quarta-feira, 29 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Oito

O SARAU


Herculano chega do trabalho e encontra um envelope sobre a escrivaninha do seu gabinete. Surpreende-se com os remetentes: Senhor e Sra. Theodoro de Alcântara Avelar. Associa Dr. Eugênio à fonte de informação do seu endereço e se inteira do conteúdo da correspondência: é convidado para o sarau no solar. O que esse sujeito quer? Não tenho nada que fazer lá, pensa e põe o convite de lado na mesa. Ao cabo de algumas horas, a conveniência de conhecer o território do inimigo político e seus aliados o faz mudar de ideia.  Comparece ao evento.
Em meio aos convidados militares, é o único capitão. Os demais possuem patente de nível superior. Neste momento de programação musical finda e de baile no salão da residência, conversa em uma das rodas distribuídas no espaçoso terraço.  Está diante do ministro da Guerra, marechal Argolo, e ladeado pelo comandante da Escola da Praia Vermelha, general Costallat, e pelo chefe do Estado-maior do Exército, marechal Bibiano. Reconhece Valentin, que passa em direção à casa de hóspedes, e volta a sua atenção para a conversa. O tema versa sobre a recente guerra decretada pelo Japão à Rússia, em território chinês. Bibiano considera desfavorável a situação dos russos.
-- Estão isolados do seu poder bélico e com o Japão a vigiá-los pelo mar.
Theodoro se aproxima.
-- Ouvi bem: Japão?
A roda se abre para o anfitrião e Argolo responde.
-- Sim, comentávamos sobre o ataque aos russos, em Port Arthur.
-- Acha que a China apoiará o colosso moscovita?
-- Se vencer a resistência local, sim. Li que a população não gostou do governo ter cedido Port Arthur para os russos. 
-- Seria o melhor dos mundos se a compreensão dos interesses de uma nação pudesse estar ao alcance de todas as inteligências do seu país.
Herculano identifica no comentário de Theodoro uma crítica velada aos opositores do modelo da reurbanização em curso na cidade. Nada diz. Por questões de hierarquia, não lhe cabe expressar opinião, a menos se solicitado. Argolo tem a mesma impressão do subordinado com relação à intenção da fala do anfitrião. Alinha a análise da guerra com o foco das suas preocupações: o baixo investimento no Exército nacional.
-- Apesar de ser três vezes maior do que o dos japoneses, o poder bélico dos russos está a léguas de distância e disperso pelo império. Uma situação nada favorável.
-- Agravada pelo poder de recrutamento dos japoneses. Tem à disposição um número expressivo de homens bem treinados e equipados, diz Bibiano, como um ator que dá a sua fala na deixa certa.
Costallat percebe as intenções dos colegas e também entra em cena.
-- Uma inspiração para o Exército nacional.
-- Gigantesca – exclama Theodoro
-- E necessária, enfatiza Argolo. – Enquanto qualquer republiqueta das Américas pode pôr para operar de seis a oito mil homens, no caso de ser surpreendida por um ataque, a nossa augusta República teria dificuldade para reunir tropa semelhante com treinamento e equipamentos à altura.  
Encalacrou-se, pensa Herculano com relação ao anfitrião.
-- Estou ciente e testemunho os esforços do presidente para garantir melhorias ao nosso Exército, de maneira compatível com os recursos do Tesouro, é claro.
-- Compatibilidade que não deixa de ser preocupante em tempo de tensão no Acre.
-- Ainda bem que temos um Rio Branco para distender esse impasse.
-- Porém, como o próprio ministro costuma dizer, nenhum país pode ser pacífico sem ser forte, lembra Costallat em socorro a Argolo.
-- Fora que conflitos são ocorrências certas em qualquer sociedade. Ingenuidade descuidar do preparo militar em época de paz, arremata Bibiano.
-- Grande verdade! Até porque, nos tempos mais calmos, os adversários aguçam nossas percepções e nos mantêm treinados para o combate.
Esse sujeito está mandando recado, cogita Herculano consigo mesmo.
Theodoro percebe os reforços mútuos dos militares e decide não só tirar o Brasil do foco da conversa, como conhecer a verve de Herculano diante dos superiores.
-- Aposta na vitória do império do sol nascente, Capitão?
-- Além das vantagens citadas, o Japão ainda pode realizar reparos em seus navios em solo próprio. Talvez Port Arthur não ofereça essa possibilidade aos russos.
Resposta técnica e neutra em tom disciplinado, avalia Theodoro e endossa a opinião. – É. Terão um problema sem condição de reparos.
As esposas dos superiores chegam e Herculano se afasta com a desculpa de apreciar a exposição montada no terraço. Um rápido comentário sobre ele é feito por Costallat.
– Grata surpresa encontrar o Capitão.
-- Estudamos na mesma época no Pedro II.
-- Não sabia.
-- Bons tempos!
Mais algumas palavras trocadas, Theodoro também pede licença. Mal deixa a roda, Emiliano Nogueira o detém pelo braço e o faz caminhar em direção ao jardim. Conhecido como o barão dos quiosques, Emiliano é sócio do comendador no projeto imobiliário que pretender realizar se conseguirem comprar o casarão de Sinhá Cota. O sócio não foi convidado para o sarau e o delegou a missão que procura cumprir.
-- Esperava encontrar Ferdinando aqui.
-- E eu contava que viesse. Quem sabe uma visita o tenha impedido?
-- Pode ser. Sabe que estou com ele no projeto imobiliário da Rua São Jorge?
-- Que beleza!
-- Queremos você junto. Prédios residências e ascensores de passageiros são o futuro. E as perspectivas de lucros são fantásticas.
-- Imagino. Mas será que nossa praça vê com bons olhos esse futuro?
-- Razão porque a construção na São Jorge se faz necessária. Mostrará aos de bem que apartamentos não são cortiço.
Sem interesse no negócio, Theodoro tenta se desvencilhar de Emiliano, mas não consegue. Já Herculano percorre a exposição. Painéis exibem os retratos de populares e mapas que informam as melhorias urbanas planejadas para a cidade. Linhas vermelhas tracejadas sinalizam as obras a cargo do Governo Federal, como a reforma da Avenida Central e a do porto cujas instalações serão modernizadas e costeadas por uma longa avenida. Linhas sólidas, da mesma cor, indicam as obras sob a responsabilidade da prefeitura. A maioria ligará o centro à região sul da cidade, como a do alargamento da Beira-mar, da abertura do túnel entre Botafogo e o areal do Leme e da construção de uma avenida na orla do arraial de Copacabana. Outros painéis exibem croquis de espaços arborizados, asfaltados e servidos por iluminação elétrica; em conjunto, o exposto dá a visão geral da modernização prevista para a Capital Federal.
 Digna de aplausos, se não fosse uma reforma imoral, pensa Herculano à luz do valor pago aos imóveis desapropriados e da população pobre que será despejada e deixada à própria sorte. Nesse particular, crê que os retratados ali expostos cumprem a função de mostrar que o povo será beneficiado pelas reformas. Quem eles pensam que enganam? Ganharão os de sempre, num jogo de cartas marcadas, acha, o que lhe confirma a lei da selva recriada por um Estado fraco: tudo o que pode ser usurpado pelo mais forte o seráMas isso está com os dias contados, admite para si. 
Theodoro se posta ao lado dele.
-- Qual a impressão?
-- Uma exposição esclarecedora.
-- Folgo em saber. Desejei que ilustrasse o progresso que nos espera.
-- As imagens dão uma ideia clara do que está por vir.
-- Confiante com as perspectivas?
-- Sim, delas depende o nosso porvir. Bom, aproveito a ocasião, para me despedir.
-- Tão cedo?
-- Infelizmente. Por favor, transmita as minhas despedidas a D. Catarina.
-- Transmitirei. Porém, precisamos nos encontrar mais vezes. Estou certo de que possuímos mais afinidades além das relacionadas com as táticas militares.
-- Será uma satisfação identificar apreços comuns.
-- Na guerra ou na paz, aliados fazem a diferença.
-- A história oferece diversos exemplos.
-- E um fabuloso conhecimento para nos guiar no presente.
-- Concordo. Mais uma vez, obrigado pelo convite.
-- Foi uma honra.
Theodoro o acompanha até o pórtico, incerto se caminha ao lado de uma pessoa somente reservada ou se as opiniões vagas em ar quase de esfinge revelam um oposicionista. Não, Caso contrário, não estaria aqui, conclui. Despedem-se e um criado leva o militar até o portão.
Cocheiros uniformizados acendem as lanternas das carruagens estacionadas na rua. O cenário destoa da fuzarca protagonizada mais adiante por condutores de tílburis de aluguel, atraídos para o local pela movimentação do sarau. Em amarfanhados trajes, divertem-se com casos contados por um e por outro, ao lado de carros mal conservados e com cavalos nada escovados. A presença do militar os alvoroça.
-- Aqui, doutor.
-- Faço preço melhor, excelência.
As ofertas silenciam-se ante a negativa de Herculano, que prefere andar enquanto ordena suas ideias sobre o que viu e ouviu no sarau. Desconfia que Theodoro esteja receoso da reforma urbana vir a despertar a oposição dos florianistas e da mocidade militar, aquietada há alguns anos. Por isso me convidou para o sarau e propôs outro encontro. Quer me tornar seu agente de informação. Quanta pretensão! Pensa nas farpas trocadas entre os superiores e o anfitrião. Hoje insatisfação, amanhã cisão, como no final da monarquia. Preciso facilitar um encontro com Agostinho. Saber o que ele está fazendo.

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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Sete

DA VISTORIA SANITÁRIA


Acompanhado da autoridade sanitária, Barroso ultrapassa o portão do Maison Moderne, com o rosto encerado de suor e satisfação. No entanto, amarga a frustração quando papéis se cruzam: de um lado, estende-se o ultimato de desocupação imobiliária, do outro, o habeas corpus que assegura o funcionamento da casa de diversões até o final do ano. Minutos depois, descarrega a raiva na vistoria do espaço. Nada lhe passa despercebido. Comunica todas as desconformidades à autoridade sanitária, com uma insistência de criança quando quer algo da mãe. Em parte é bem sucedido e tem o prazer de anotar o que se converterá em multa para Pietro.
Antes do entardecer, o grupo chega à casa de Sinhá Cota. A tensão vibra à porta aberta por Juliano, com Divina ao lado, e também na sala, ocupada por Sinha e pela mucama.
-- Os seus dias estão contatos, diz Barroso para Flecha Negra.
A benzedeira faz um sinal para o jovem não reagir, enquanto os olhos do delegado percorrem os cordões, que adornam as imagens dos santos, depois pulam para a mesa, de onde saltitam sobre os búzios na peneira e assim chegam ao baralho.
-- Os dias da senhora também findam por misturar crendices com o sagrado.
A autoridade sanitária impacienta-se com a intolerância do delegado. Observa o espaço sem ver indícios de que a mulher propagandeia suas crendices para delas fazer ganho. Tampouco constata falta de higiene. A mesa da saleta possui toalha alva, as paredes não têm negrumes de lamparinas e os santos, os terços e os enfeites estão limpos. Desejoso de encerrar a vistoria, bem como o expediente, intervém.
-- Vamos cuidar do que nos cabe fazer?
Ânimos azedados, o grupo prossegue a vistoria. Sinhá fica na sala, com Anunciata.  
-- Isso é coisa de governo maldito, sem dignidade e majestade!
A velha mucama balança um sim com a cabeça.
Os aposentos vistoriados mostram-se de acordo com o exigido pelo Código de Higiene. As alcovas estão em ordem, inexiste divisão de madeira e nenhuma janela está desfalcada de fresta. Os reservados, limpos, têm até aparelho sanitário. A licença da quituteira está em dia e há zelo na cozinha: nem uma mosca voa no espaço e os vasilhames se exibem ariados. Trata-se de um casario antigo, de pintura esmaecida, madeirame picado ali, lá e acolá de caruncho, assoalho que range ao andar, mas tudo em ordem, arejado. A autoridade sanitária chega até a porta do quintal. Vê as roupas penduradas no varal e decide encerrar a vistoria. Barroso o demove da decisão e toma à dianteira. Com o grupo atrás, desce até o quintal, vê as galinhas, em seguida, o chiqueiro, com uma porca deitada em tetas sugadas por uma rosada ninhada.
--Vendem os bichos?
-- Alguns.
-- Terão de acabar com isso.
Juliano se exalta.
-- A troco de quê?
-- Práticas rurais com finalidades comerciais não serão mais aceitas nos quintais da cidade daqui em diante, explica a autoridade.
Barroso indaga sobre a finalidade das ervas plantadas.
-- Umas são pra tempero, outras pra chá, xarope e unguentos, responde Divina.
-- Sei. Vende hortaliças?
-- Somos quituteiras.
-- Muito espaço vazio dando sopa, não acha?
-- Está fora da área demarcada e há edificação, responde a autoridade sanitária.
-- O muro precisa de reboco e o portão de uma mão de tinta.
-- Sim, senhor.
Sem nada mais a vistoriar, as autoridades partem. Vozes se alternam na sala.
-- É caso de fazer um feitiço.
-- Vou falar com João Alabá. Isso não pode ficar assim.
-- Não ficará, meu filho. Deus é mais forte.
-- Que mundo é esse, Santíssima Trindade?
-- De republicanos desalmados. Que o demo os carregue, pragueja Sinhá Cota.
Anunciata concorda com o seu habitual balançar de cabeça e Divina se afasta em direção ao oratório. Receia que as nuvens vistas no baralho cigano já estejam sobre o casarão.
  
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Capítulo Quarenta e Seis

CHORAI BARRACÕES


Um cuspe arrancado das profundezas estruge, rompe a atmosfera e cai gordo sobre o documento estendido pela autoridade sanitária. Em meio ao suspense criado, o cuspidor, Manoel do Porto, corre a boca pela malha da camisa, na altura do ombro, flexiona os braços, como asas, e apoia as mãos fechadas na cintura. Agiganta-se.  
-- Quero ver que gajo me fará assinar esse maldito papel.
Imperturbável, a autoridade deita a maculada notificação sobre o balcão e o fiscal Raposo se apressa a convencer o comerciante a fazer o esperado.
-- Oh, Seu Manoel, bota o jamegão de uma vez no documento.
-- Só assino e saio daqui quando receber o devido. Antes disso, não.
-- É a sua palavra final?
-- Pelo inferno de Dante, estejas certo de que é.
-- Ó homem de Deus, não faça isso, será despejado na marra.
-- Cairás do cavalo. Aguarde e verás.
A esposa de Manoel desaba em prantos e é consolada pelos filhos.
-- Nem tudo tá perdido, mãe, diz o primogênito.
Mas para Joaquina está. Perdem o que os seus olhos afogados em lágrimas veem – o armazém – e o escondido pela parede: a estalagem. Não adianta tampar o sol com a peneira, nem o marido jurar por todos os santos que nenhum salafrário irá tirá-los dali sem antes pagar a indenização do trabalho de uma vida. É lei. É fado, há de cumprir-se.
Manoel intui as considerações silenciosas da mulher. Sente uma pontada no peito, agarra a medalha do seu santo protetor e sai atrás do grupo sanitário. Pela rua afora, solidariza-se com o infortúnio dos vizinhos e afirma que irão receber na justiça o valor real dos imóveis. Esperanças débeis e descrenças desencorajadoras coam-se nas feições turvadas dos ouvintes e o desânimo com a lentidão do advogado contratado escapole de uma boca incrédula.
-- Ora, pois, mudamos o doutor, rebate o comerciante.
O incrédulo encolhe os ombros e interrogações mudas sobre a validade da troca franzem os cenhos ao redor. A reação incita os temores mais secretos de Manoel de estar a vender ilusões até a si mesmo. Lança seu olhar perturbado sobre o Largo da Carioca.
O prédio da Ordem Terceira de São Francisco de Xavier, do Chope dos Mortos, do café Fidelis e da Cia de Bondes serão demolidos. Desaparecerão também a funerária-floricultura Celestial, a lotérica Idealista e a venda Ambos os Mundos. Desse lado avistado, só se salvaram a confeitaria Rocha e Menères, a casa de roupas Os Tamoios e a loja de materiais de construção Os Materialistas. Terão apenas de realizar melhorias. O destino da Marcenaria Atlas ainda está incerto e o depósito Despertar não poderá mais abrigar tantas aves. Tudo em nome da higiene pública e da modernidade. É preciso adequar traçados urbanos, costumes e posturas às exigências dos novos tempos.
Próximo dali, na Rua do Ouvidor, Bilac escreve sua crônica semanal.
“Chorai, barracões de todos os estilos, de todos os feitios, de todas as cores. Chegou a vossa hora! Um prefeito que não gosta de monstros jurou guerra implacável e feroz à vossa raça maldita; preparai-vos todos para cair, fortalezas de mau gosto, baluartes de fealdade, templos de hediondez. A avenida... Parece-me que a vejo acabada, ampla e formosa, com as suas árvores, os seus palácios, as suas lâmpadas elétricas, os seus refúgios, e cheia de uma multidão contente e limpa. Ainda não é realidade. Mas já não é sonho”.
Na manhã seguinte, à mesa do café, Valentin estende um jornal para Theodoro.
-- Veja o que Bilac escreveu.
-- Já li. Excedeu-se.
-- Em desrespeito à dor alheia e em ignorância. Só por osmose a cidade reformada será palco de uma multidão contente e limpa.
-- Poupe-o. É alma boa, apenas foi infeliz na expressão dos seus anseios.
-- Quanta complacência.
-- Que seja! Já você tem o sarau para ajustar o estro poético dele.
-- É, responde Valentin, incerto se valerá a pena.
Volta a ler o jornal. Theodoro, não. Continua a olhá-lo por constatar a semelhança de Valentin com a irmã dele, casada com Hélio Augusto. Poderiam ser gêmeos. Pensa na força genética de suas famílias, na beleza dos sobrinhos comuns, e sente a pressão da paternidade não realizada. Ignora-a. Encarar os fatos da vida e prover soluções possíveis é o seu lema. Retoma também a leitura.

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sábado, 25 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Cinco

DE VITÓRIA E DE DERROTA


O público lota a Maison Moderne nesta noite de sábado. Garçons circulam por entre as mesas entregando pedidos ou anotando outros. Alguns – os referentes às apostas em Flecha Negra – não podem ser atendidos e provocam espantos e pilhérias após a declaração de que a casa só pratica prêmios para os vencedores do desafio da arte marcial. Os fregueses mais sagazes entendem que o local está sob a vigilância policial e se aquietam. Outros não. Demoram um pouco para descodificar o cifrado emitido pela feição dos garçons. E há os palermas inconformados. Não entendem a ginástica facial diante deles e reagem com uma insistência tal que os marca como agentes secretos de Barroso. Alguns de fato são e se unirão mais tarde ao delegado, escondido entre os arvoredos da Praça Tiradentes, em companhia do Raposo e de um piquete.
A programação se desenvolve conforme o esperado, menos para o delegado que vê os motivos da prisão pretendida reduzidos à prática da proibida capoeiragem, sem o incremento de prender em flagrante os apostadores durante o pagamento. Com o exequível do seu plano, sai do esconderijo com os guardas e se mete nos fundos da casa de diversões, onde, entre amigos, Flecha Negra celebra mais uma noite de glória. Pietro recebe Barroso com um sorriso.
-- Que grata surpresa!
-- Todos presos.  
-- O que se passa, estimado delegado?
-- Contravenção conforme o artigo 402 do Código Penal.
-- Como assim?
-- Isso o seu advogado perguntará ao juiz. Prendam todos por prática de agilidade e destreza corporal proibida.
-- Um momento. Tenho licença para exibir artes marciais.
Barroso parece inflar-se à medida que lê a defesa feita pelo juiz Abreu Vaz de que a arte marcial de Aníbal é um número de diversão incapaz de incitar o tumulto, ameaçar pessoa certa ou incerta e menos ainda de incutir temor de algum mal. As orelhas se ruborescem sob o efeito do argumento de que a ciência médica já apregoa os benefícios dos exercícios físicos para a saúde e os lábios se cerram com a conclusão: por todas essas razões e por se tratar de um espetáculo, autorizo a exibição das artes marciais. Diante de olhares satisfeitos ou cabreiros, Barroso engole em seco sua derrota e se retira em passos duros, seguido pelo seu piquete.

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Capítulo Quarenta e Quatro

DELIBERAÇÕES


Manhã de segunda-feira. Silva Castro reúne-se com delegados.
-- As autoridades sanitárias requisitaram nossa força para auxiliá-las nas vistorias domiciliares. Há moradores dificultando as vistorias e outros resistindo a assinar a notificação, quando não, o ultimato de desocupação. Recomendo que nesses casos empreguem meios suasórios e, na ineficiência deles, aqueles que a auxiliada autoridade julgar indispensáveis à execução do serviço. A exceção é a ordem de habeas corpus. Se exibida, respeitem-na. O impedimento será removido pela instância de direito.
Silva Castro continua a instruir o grupo, enquanto as antenas do delegado Barroso farejam nas instruções oportunidades de cavar uma promoção. Como abelhas, ideias lhe surgem e voam em direção à área da sua circunscrição policial onde o prefeito opera planos de limpeza moral e material. E lá o enxame adeja sobre a Maison Moderne sugando as perspectivas da contravenção relatada por Raposo horas antes. Arte de Aníbal! - retruca Barroso com os seus botões e vislumbra o efeito na sua carreira, se entregar para Pereira Passos o fechamento antecipado da casa de diversões.
Tão logo retorna à delegacia, convoca uma reunião extraordinária e repassa para a equipe as instruções recebidas. Tempo depois, é a vez do subdelegado Ananias de repassar os informes para Pietro Segretto, dono da Maison Moderne.
-- As vistorias sanitárias começarão pela Avenida Central e adjacências, depois avançarão pelo Largo da Carioca e logo chegarão aqui, na Praça.
-- Logo guando?
-- Aí não sei dizer.
-- Tudo bem. Estarei preparado para a visita.
-- Cuide também da luta. O comentário de ser capoeira é voz corrente. Pode apressar a vinda de seus desafetos e o fechamento da Maison.
Para bem receber a força sanitária, Pietro recorre à judiciária. Fala com Abreu Vaz, juiz que se tornou seu estimado ao excluir dos registros policiais as anotações de suas treze prisões. Contravenções cometidas em tempos de jovem imigrante no país e enterradas no passado. Há mais de uma década, desfruta do apreço de muitos na cidade. Prazo e condições negociadas, Pietro parte, reluzindo o seu otimismo habitual.
A semana transcorre. Dia após dia, crescem o número das visitas sanitárias realizadas e o das notificações entregues aos proprietários desapropriados. Em direção inversa, na Escola da Praia Vermelha, decresce o número de alunos sabatinados em segunda chamada e aproxima-se a data dos exames de admissão à Instituição. Nem todos são calouros. Um e outro se enquadram na categoria "a turma da Politécnica. Sem condições mais de arcar com as mensalidades da universidade particular, disputam uma vaga no curso de engenharia militar. Com o concurso dessas atividades e do tempo, Herculano se recupera do abalo sofrido durante o banho de mar tomado pela mulher. Adormecem assim as aviltantes lembranças da esposa enlaçada ao banhista em meio às ondas de Copacabana, bem como se dissipam as inseguranças de vencer na rua e perder dentro de casa. 
Outro acontecimento desses dias diz respeito ao término da investigação de BV sobre o Capitão. Com pouco a dizer, procura o patrão no solar da São Clemente. É recebido na sala de jogos.
-- A ficha do homem é limpa. Frequenta a galeria do Congresso, mas nada prova que seja um florianista. Não possui dívidas nem vícios. Vive da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. No domingo, costuma ir para o arraial onde a mulher está em tratamento médico e na segunda-feira retorna para Botafogo, onde passa a semana. Tem posses, herdadas da esposa, e dois imóveis foram desapropriados na Avenida Central.
Theodoro lamenta consigo mesmo a última informação. Suscitou-lhe possíveis insatisfações com o valor das indenizações e a necessidade de gastar mais munição do que a pensada para tornar Herculano seu informante na Escola da Praia Vermelha. Ante o cenário dos préstimos do chefe da polícia para lhe informar sobre o Capitão, mira a área descoberta pela investigação de Silva Castro para deliberar sobre a questão.
-- Bote o Coelho para vigiar a família e volte para seus afazeres.
-- Sim, senhor.
O empregado se retira e o patrão encaçapa a derradeira bola de bilhar. Sorri do seu êxito. Contempla a extensão vazia do feltro verde, após pegar a bola branca e a imagina como a informação que porá Herculano dentro dos seus planos. O que o move, Capitão? – indaga Theodoro em pensamento, tomado pelo prazer da competição.

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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Quarenta e Três

DO POLVO


Silêncio na biblioteca do solar.  À escrivaninha, Theodoro anota providências que terá de tomar durante a ausência do pai na cidade. Em véspera de embarcar para o exterior com a esposa, Honório Augusto está de pé, perto da janela. Reservara o final do despacho familiar para tratar de temas delicados e introduz o primeiro da sua lista.
-- O comendador me procurou bastante aflito. O que se passa?
-- Não posso atendê-lo a toda hora e ele não aceita que estou de mãos atadas.
-- Está mesmo?
-- Não tenho amparo legal nem a tal Sinhá quer vender o imóvel. 
-- Com tantas leis novas, deve haver uma para pressioná-la a mudar de ideia.
-- Quer que eu gaste munição com bobagem?
Honório Augusto se vira para Theodoro e responde em voz firme.
-- Bobagem, não. Temos interesse na valorização da região e o comendador perdeu renda com a desapropriação dos cortiços. Não esquecerá se o ajudarmos.
-- Verei o que posso fazer e agradeço se não me envolver mais em coisa miúda.
-- Deixe de ser insolente e ingênuo. O comendador vota e faz voto.
-- Que tal um cálice de licor?
-- Aceito.
Theodoro caminha até uma mesinha com um riso de canto de boca. Ali escolhe a bebida e a serve para os dois. Já o pai se senta e lhe pergunta sobre uma operação emperrada que tem tudo para contrariar amigos próximos:
-- Como anda o arrendamento do porto, alguma novidade?
-- Nenhuma. Tudo indica que o acordo será empurrado para o próximo governo.
-- Faz sentido. Tem de haver uma divisão mais equânime das oportunidades entre os estabelecidos, sobretudo, os nacionais.
-- Dinheiro não tem pátria e não lucraremos nada se ficarmos a defender a colcha de retalhos das concessões, diz e lhe entrega o cálice de bebida.
-- São os da terra que levarão você a presidência, retruca Honório Augusto e ergue a taça numa menção de brinde.
Theodoro responde ao gesto e se senta diante do pai, que prossegue.
-- Pelo menos na concessão da eletricidade deveria tentar integrar um dos nossos.
-- Sem condições – e por deliberação do grupo.
-- As animosidades se formam e tendem a ficar maior. Se alguém descobre que você está metido nisso, não irá lhe poupar.    
-- Estou tomando os meus cuidados e haverá contrapartidas para os perdedores.
-- Antes assim. Telegrafe-me tão logo feche a participação.
-- Pode deixar.
-- Depois, quando eu voltar, aparo possíveis arestas e a gente começa a tratar da sua candidatura ao governo do Rio.
-- A partilha de quem ficará com o quê nas concessões federais será decidida de agora em diante. Melhor eu ficar perto do próximo presidente.
-- Não temos como te emplacar de novo na secretaria e precisa atuar num posto efetivamente executivo. Vamos mirar a pasta de viação e obras públicas. O que acha?
-- Ganho visibilidade maior e perco liberdade para articular.
-- Nem tanto. Ontem mesmo, no Jóquei, Marcondes só lhe teceu elogios e a mesa inteira concordou. Tem um exército para articular em seu lugar. Basta estalar os dedos.
-- O que mais conversaram?
-- Trivialidades no geral, mas a sós, Marcondes disse que conta com você para achar um bom diretor para a empresa de asfalto. Quem pensa em indicar?
-- Algum engenheiro com um bom trânsito no governo.
-- Escolha bem. Anda a favorecer gente esforçada, mas sem berço. Isso não é bom.
-- Porém necessário. Precisamos de técnicos e de dar ar republicano ao governo.
Honório Augusto faz um esgar de desdém. 
-- Modernidades a troca de nada. Sem laços de sangue e compadrio não há poder.
-- Estou a cuidar dessa segunda parte.
-- Quem sabe convenço seu irmão a voltar. São tantas as perspectivas.
-- Bota perspectiva nisso. Além da usina, o grupo quer construir uma siderúrgica.
-- Onde?
-- Na Ilha do Governador.
-- Temos aquele terreno do seu tio.
-- Sim e o plano é perfeito: extrai o minério das Gerais, despacha a carga pelo trem, processa o produto na Ilha e o exporta pelo porto. Tem ideia do que é isso?
-- Um polvo de tentáculos de ouro.
-- A enlaçar também a eletricidade e a telefonia.
-- Não desconsiderei esse adicional. É um plano fabuloso. Nunca vi nada igual.
-- Tem mais. Podemos montar a mesma sequencia para a borracha. A estrada de ferro no Acre sairá. É ponto acordado com a Bolívia. Há o porto de Manaus prontinho, a nossa espera. Só falta instalar a processadora na Amazônia para completar a corrente de lucros. O que me diz?
-- Não há porque Hélio Augusto cuidar de oliveiras em Portugal.
-- É o que digo há tempos: o lugar dele é do nosso lado, não com o sogro.
-- Quanto a esses outros negócios, irá propor também participação acionária?
-- Posso ser remunerado de modo diferente?
-- De modo algum. Não é contínuo para receber gorjeta por ajudas valiosas.
-- Ajuda não. Trabalho duro e caro. Não chegamos até aqui num passe de mágica.
-- Não mesmo. Irei falar com seu irmão. É preciso haver um equilíbrio entre as fortunas de vocês. Assim a família tem base sólida para ficar sempre unida.
-- Não faço objeção alguma e a hora de ocupar o espaço é agora. Mais uma dose?
-- Obrigado. Já bebi o suficiente. 
Theodoro se dirige à mesa de bebidas e o pai aborda o último tema pendente.
-- Mudando de assunto, como pôde insistir na contratação de Valentin?
-- Tenho motivos e não há mais o que dizer se ele já está no solar.
-- Alto lá. Ainda sou seu pai e não posso ser pego de surpresa como fui hoje aqui.
-- Evitei falar para não lhe incomodar antes da hora.
-- Hun! Às vezes você é de uma imprudência que não faz jus a sua inteligência.
-- Só Valentin possui as aptidões para o serviço que eu quero.
-- Rigor tolo. A cidade possui bons fotógrafos com raízes na França.
-- Porém é bom o serviço ter uma assinatura familiar.
-- Sim, se não houvesse o risco das excentricidades de Valentin.
-- Não se preocupe, terminado o trabalho, ele partirá.
-- Espero. Agora vamos voltar para a sala. Cordialidade é sempre bom até com hóspedes indesejáveis.
Theodoro toma a bebida de um gole só e segue Honório Augusto.

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terça-feira, 21 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Dois

A ARTE DE ANIBAL


Ainda mais lotado e fervilhante o espaço coberto do Maison Moderne recebe Mariinha e Belizária de volta. Agora há clientes de pé entre as mesas e aglutinados perto de cada lateral do palco. Esses são os capoeiristas. Trajam indumentárias parecidas que se diferenciam apenas pela posição da aba do chapéu e pela sobreposição da cor da cinta da calça. Nos da esquerda, da nação Nagoa, a aba da frente do chapéu está levantada e o vermelho se sobrepõe ao branco na cinta; nos da direita, os Guaiamu, essas cores se invertem e a aba do chapéu está abaixada. O território desses compreende o centro da cidade de cercanias dominadas por aqueles. Mas para Juliano não existe essa divisão: sua nação é a cidade inteira. Um preceito tolerado pelos Nagoas e os Guaiamus que, dispostos a enfrentar a polícia, se preciso, vieram à estreia não pelo prêmio, mas pela satisfação de lutar com o filho de Malaquias, o bamba entre bambas deportado há mais de uma década por jogar capoeira.
O mestre de cerimônia surge no palco trajando casaca e cartola brilhantes.
-- Senhores e senhoras, com imensa satisfação, a Maison Moderne, casa de diversões variadas e ótimas para todos os gostos, organizou para vos alegrar a exibição das artes marciais de Aníbal. Valente general africano, Aníbal derrotou gregos, romanos e outros povos mais com a força do seu exército e o poder da luta que irão ver aqui.  
Desconhecedores do tal Aníbal e de seus feitos, os capoeiristas e as mulheres do casarão da Sinhá se entreolham com ar cabreiro e voltam a mirar o mestre de cerimônia.
-- Uma salva de palmas, estimado público, aos escudeiros dessa arte secular.
Liderados por Zé da Baiana, seis jovens entram tocando tambores, marimba e berimbau. Descalços, vestem camisa de malha branca e calça da mesma cor, em corpos ornados por colares de contas e cintas azuis. Distribuem-se num semicírculo aberto para o proscênio. O mestre de cerimônia retoma a palavra.
-- É chegada a hora, senhores e senhoras. Acomodem-se bem e preparem vossos corações para o inesquecível. Vem aí o mais laureado entre os mundiais herdeiros da arte de Aníbal. Vem aí Fleeeeeeeecha Negra!
Tambores rugem, metais vibram, palmas ritmadas soam... Como um redemoinho, o convocado adentra em saltos e giros, que o levam até a beira do palco, onde, ereto, esguio e belo, se exibe vestido com uma blusa sem mangas e um saiote sobre a calça, num todo azul escuro. Usa também cinturão e elmo prata, com o tronco cruzado por colares de contas iridescentes.
-- Oxalá, meu Pai. Saravá, Ogum, exclama Divina.
-- Que São Jorge o defenda, clama Sinhá Cota.
-- Assim seja! Saravá, repete a totalidade à mesa, com a exceção de Delfina. A emoção de ver o filho, cópia do pai, vestido como o orixá da guerra, embargara a sua voz. Já Mariinha, contagiada com a força emanada por Juliano, orou mais um pouco: Ogum, São Jorge, mate os dragões da minha vida.
Inicia-se a exibição da arte marcial. Flecha Negra luta com Zé da Baiana. A peleja parece um diálogo corporal no qual os movimentos são como perguntas e respostas de como deferir golpes ou deles se safar, ao rés-do-chão, ou ao alto, numa sequência de agilidade e destreza que diverte o público e enche de orgulho as mulheres do casarão.
Aplausos entusiasmados marcam o final da demonstração, avolumados pelo frenesi de saber que o melhor da noite está por começar: o certame que decidirá o resultado das apostas - e todas feitas à surdina, pois são proibidas. Uma pessoa, entretanto, nutre outras expectativas, no fundo do espaço. É Raposo, o fiscal da guarda. À paisana, observa com intenções de denunciar o que intui e vê, enquanto, Pietro, o dono da Maison Moderna contempla a plateia eufórica, tomado de satisfação.
O mestre de cerimônia estimula a plateia para o desafio.
-- Quem se habilita a derrotar o invencível Flecha Negra? Ao vencedor as glórias e nove mil reis. Ao perdedor, nossos aplausos e Mimi para curar os hematomas. Mimi, vosso adorável e leal público a chama.
Ouriçados com ambos os prêmios, os homens vão ao delírio com a entrada da jovem loira, de busto a saltar do apertado peitilho do vestido, cintura de mariposa a requebrar e pernas descobertas pela saia em babados que cobrem até os joelhos. Do regaço dos seios, Mimi tira um lenço que beija e joga para o público. Vagas masculinas se levantam para pegar a prenda no ar. O mestre de cerimônia retoma a palavra e autoriza a subida do primeiro candidato da disputa.
A peleja se inicia com Zé da Baiana de juiz e com um Nagoa em luta. Acertado por um golpe, um Guaiamu toma o lugar do adversário de Juliano, e assim ocorre uma sucessão de revezamentos entre lutadores de cada nação e de vitórias para o jovem. Durante esses marciais instantes, aquilo que parecia um diálogo corporal torna-se de fato uma disputa de força e agilidade que faz a plateia torcer e vibrar. Até que, em dado momento, o que mobiliza os expectadores não são mais as defesas perfeitas de Juliano, nem seus exímios contra-ataques. O que prende os olhos de todos, num crescendo de frisson nervoso, é a resistência sobre-humana de Flecha Negra. O adversário da vez é derrubado com uma cabeçada que atordoa até o emissor. O público exclama quase em uníssono: Aaai! – e o suspense se forma em torna da possibilidade de Juliano tombar. Os Nagoas e os Guaiamus confabulam entre si e decidem parar a candidatura por julgar uma desonra obter uma vitória sobre alguém, no limite de uma resistência colossal.
Como um touro resfolegante, lustroso de suor, olhar congestionado, Juliano fita a plateia – e a imagem sonorizada por um zumbido oscila diante dele, como se a Maison Moderne fosse um navio em mar revolto. Em respiração suspensa, coração batendo forte, as mulheres do casarão da sinhá Cota oram, os capoeiristas se imobilizam em inquietante concentração, enquanto os expectadores das últimas mesas erguem-se para não perder o desfecho e ali ficam como estátuas. O silêncio se faz por alguns segundos, até que o mestre de cerimônia conclama novos candidatos. Ninguém se apresenta.
-- Dou-lhe uma...
Rostos ansiosos se viram e nenhum esboço de candidatura é visto.
-- Dou-lhe duas...
Persiste a tensa recusa em subir no palco.
-- Dou-lhe três.
Nada. Nem um movimento acontece.
-- Luta encerrada com a vitória do invencível Flecha Negra.
A ovação explode. Urras são dadas e chapéus jogados ao ar. Dançarinas radiantes ocupam o palco no compasso alegre da música ritmada também pelos instrumentos dos escudeiros. O mestre de Cerimônia e Zé da Baiana erguem os braços de Juliano. Mimi enxuga a testa do invicto. Pietro regozija a esfuziante manifestação, as mulheres se abraçam e depois contemplam Flecha Negra, erguido por um grupo de Nagoa e de Guaiamu. A emoção delas é tanta que nem conseguem acompanhar direito o coro que canta brava gente brasileira longe vá temor servil, em uma babel de sotaques e num ritmo nunca antes visto na terra Brasilis. O estrepitoso civismo ainda fervilha, quando Raposo deixa o espaço – e a glória prossegue noite adentro no coração de muitos cidadãos.

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Capítulo Quarenta e Um

MARCO ZERO


É noite de estreia de Flecha Negra no palco da Maison Moderne. Vozes, risadas e euforias vibram no espaço, ao som de cordas e metais, enquanto homens abeirados do palco se extasiam com o apetitoso das dançarinas-cantoras revelado durante o volteio da coreografia. Sinhá Cota e as mulheres do casarão já chegaram acompanhadas da baiana Inácia, mãe do Zé, amigo de Juliano, que irá participar da proibida capoeira com outros companheiros. O caixeiro Altino e a costureira Ismênia também prestigiam a estreia do vizinho de rua que viram crescer e há pouco se integraram ao alegre e ansioso grupo feminino, distribuído ao redor de redor de mesas unidas, com duas cadeiras vazias. São de Belizária e de Mariinha, que foram logo ali e já voltam.
O logo ali ocorre em trajetórias circulares oferecidas pela roda-gigante do parque da casa de diversão. Belizária jura nunca mais fazer a vontade de Mariinha nem andar nessa roda de encantamento há tempo temido e de terror comprovado ao longo de giros infernais que a impedem de apreciar a vida com a segurança da terra firme. Por mais que tente, não consegue mover a cabeça para lado nenhum nem mirar para onde a amiga roda com um olhar acarneirado para a razão motivadora da ausência à mesa: o procurado de dias atrás, Abel Adônis, um solteirão de quarenta anos de idade, versado em estrofes de poesia, com quem já esteve outras vezes em calorosos encontros.
-- Ah! Sinto uma coisa quando a roda sobe e outra quando desce.
-- Ó, menina linda. O viver tem disso e outras inebriantes palpitações.
-- Como sonho ter uma vida assim.
-- Tão mimosa como és, pode ter o mundo aos teus pés.
Mariinha se percebe ainda mais cheia de encantos e poder.
-- Dizes isto para todas ou só para mim?
-- Só para as que podem se aninhar em cetim carmesim.
Cor e tecido a agradam, mas não a ausência de exclusividade.
-- Faça parar essa roda. Não quero mais girar com o senhor.
-- Tudo ao seu tempo, mimosa!
-- Quem tu pensas que eu sou?
-- Um eflúvio luminoso... Trescalante, morno e entorpecedor.
Mariinha não entende o significado de todas as palavras, porém, pelo modo como foram ditas, em lábios debruados de volúpia e olhar incendiário, decifra o sentido como algo relacionado aos pecados da paixão. Já seria uma pecadora completa se não temesse o risco de ser deserdada do paraíso nupcial, que sonha penetrar. Inflada de onipotência juvenil e de desejos, acha melhor reagir como o esperado de uma donzela de família. Ergue a mão para desagravar a ofensa. Abel segura o pulso no ar.
-- Não te agites, botão de rosa. Posso te ajudar a realizar os teus sonhos.
-- Então me cortejes direito. Por que não me pedes ao meu pai de criação?
-- Meu ofício não permite, nem sou talhado para o casamento.
A dúvida de quais impeditivos matrimoniais um empresário de diversão pode ter estampa-se na feição de Mariinha e, no segundo seguinte, cede lugar ao ar resoluto.
-- Se é assim, de mim não terás nem mais um olhar.
-- Ó lago que a brisa mal encrespa, ainda não és um oceano para luxar!
O medo de ter sido incisiva e de perder Abel a faz mudar mudar de arma. 
-- Por que és cruel se te quero tão bem?
-- Porque sirvo a outros com os botões que colho nos passeios.
A declaração relampeia a compreensão e Mariinha entende a natureza do ofício de Abel, suas apalpadelas eletrizantes e o motivo de certa vez ele lhe ter tido, em peito arfante, que a preciosidade dela era digna do sacrifício dele. Que lindo, achou e suspirou diante do cavalheiro de seus sonhos. Entende também o próprio engano e o derradeiro: correu das alcoviteiras de pretendentes baratos para cair nos braços de um rufião, que deve ter planos de faturar com a sua virgindade. Não! Não pode ser, pensa e balbucia:
-- Lanças donzelas?!
-- Só as valiosas e num mundo a parte até para os teus sonhos mais fantásticos.
As sobrancelhas dela se erguem e a testa se vinca num espanto só.
-- Queres me lançar?
-- Se for do teu querer.
-- És um infame!
-- Quieta, menina atrevida, diz Abel, apertando uma de suas bochechas.
-- Vou contar pro meu pai e serás preso. Sou de menor.
-- O que queres? Desconjuntar essas belas ancas com o peso do batente?
-- Eu quero casar com um homem bom e protetor.
-- Esperta, como pareces ser, poderás até conhecer o amor.
-- Nunca mais te verei, nunca mais.
-- Pense bem, pombinha, estarei por perto, se mudares de ideia.
Mariinha silencia. Teme desperdiçar sua beleza numa vizinhança de gente pobre e deseja sair da casa dos pais de criação onde tudo está bom, se há saúde e se assim é a vontade de Deus. Odeia a lida doméstica. Não quer ter as mãos queimadas pelo ferro de brasas, a barriga molhada pelas roupas lavadas, o joelho esfolado pela limpeza do assoalho, a esperteza gasta em fazer render a comida e os olhos ardidos com a miudeza dos pontos exigidos por Ismênia na costura. Quer ser a Margot aspirada: trajar vestidos, luvas e chapéus franceses, passear de coche, brilhar com joias no Theatro Lyrico, tomar sorvetes na confeitaria e ter alguém para protegê-la das adversidades. Quer muito tudo isso. Nessa atmosfera raiada de luz e ao som do realejo, percebe seu sonho pendular, como a cadeira da roda-gigante a cada parada, ora para frente, ora para trás, em fluxo que diz para seguir adiante e refluxo que sinaliza as perdas de se afastar da vida honesta. Nesse ir-e-vir, o casal chega à portinhola da roda, com Belizária à espera. Abel desce e estende a mão. Cortesia aceita, Mariinha se move sem transparecer para a amiga a decepção de retornar ao marco zero dos seus sonhos.
-- Boa noite, senhor Abel. Agradeço a diversão.
-- Faço votos de te ver em breve.
As duas se afastam de braços dados. 
-- E?
-- E o quê?
-- O que ele disse.
-- Um monte de coisa.
-- De que tipo?
-- Segredo.
-- Qual?
-- Deixa de ser abelhuda.
-- Que um raio caia em mim se o meu interesse não for pro seu bem.
-- Quer me pedir para o meu pai.
-- Nossa! Tão depressa assim?
-- Tem de ser devagar?
-- Pra ter tempo de conferir se ele é solteiro e se pode cuidar direito de ti.
-- Não me desoriente! Preciso pensar.

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domingo, 19 de abril de 2015

Capítulo Quarenta

COMO UM JOGADOR


Uma hora atrás, após despachar com Theodoro as deliberações do dia, Rodrigues Alves lera o relatório sobre o entrevero entre o deputado Alfredo Varela e o presidente da Câmara Federal. Mais correto dizer que o presidente passara os olhos pelo papel. Não por indiferença ao conteúdo já adiantado pelo Ministro da Justiça, o mensageiro do documento confidencial. E sim porque sua atenção estava na sedição evocada pelas ameaças registradas pelo chefe de polícia e o papel era o ponto focal desses instantes em que analisava o que decidiu e anunciou em seguida: ampliar, para além do Congresso, a vigia dos políticos oposicionistas e chamar Theodoro de volta à sua sala. Neste momento, o ouve opinar sobre o discurso.
-- Varella possui têmpera inflamada e a tribuna é um local apropriado. Dr. Silva Castro apenas cumpriu seu papel sem atinar para esse particular.
-- Ou atentou para o possível. Cão que ladra uma hora morde.
O tabefe verbal agrava a tensão desencadeada pelo motivo do retorno ao gabinete. Mas Theodoro lida bem com a situação. Como um viciado em jogo, a espera de vencer a próxima partida, administra a tensão com ar respeitoso e atento à reação alheia.  
-- Garanto-lhe que não ignoro os tipos intempestivos nem situações aparentemente insuspeitas. Porém, filtro as preocupações para não assoberbá-lo desnecessariamente.
-- Faz bem e o aconselho também a não perder de vista que o custo humano das prioridades do meu governo é um capital valioso nas mãos da oposição.
-- Sim, senhor. Esteja certo de que sempre ponho esse custo em perspectiva em tudo que faço para cumprir a minha missão no governo.
-- A atitude de Varella nos abre a possibilidade de revalidá-la. Há algum ponto que gostaria de rever do compromisso assumido comigo?
-- Não, presidente. Embora haja vozes destoantes e possam surgir outras, asseguro que o senhor terá as leis que precisa para governar.
-- Ótimo. Em frente.    
Questão resolvida, Theodoro sai do gabinete e encarrega BV de fazer com que o chefe de polícia esteja no Clube dos Diários para um encontro no final do expediente.
Silva Castro não tem tempo de saborear o inusitado convite, pois, como um estalo, seu relatório lhe vem à mente. Pensa em insatisfações que expliquem o encontro e se apresenta pontualmente no local combinado, onde os influentes da cidade se reúnem para relaxar, discutir interesses e esperar o trânsito diminuir para tomarem a barca, o trem ou um tílburi rumo as suas residências. Espanta-se ao ser encaminhado para uma sala reservada e ali Theodoro o receber como se fosse seu velho conhecido.  
-- No salão, nossos amigos disputariam nossa atenção.
-- De fato. O Clube é muito prestigiado e o horário concorrido.
Pedidos feitos ao garçom, os dois ficam a sós.
-- Pela manhã o presidente quis ouvir o meu parecer acerca do seu relatório sobre os ânimos na Câmara. Como estarei muito ocupado nos próximos dias, preferi não adiar a oportunidade de parabenizá-lo. Um excelente trabalho.
Confirmada a razão do convite, Silva Castro se defende com sutilezas.
-- Agradeço em nome de todos da Segurança Pública. Nosso trabalho tem seus dissabores e precisa ser executado de maneira irrepreensível. Assim, não poupo esforço.
-- A olhos vistos e com uma agilidade admirável.
-- Os tempos exigem e a oposição parlamentar requer controle absoluto.
-- Com certeza, pequena, mas inconsequente, pode nos criar problemas.
-- Não, se depender de mim, Dr. Theodoro. Investigo o menor sinal de ameaça. Não ignoro nada, diz o convidado se valendo do ensejo para aprofundar sua defesa.
-- Por isso sempre digo ao presidente e também a Seabra: com Silva Castro à testa da Polícia, não seremos surpreendidos com embaraço algum.
-- Agradeço a confiança transmitida aos meus superiores e adianto que, com a entrada em operação da Guarda Civil, no mês que vem, terei melhores condições de manter o Governo de sobreaviso acerca de possíveis riscos.
-- Isso é muito bom. Mas fico cá a pensar no seu desgaste. Deve ser fatigante ter de sobrecarregar o presidente com toda e qualquer ameaça pressentida?
Silva Castro fica confuso. Jamais imaginou que poderia fatigar o chefe da nação com a sua intenção de lhe mostrar serviço.
-- Ossos do ofício, senhor secretário. Como fazer diferente?
-- É o que me perguntava quanto me deparava com uma questão mais alarmante: Theodoro, o presidente precisa saber disso, mesmo que ele diga “está é uma missão que deleguei ao senhor, cumpra-a do modo que achar melhor”. Já ouviu essa frase, não?
-- O ministro Seabra costuma me inteirar sobre ela.
-- Se depender de mim, em breve o senhor a ouvirá diretamente do presidente.
Silva Castro não pode saborear o apoio anunciado. Se, por um lado, agrada-lhe ser apadrinhado por Theodoro, por outro, teme dever favor a ele. Na balança do poder, seu prato alcança a altura máxima, impulsionado pelo peso do outro. Não só por causa da diferença de hierarquia, um nível menor, como também porque seu poder não vem de família. Conquistou-o na marra, com muita subserviência, peleja e após aprender a tirar partido da situação. Mas essa é colossal. Meneia a cabeça em sinal de agradecimento e dá corda a Theodoro.
-- Quanto à carta branca que o presidente lhe deu, que conclusão chegou?
-- A mesma que o senhor decerto chegaria. Concorda que não podemos refutar a confiança dele em nós, nem estafá-lo à atoa, se temos bons colegas para nos aconselhar?
-- Realmente uma escuta esclarecida nos ajuda a decidir o que poupar ou informar o superior, num primeiro momento.
-- Folgo em saber que pensa como eu e acho que podemos nos ajudar. Afinal, muitos pontos das nossas atividades se completam. O que me diz?
-- Muito me lisonjeia unir nossas forças para o bem da Pátria. Estou às ordens.
-- Faço minhas suas palavras. Conte comigo para o que precisar.
Silva Castro acha melhor selar a aliança.
-- Tenho algumas notas sobre os opositores da reforma. Gostaria de lê-las?
-- Claro. Esse é o espirito do nosso apoio mútuo.
-- Levarei o relatório ao seu gabinete. Aliás, depois do nosso encontro no Senado, copilei de modo mais objetivo as informações que disponho sobre Herculano Dias.
-- Alguma suspeita desde então?
-- Nenhuma. Trata-se apenas de precaução. O Capitão frequenta as galerias do Congresso. Não sempre, mas o suficiente para eu acompanhar de perto esse interesse.
-- Vejo que faremos uma boa associação.
Após se retirar do Clube dos Diários, Theodoro se encontra com BV e o ordena entregar uma cesta de iguarias da Raffinée na casa de Silva Castro e incluir a residência na lista dos agrados mensais. Libera BV e toma um coche de aluguel. Distende-se no banco. O escuro da cabine lhe faz bem e ainda o ruído dos cascos dos cavalos a golpear as pedras do caminho. Parece marcar a cadência dos seus pensamentos: de confrontar as informações pedidas ao empregado sobre o Capitão Dias com as oferecidas pelo chefe da polícia, de ter um militar que lhe relate sobre os ânimos na Praia Vermelha, de Herculano vir a ser esse informante, de convidá-lo para o sarau, por que não? E assim por diante Theodoro passa em revista as possibilidades de controlar melhor a situação.

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sexta-feira, 17 de abril de 2015

Capítulo Trinta e Nove

CONSULTA CONSPIRATÓRIA


O toque da corneta anuncia a alvorada na Escola Militar da Praia Vermelha. Em andamento lento, como se desse tempo para se entender que é hora de acordar, o chamado para o dia ganha ritmo à medida que evolui e ressoa por onde Estácio de Sá fundou, em 1565, São Sebastião do Rio de Janeiro, a serviço da Coroa Portuguesa.
Nessa região histórica, a Escola se exibe incrustada entre o sopé do maciço de onde irrompe o Pão de Açúcar e a base do morro de flanco para o areal do Leme. Decerto que tais elevações superam em imponência a da edificação, erguida em 1864. Mas verdade igual é que a Escola, atravessada no descampado como um istmo, marca a sua presença com seus austeros e retilíneos pavilhões, interligados por um vistoso pórtico central. Assim, de estrutura tão sólida quando a dos fundamentos do pensamento científico cultuado no seu interior, a Escola se destaca na paisagem e faceia, de um lado, a praia da Saudade e, do outro, a praia Vermelha, cujo nome ostenta.
A princípio, atribuiu-se a cor dessas areias ao sangue derramado pelos indígenas Tamoios e pelos aliados franceses durante a batalha perdida para os portugueses, em 1560. Os Tamoios deram combate em defesa do seu território e os aliados, do princípio que facultava a exploração da terra por quem a ocupasse. Os portugueses, por sua vez, os combateram com base no Tratado de Tordesilhas de 1494, que dividiu, entre o reino de Portugal e o da Espanha, o mundo descoberto e o por descobrir para além da Europa. Mais tarde a ciência revelou que a cor vinha de cristais de granada presentes naquelas areias regadas pelo fluxo e refluxo das marés e sem ligação com o sangue ali derramado sob o influxo dos domínios humanos.
O sol já brilha forte quando Agostinho atravessa o pórtico da Escola e muda o seu itinerário. Ao invés de ir para o seu gabinete, dirige-se ao de Herculano, com a intenção de saber se pode envolvê-lo num plano de conspiração. Dado que golpe de Estado se monta, precisa contar com tipos insuspeitos, capazes de aglutinar forças rebeldes. O Capitão lhe parece ser a pessoa ideal, na seara da Escola. Comprovada pelo caráter retíssimo e pelas virtudes acadêmicas, sua palavra tem peso entre os estudantes, enquanto sua influência não causa preocupação às altas patentes, em razão do seu histórico de respeito à hierarquia. Mas essa particularidade não engana Agostinho. Ao contrário. Dá-lhe ideias do que se esconde naquele caráter severo e exigente que jamais granjeou a indiferença dos republicanos mais aguerridos que passaram pela Escola.
Abre a porta do gabinete, após uma batida rápida, e entra sem cerimônia.
-- Tem um minuto, Capitão?
-- Até mais de um, Major, responde Herculano tomado pela suspeita do motivo da visita e levantando-se para bater continência.
-- À vontade. Posso me sentar?
-- Por favor, diz Herculano, indicando-lhe a cadeira da escrivaninha reservada aos visitantes. Do outro lado da mesa, volta a se sentar. -- A que devo a honra?
-- À Pátria, porém numa conversa não oficial entre velhos companheiros.
-- Pois não.
-- No espírito proposto e sem delongas, retomo a pergunta que lhe fiz ontem sobre as reformas. Acha que desencadearão insatisfações passíveis de depor o governo?
A pergunta apraz Herculano, mas nada em sua feição revela o prazer de confirmar sua suspeita de ser alvo de uma consulta conspiratória, nem mesmo a sua entonação, reflexiva, o denuncia. 
-- Projeto grande, Major.
-- Elucubrações, Capitão, de um obstinado patriota a outro, retruca Agostinho com ar de ressalva humorada. -- O que me diz? 
Herculano não se deixa seduzir pela cumplicidade aventada e mantém a reserva.
-- É preciso haver condições concretas de vitória, não acha?  
-- Tanto acho que estou aqui de peito aberto e disposto a ouvir a sua opinião a respeito, a menos que não se sinta confortável em especular sobre o assunto.  
-- Desconforto algum. Analisar cenários faz parte do ofício militar e sabemos que despotismos, arbitrariedades, criam potencial para um golpe. Resta saber se essa oportunidade será bem aproveitada. Outras não o foram, no passado.   
-- Fomos vencidos pelas oligarquias e também por falta de coesão.
-- O que pode se repetir se não houver o adobo das ideias para criar tal coesão.
-- Restaurar a República não lhe parece uma liga consistente? 
-- Parece, porém só a adesão aos meios da restauração pode sustentar no tempo a vitória. Aliás, recorda-se do que propunha em seus discursos em dias da monarquia?
-- De fazer a moral prevalecer no governo?
-- Exato. E mais especificamente de ser preciso uma força de intensidade tal capaz de desviar para o bem o curso maléfico das coisas e dos homens.
-- Acha que teremos força suficiente para fazer esse desvio?
-- Sim, se estiver aglutinada na ideia de fechar o Congresso.
A proposta não atrai o Major e suscita acautelamento.
-- Receio resistências se seguirmos ao pé da letra a doutrina de Comte.
-- Então não teremos as bases da vitória. Não se disciplina afeições egoístas com o parlamento em funcionamento. Pelas brechas do sistema, o mal se propaga.
Agostinho gosta de ouvir o plural não usado até então por Herculano. Animado por esse sinal de inclusão no movimento, recorre à experiência do governo positivista, implantado por Julio de Castilho com adaptações, para dissuadi-lo do rigor doutrinário.
-- O Congresso é um sistema vulnerável, porém o do Rio Grande do Sul mostra que é possível funcionar a contento se houver mecanismos eficientes.
-- A Pátria espera um progresso maior, mais célere e sem o custo estéril de manter um órgão malsão apenas para aquietar os oportunistas e os utópicos.
-- Contudo, a representação política tornou-se sinônimo de democracia.
-- Numa obra da má-fé e causa do atraso do método de governar. Está na hora de explicar que o progresso e o bem comum não são matérias de crenças nem de barganhas, mas, sim, de ciências aplicadas. Urge edificar o Estado científico sem penalizar mais gerações.
-- Não é temerário querer realizar de uma vez uma tarefa hercúlea de longo prazo?  
-- Não. Fazer o malfeito requer a mesma dificuldade que fazer o bem-feito.
-- Porém ir contra a maré não ajudará implantar a ciência de governar.
-- Esclarecimentos, sim. Tão insano quanto assinar em branco uma procuração para um advogado é entregar aos políticos a deliberação sobre as nossas vidas.
-- Sabe bem o quanto professei a doutrina do mestre. Mas, a duras penas, aprendi que a política tem a sua razão de ser.
-- Porém exercida pelos cidadãos e fora do Estado. Todo cidadão tem de fiscalizar e aconselhar o governo. Mais que dever ou direito, isso é garantia contra o nefasto.
-- As pessoas não têm tempo e é inviável realizar plebiscitos a toda hora, ainda mais num país grande como o nosso e de iletrados, sem preparo para opinar.
-- É. Trata-se de uma empreitada complexa e de risco. Porém, se ela intimida, é melhor deixar o governo que aí está, pois uma opressão igual ou maior será instaurada.
-- Essa é a sua condição para se unir as reflexões?
-- Se fala em reflexões, permita-me amadurecer a questão à luz da sua opinião.
-- Claro, até porque tudo não passa de pensamentos ditos em voz alta.
-- Como os meus.
-- Voltamos a nos falar em outra oportunidade.
Herculano acompanha Agostinho até a porta e a fecha. Enquanto um caminha pelo corredor incerto com os resultados do encontro, o outro permanece parado a recapitular suas opiniões incisivas. Precisava ser e contornei bem o impasse. Todavia o receio de ter se inviabilizado no processa o pressiona. Com a expressão carregada e o olhar fito, assevera consigo mesmo: não ficarei de fora dessa vez. Irei restaurar a República.  

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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