sábado, 14 de março de 2015

Capítulo Quinze

TEMPOS DE EXCEÇÃO


A aliança entre os revoltosos da Armada e os insurgentes Federalistas paralisou as aulas na Escola da Praia Vermelha. Herculano, recém-casado com Páscoa, foi deslocado para treinar voluntários que abasteceriam os batalhões patrióticos. Constituídos como força militar paralela ao Exército, essas unidades congregavam, em sua maioria, rapazes oriundos de extratos sociais humildes, alguns empregados até então, outros não, e muitos com o estudo interrompido pela necessidade precoce de trabalhar.
A primeira vez que se postou diante deles, Herculano se reconheceu em cada rosto e se angustiou. Por um átimo, inferiu as diferentes misérias que os levavam a se iludir com as causas da guerra civil. Nem a legalidade do mandato de Floriano, contestada pelos revoltosos da Armada, nem a autonomia estadual, propugnada pelos Federalistas, lhe indicava algo diferente da disputa do poder pelo poder. Tratava-se da luta entre os estabelecidos de outrora, enfraquecidos pela proclamação da República, e os entrantes, alçados a tal condição pela deposição da monarquia, dos quais a pedra no sapato de Herculano era Julho de Castilhos: invejava suas conquistas, mas suspeitava do improbo dos seus métodos de ação e da autenticidade das suas intenções revolucionárias.
Recuperou o controle das emoções e manteve uma fala prudente, neutra, orientada apenas para o ensino de táticas militares. Sabia que treinava neófitos, sedentos de melhores condições de vida e entusiastas de um governo que existia somente nas suas fantasias, estimuladas pelas campanhas florianistas. Tal especificidade os tornava potencialmente perigosos. A menor crítica podia ferir seus ouvidos, atiçar seu ufanismo e suscitar ideias de denunciar o que poderia lhes parecer palavras de um antinacionalista ou monarquista. Todo cuidado era pouco para não denegrir a reputação do marechal mão de ferro nem para turvar a esperança de um emprego futuro, ganho pela atuação no batalhão patriótico e por provas adicionais de civismo, a exemplo de delações aceitas com base em fiapos de suposições. Eram esses tempos sombrios, de exceção, de uma opressiva falta de sentido, emanada de tudo e entranhada em Herculano.
Certa manhã, ao conduzir um batalhão para ampliar a defesa da orla portuária, deu de cara com Euclides, que coordenava a construção de trincheiras no local. Se pudesse o teria evitado, atravessado que estava com a defesa que ele fizera da constitucionalidade do mandato do presidente, em um longo artigo de jornal. Sem escolha, aproximou-se e a assinatura de papeis os reuniu numa tenda. A memória da solidariedade falou mais alto e desavenças passadas foram relevadas por Euclides, que se mostrou deprimido. O sogro que conspirara a favor de Floriano, no instante seguinte, o combateu. Foi preso e o genro se abateu com o desenrolar dos fatos.
-- A minha vontade é me isolar em um recanto qualquer dos nossos sertões.
-- Peça uma licença.
-- Pedi, mas não consegui, por causa dessas malditas revoltas.
-- Bem piores que as Vendeias imaginadas.
Euclides sentiu a crítica ao artigo que escrevera, no qual comparara os adversários de Floriano com os rebeldes de Vendeia, uma comunidade da França. Decepcionados com os rumos da Revolução Francesa, esse grupo se opôs à convocação de continuar em luta e passou a combater a própria revolução.
-- Defendi o que julguei justo e me posicionei em retidão com o meu caráter. Era preciso impedir o despotismo de Deodoro.
-- Pelo que vejo endossa a indisciplina parlamentar.
-- Distúrbios fazem parte da vida política e um novo pacto estava em construção.
-- Entendo. E que nome dá a um governo que fuzila aqueles que o criticam?
-- Sabe bem que deploro essa violência.
-- Sei. Erra por fome de patriotismo, não por falha de caráter.
Os brios de Euclides encresparam-se.
-- Bote a cara para bater, Herculano, e mostre a que vem realmente.
-- Não me furtarei a agir no momento certo.
-- Boa desculpa para a sua inércia crítica, mas, lembre-se: a prudência também é omissão e concorre para o mal que assola a pátria.
-- Não se ajusta o governo com idealismo incauto e muito menos a partir de disputas de poder que só querem se valer do Estado.
-- Estou fora do seu banco de réus. Saiba que pude escolher qualquer posição no governo, mas preferi o previsto por lei: a prática na Central do Brasil que você não cumpriu. Cuide-se: sua redoma é de vidro.
-- Pena não ter escolhido uma posição no gabinete do presidente ou no Congresso. Conheceria melhor a natureza do poder e reveria suas atuais crenças parlamentares.
-- Desconsidero a orientação de uma pessoa que nunca se arrisca. Prefiro os meus erros a sua covardia.
-- De novo fala demais.
-- E sem disposição para te ouvir. Passar bem, disse Euclides e se afastou, deixando a sua acusação a atormentar o colega.
Empertigado, Herculano partiu logo depois. Os tormentos afloraram a sensação de impotência, de encurralamento. Combateu-os com o que a lógica o aconselhava: entre loucos e canalhas, o recomendável era prosseguir como um confiável cumpridor de ordens. Precisava contar com o tempo, com o surgimento de conjunturas adequadas para se unir a quem de direito e articular a mudança política aspirada.
Em fevereiro de 1894, uma bomba explodiu num jornal carioca defensor do presidente. Um senador pediu o fuzilamento dos responsáveis numa vingança aos florianistas mortos. Pelo jornal, Euclides repudiou o atentado e o pedido do senador. Alegou que num país nobilitado pela forma republicana, era inadmissível aliar-se à justa condenação do atentado a mesma arma criminosa. Houve réplica do senador, tréplica de Euclides, que acabou sendo enviado para servir no interior de Minas Gerais.  Conseguiu ir para o sertão! Ficará protegido, pensou Herculano ao saber da transferência. 
Março marcou a eleição direta do paulista Prudente de Morais, em meio da guerra civil. Em novembro, já empossado, o chefe da nação abriu as negociações para pacificar o sul do país, com a revolta da armada debelada meses atrás pelo seu antecessor.
Em dezembro, nasceu Sofia. O enternecimento ao pequeno ser afrouxou a rigidez do corpo de Herculano e, na distensão, pesou o cansaço do esforço feito para não sucumbir à ruinaria dos ideais. Cogitou a possibilidade de se alienar dos rumos do governo, de mudar para outro lugar e lá viver como um pacato professor, dedicado à família. Porém era-lhe impossível olhar-se no espelho e ver a imagem de um conformado com a derrota. Fitou a esposa adormecida ao lado e desejou que o sublime da maternidade a curasse da inexplicável tristeza sentida com o nascimento da filha. Mais do que nunca precisava da tranquilidade de um lar para recuperar-se das desilusões políticas. Mais do que nunca precisava descobrir como lutar pela República.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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