TEMPOS DE EXCEÇÃO
A
aliança entre os revoltosos da Armada e os insurgentes Federalistas paralisou as
aulas na Escola da Praia Vermelha. Herculano, recém-casado com Páscoa, foi deslocado
para treinar voluntários que abasteceriam os batalhões patrióticos. Constituídos
como força militar paralela ao Exército, essas unidades congregavam, em sua
maioria, rapazes oriundos de extratos sociais humildes, alguns empregados até
então, outros não, e muitos com o estudo interrompido pela necessidade precoce de
trabalhar.
A
primeira vez que se postou diante deles, Herculano se reconheceu em cada rosto e
se angustiou. Por um átimo, inferiu as diferentes misérias que os levavam a se
iludir com as causas da guerra civil. Nem a legalidade do mandato de Floriano, contestada
pelos revoltosos da Armada, nem a autonomia estadual, propugnada pelos Federalistas,
lhe indicava algo diferente da disputa do poder pelo poder. Tratava-se da luta
entre os estabelecidos de outrora, enfraquecidos pela proclamação da República,
e os entrantes, alçados a tal condição pela deposição da monarquia, dos quais a
pedra no sapato de Herculano era Julho de Castilhos: invejava suas conquistas,
mas suspeitava do improbo dos seus métodos de ação e da autenticidade das suas intenções
revolucionárias.
Recuperou
o controle das emoções e manteve uma fala prudente, neutra, orientada apenas
para o ensino de táticas militares. Sabia que treinava neófitos, sedentos de melhores
condições de vida e entusiastas de um governo que existia somente nas suas fantasias,
estimuladas pelas campanhas florianistas. Tal especificidade os tornava
potencialmente perigosos. A menor crítica podia ferir seus ouvidos, atiçar seu
ufanismo e suscitar ideias de denunciar o que poderia lhes parecer palavras de
um antinacionalista ou monarquista. Todo cuidado era pouco para não denegrir a reputação
do marechal mão de ferro nem para turvar a esperança de um emprego futuro,
ganho pela atuação no batalhão patriótico e por provas adicionais de civismo, a
exemplo de delações aceitas com base em fiapos de suposições. Eram esses tempos
sombrios, de exceção, de uma opressiva falta de sentido, emanada de tudo e entranhada
em Herculano.
Certa
manhã, ao conduzir um batalhão para ampliar a defesa da orla portuária, deu de
cara com Euclides, que coordenava a construção de trincheiras no local. Se
pudesse o teria evitado, atravessado que estava com a defesa que ele fizera da
constitucionalidade do mandato do presidente, em um longo artigo de jornal. Sem
escolha, aproximou-se e a assinatura de papeis os reuniu numa tenda. A memória
da solidariedade falou mais alto e desavenças passadas foram relevadas por
Euclides, que se mostrou deprimido. O sogro que conspirara a favor de Floriano,
no instante seguinte, o combateu. Foi preso e o genro se abateu com o
desenrolar dos fatos.
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A minha vontade é me isolar em um recanto qualquer dos nossos sertões.
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Peça uma licença.
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Pedi, mas não consegui, por causa dessas malditas revoltas.
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Bem piores que as Vendeias imaginadas.
Euclides
sentiu a crítica ao artigo que escrevera, no qual comparara os adversários de
Floriano com os rebeldes de Vendeia, uma comunidade da França. Decepcionados
com os rumos da Revolução Francesa, esse grupo se opôs à convocação de
continuar em luta e passou a combater a própria revolução.
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Defendi o que julguei justo e me posicionei em retidão com o meu caráter. Era
preciso impedir o despotismo de Deodoro.
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Pelo que vejo endossa a indisciplina parlamentar.
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Distúrbios fazem parte da vida política e um novo pacto estava em construção.
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Entendo. E que nome dá a um governo que fuzila aqueles que o criticam?
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Sabe bem que deploro essa violência.
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Sei. Erra por fome de patriotismo, não por falha de caráter.
Os
brios de Euclides encresparam-se.
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Bote a cara para bater, Herculano, e mostre a que vem realmente.
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Não me furtarei a agir no momento certo.
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Boa desculpa para a sua inércia crítica, mas, lembre-se: a prudência também é
omissão e concorre para o mal que assola a pátria.
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Não se ajusta o governo com idealismo incauto e muito menos a partir de
disputas de poder que só querem se valer do Estado.
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Estou fora do seu banco de réus. Saiba que pude escolher qualquer posição no
governo, mas preferi o previsto por lei: a prática na Central do Brasil que
você não cumpriu. Cuide-se: sua redoma é de vidro.
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Pena não ter escolhido uma posição no gabinete do presidente ou no Congresso.
Conheceria melhor a natureza do poder e reveria suas atuais crenças
parlamentares.
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Desconsidero a orientação de uma pessoa que nunca se arrisca. Prefiro os meus
erros a sua covardia.
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De novo fala demais.
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E sem disposição para te ouvir. Passar bem, disse Euclides e se afastou,
deixando a sua acusação a atormentar o colega.
Empertigado,
Herculano partiu logo depois. Os tormentos afloraram a sensação de impotência,
de encurralamento. Combateu-os com o que a lógica o aconselhava: entre loucos e
canalhas, o recomendável era prosseguir como um confiável cumpridor de ordens. Precisava
contar com o tempo, com o surgimento de conjunturas adequadas para se unir a
quem de direito e articular a mudança política aspirada.
Em
fevereiro de 1894, uma bomba explodiu num jornal carioca defensor do presidente.
Um senador pediu o fuzilamento dos responsáveis numa vingança aos florianistas
mortos. Pelo jornal, Euclides repudiou o atentado e o pedido do senador. Alegou
que num país nobilitado pela forma republicana, era inadmissível aliar-se à
justa condenação do atentado a mesma arma criminosa. Houve réplica do senador,
tréplica de Euclides, que acabou sendo enviado para servir no interior de Minas
Gerais. Conseguiu ir para o sertão! Ficará protegido, pensou Herculano ao
saber da transferência.
Março
marcou a eleição direta do paulista Prudente de Morais, em meio da guerra
civil. Em novembro, já empossado, o chefe da nação abriu as negociações para
pacificar o sul do país, com a revolta da armada debelada meses atrás pelo seu
antecessor.
Em
dezembro, nasceu Sofia. O enternecimento ao pequeno ser afrouxou a rigidez do corpo
de Herculano e, na distensão, pesou o cansaço do esforço feito para não
sucumbir à ruinaria dos ideais. Cogitou a possibilidade de se alienar dos rumos
do governo, de mudar para outro lugar e lá viver como um pacato professor, dedicado
à família. Porém era-lhe impossível olhar-se no espelho e ver a imagem de um
conformado com a derrota. Fitou a esposa adormecida ao lado e desejou que o
sublime da maternidade a curasse da inexplicável tristeza sentida com o
nascimento da filha. Mais do que nunca precisava da tranquilidade de um lar
para recuperar-se das desilusões políticas. Mais do que nunca precisava
descobrir como lutar pela República.
Copyright © 2013 by Maria
Tereza O. S. Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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