terça-feira, 24 de março de 2015

Capítulo Vinte e Dois

DA CATARSE


A despeito do retorno ao lar, da promoção a capitão-lente da Escola Militar da Praia Vermelha, do desfrute das férias merecidas, Herculano viveu dias de mais pura escuridão. As cicatrizes invisíveis de Canudos o vexavam diante da esposa, da filha e dos agregados do lar, como se cada um enxergasse sua verdadeira medida. Constrangia-o também o retorno próximo à sala de aula, sem saber o que transmitir de Canudos aos alunos. Teria de mentir para não expor a própria cumplicidade à barbárie e se calar quanto à ambição malsã que causou a guerra e fez perdurar o fratricídio marcado por erros medíocres e selvagerias de toda ordem. Não podia denunciar os verdadeiros inimigos da Pátria, nem reconhecer alguns deles entre aqueles que se safaram da suspeita de serem os mentores do atentado frustrado ao presidente. Temia sofrer represálias por falar o que precisava ser denunciado, julgado e punido antes que Canudos caísse no esquecimento. Temia fim idêntico ao do agressor de Prudente de Morais, encontrado enforcado na cela e a morte anunciada como suicídio. Precisava proteger o nefasto de todos esses fatos, para salvar a si mesmo. Conviver com o fel da sua impotência, sem mais o álibi da crença de que um comandante inteligente só ataca quando pode derrotar seu adversário. Até que, certa noite, recluso na biblioteca, ergueu o corpo e bateu a mão sobre a escrivaninha, vomitando dores, culpas e menosprezos.
-- Essa derrocada moral não é minha. Não sou responsável por delitos sobre os quais não possuo poder para impedir e refuto a ideia de omissão como uma invenção delirante e oportunista que busca dividir culpas indivisíveis em meio à lei do mais forte.
Falava como se discursasse para sertanejos de faces escaveiradas e com panos rotos a cobrir o esqueleto acocorado naquele espaço.
-- A barbárie que eclodiu nessas terras de sol abrasador é obra de uma corja que castra o governo e a Justiça com a cumplicidade e a leniência de funcionários e parlamentares. Dos vícios hereditários dessa prática, nasceu o mal que criou vossas misérias e o atraso do nosso país. Porém, expurgo da mente os tormentos de vossas dores, das vidas perdidas, dos corpos mutilados, dos lares destruídos, de um enorme sofrimento para nada. Arranco do peito as decepções com o Exército e rompo os grilhões do sentimento de derrota, porque a guerra não terminou. Tão forte como vós, esgotarei, mas não me renderei ao poder desses facínoras que degolam anseios, estupram ideais e assassinam o tempo e o saber com os quais poderíamos evoluir de acordo com as nossas melhores afeições e os nossos mais estupendos dons.
Em pupilas dilatadas, Herculano virou-se para o quadro que fixara na parede quando se mudou para o casarão depois de casado. Caminhou e parou diante da República. Sentiu como se a corporificação dos seus ideais tocasse a sua face, afagasse seus cabelos e o abraçasse. Desmoronou, ajoelhando-se. Sentado sobre os tornozelos, chorou. Não percebeu a porta se abrir e a esposa entrar, preocupada.
-- O que houve?
-- Nada, respondeu erguendo-se de vez.
-- Mas sofre...
-- Já disse: não é nada.
-- Abra-se comigo.
-- Não se imponha assim.
-- Por favor...
-- Eu que peço: deixe-me sozinho.
Páscoa se moveu levada pelo desalento de perceber que o esposo lhe vedava também o acesso ao seu sofrimento. Porta fechada, um veio de luz riscou o chão no qual seu olhar percorreu como se buscasse o caminho para romper o grilhão que os mantinha isolados um do outro.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos



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