sábado, 28 de março de 2015

Capítulo Vinte e Quatro

LARGO DA CARIOCA


O bonde de Copacabana alcança a Senador Dantas revolvida pela troca das pedras do calçamento e com os passeios em covas abertas para a plantação de mudas de oitis. Bem mais adiante, um cocheiro luta contra o sono, em marcha lenta puxada por uma parelha de burros. Sacas estufadas transbordam da carroceria e amparam engradados de vime empilhados com perus dentro. Um condutor ultrapassa o veículo e esbraveja:
-- Ó tranca rua, vai dormir em casa.
O sonolento homem abre os olhos, esboça erguer o rosto, mas mal as dobras da papada se distendem, as pálpebras pesam e a cabeça volta a tombar novamente sobre o peito. Em rédea frouxa e lentidão constante, a parelha de burros faz a curva que desemboca na Rua Santo Antônio. Conforme o deslocamento evolui, a carroça sacoleja, os engradados trepidam e o Largo da Carioca se aproxima.
Região de comércio diversificado, o Largo possui casarios, com toldos às portas e enormes compoteiras de louças aos beirais dos telhados, como as da Confeitaria Rocha & Menères, de propriedade de dois lusitanos, que conseguiram passar incólumes ao ufanismo feroz dos florianistas. Outros comerciantes portugueses tiveram a mesma sorte e se distinguem no quesito das tabuletas. De longe se lê, em letras graúdas, Armazém-Estalagem Todos os Santos, Filhos e Filiais, do Manoel do Porto, Marcenaria Atlas, do João Cunha, e Lotérica Idealista, de Borges Aragão. Quanto às demais nacionalidades, avultam-se as tabuletas da loja de roupas Os Tamoios, do turco Osman, a da casa de Materiais de Construção Os Materialistas, do espanhol Fortunato, e os dizeres: Despertar – Depósito de aves, ovos e outras aves de pena, do italiano Giovane. Finalmente, destaca-se a tabuleta da venda Ambos os Mundos – Sabão da Costa, Azeite de Dendê, Garrafadas e demais precisões, fundada por Alípio Sião após comprar a sua alforria, há mais de duas décadas.
Num entra e sai do comércio local, a caminho de algum lugar ou a ocupar o metro quadrado para fazer o pão de cada dia, é intensa a movimentação no Largo. Há gente acotovelada nos balcões dos quiosques erguidos em cada esquina, diante dos tabuleiros das baianas montados às calçadas e ainda à bancada do escrivão de cartas e na cadeira dos engraxates. Semelhante aglomeração ocorre também no passeio do chafariz que domina a vertente sul do espaço. Com vinte e nove bicas de bronze faiscantes ao sol e fachada de templo romano, o chafariz acolhe, no seu espaço, o público da Vermelhinha – um jogo proibido, mas de agrado popular, praticado com três cartas de reversos idênticos, porém duas de naipe preto e uma vermelha que, depois de embaralhadas, são apresentadas para o apostador adivinhar qual é a face colorida. Só se acerta da primeira vez, exceto quando o dono do jogo quer vender a sorte e atrair outro incauto apostador.
O hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, um casarão de três andares repletos de janelas, ocupa boa parte do lado oeste do Largo e, como os demais imóveis desta vertente, os fundos margeiam o morro Santo Antônio, de cume edificado pelo convento homônimo. Nesta manhã, pessoas, coroas e ramadas de flores saem do hospital em direção ao cortejo que se forma à calçada. Cavalheiros aguardam para tomar lugar no fúnebre deslocamento ao balcão do Chope dos Mortos, do lado do necrotério da Ordem e de propriedade do alemão Glutner. Em seguida ao bar, há o portão da Companhia de Bondes Jardim Botânico, e depois o café do espanhol Fidelis, já a esquina da estreita e comprida Rua Carioca.
Despovoado de árvores, o sol de verão abrasa o calçamento do Largo neste quatro de janeiro de 1904. Rostos e corpos porejam de suor. O alívio vem de frutas consumidas no local. Cascas e bagaços tombam ao chão. Vísceras bovinas, linguiças, toucinhos e peixes também processam a sua vida biológica na inércia das bancadas postas nos passeios. Moscas revoluteiam. Baratas e ratos vencem maratonas de curta distância. Animais defecam. Fluxos nasais e catarrais molham o solo, e odores variados, de urina, bodum, mofo e peixe, emanam mais num metro quadrado do Largo do que em outro.
Do portão da Cia, surge o fiscal num impecável uniforme. Observa o paredão formado pelos coches enfileirados ao longo da calçada e dirige-se ao cocheiro-líder, postado à direita, na esquina com a calçada do Chafariz.
-- Ó Bicalho, já não disse que não pode parar na frente da Cia?
-- Ora bolas, Marcelino! A autoridade do finado exige.
-- Quem foi dessa vez?
-- O comendador Cerqueira... Suspirou como um passarinho.
-- Nesse caso há de se ter paciência. Que Deus o tenha!
-- Assim seja.
-- Quando sai o féretro?
-- Ah, aí depende!
-- Depende como, homem? A coisa não tem hora?
-- Ter tem, mas pode agarrar.
-- Veja lá. Não me afogue o trânsito. Tenho carro pra chegar e outro pra sair.
Com ar de tenho dito, Marcelino passa por entre os coches para cumprir a sua rotina. No meio do Largo, um bonde está parado, com suas cortinas verdes desenroladas para as bandas do sol. No estribo oposto, moleques pousam com tabuleiros de guloseimas equilibrados à mão, onde tentam realizar vendas entre os passageiros, e, como pombos, revoam à aproximação do fiscal.
Marcelino circula pelo bonde certificando-se da conformidade da ocupação. Por ser carro de luxo, é proibido transportar sacas e animais. Com a exceção da ausência do motorneiro e do condutor, provavelmente a fazer hora ao redor da Vermelhinha, tudo lhe parece dentro dos conformes, até que se defronta com uma bocarra aberta, pronta para cuspir. Imediatamente ergue a mão espalmada.
-- Alto lá! No chão do bonde não.
Bocarra fechada, cuspe engolido, a contrariedade rasga o ar.
-- Posso saber onde estão as escarradeiras?
-- Provavelmente algumas em vossa residência.
-- Quer que eu cuspa pra fora?
-- Isso é com vossa excelência, desde que peça licença ao vizinho, incline-se para o lado, lance seu cuspe e entenda-se depois com a autoridade sanitária.
-- Mais esta. Pois eu quero cuspir! Hei de cuspir. Tenho o direito de cuspir!
-- Perfeitamente! Mas veja bem. Vossa digníssima pessoa tem o direito de andar descalço, porém está calçado; tem o direito de não usar gravata, mas porta um formoso laço a Eduardo VII. E por quê? Porque, tendo tantos direitos, tem também o dever de ser bem-educado. E se for tuberculoso...
-- Qual o quê, homem! Tenho pulmões de ferro e se ficar tuberculoso, tanto pior pra mim e pros outros, porque hei de cuspir.
-- Não prefere usar o seu direito de morrer?
-- Como é que é?
-- Isso mesmo que ouviu. Morra, meu amigo, por amor dos seus semelhantes, mas sem antes cuspir aqui, se não terei que chamar o guarda.
-- Pois chame e também o Mata-mosquito e o Bota-abaixo. Cá ficarei a esperar pra ver o homem que vai me impedir de cuspir quando eu quiser.
Desafiado, Marcelino desce do bonde para buscar o Tinoco, que faz a ronda no Largo somente com os olhos e a partir do balcão do quiosque do Matias, situado mais adiante. Em arrufos, o desejoso cuspidor se mantém em seu lugar, com apoios solidários de alguns passageiros e o silêncio dos prudentes.
O caixão do Comendador é posto no carro do Bicalho, que dá início à saída do cortejo. Curiosos assistem à cena. De repente ouve-se um grito.
-- Meganhas no pedaço.
O grito ecoa. Em polvorosa, ambulantes, sem licença para praticar o ofício, recolhem seus pertences, num cenário de fuga difícil. Do lado da Ordem Terceira, a esquina com o passeio do chafariz é sem saída e a oposta, com a Carioca, os últimos coches fúnebres bloqueiam a passagem. E tanto as ruas na face leste do Largo, como na adjacente, ao norte, guardas a cavalo despontam, escoltando a Brigada Sanitária. O único canto desimpedido é o sudeste, à Rua Santo Antônio. Para lá, a debandada converge, enquanto a Brigada e os guardas se espalham para pegar os infratores. Num Deus nos acuda e num salve-se quem puder, o Largo regurgita ao som de gritos, vaias e verberações contra o cerco sanitário.
-- Isso é um absurdo.
-- Santo Pai!
-- Ai, minhas vísceras!
-- Que violência!
-- Não pode!
-- Não pode o quê?
-- Deixar o sujeito escapulir, responde ao brigadista o até então indignado.
Com medo de quebra-quebra, Marcelino apressa o passo do pachorrento Tinoco para que cheguem a tempo de proteger o bonde.
À boca da estreita Rua Santo Antônio, ocorre o inevitável: o encontro dos ambulantes com a parelha de burros. Os animais zurram, corpos se chocam com a carroceria, engradados caem no chão e perus escapolem dando início a outra perseguição. Despertado pela colisão, o carroceiro não entende o tumulto.
Do lado de fora do Despertar, Giovane avista a perseguição e percebe que a apetitosa caça é a carga que esperava. Enfurecido, corre aos berros para salvar suas outras aves de pena.
-- Passa cá. Este peru é meu.
Alertado sobre a colisão, Manuel do Porto deixa o depósito do Armazém. Homem grande, de sobrancelhas negras e grossas, metido em camisa de malha e tamancos, usa uma grossa corrente de ouro com um medalhão do seu santo padroeiro. À calçada, vê o tumulto, a carroça da Brigada Sanitária e o corre-corre do Giovane. Cospe no chão e sai em socorro do italiano. Osman fecha a loja, Alípio defuma a venda e, em sentinela, à porta da confeitaria, o alto Menères declara com as mãos cruzadas nas costas:
-- O Brasil acabou em 89.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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