trabalho para oito horas diárias que reuniu, em praça pública, cerca de vinte mil operários. Formulava o cenário de mudanças com base em fatos e nutria fortes expectativas de vê-las concretizadas num futuro próximo, quem sabe até em algum momento deste recém-nascido ano de 1904. No mais havia Páscoa. Não aguentava mais conviver com a sua tristeza sem razão de ser, nem podia ter a sua atenção desviada da luta que há anos se preparava para travar. Era hora da mulher disciplinar suas emoções e lhe dar um lar onde pudesse recuperar suas forças para a batalha do dia seguinte. Ela não pode ser vista tão debilitada.  Tem de reagir, evitar o banho de mar, repetiu Herculano consigo mesmo, sentado sozinho no banco do bonde.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Nenhum comentário:

Postar um comentário