quarta-feira, 15 de abril de 2015

Capítulo Trinta e Oito

DIA DE REIS


Nem todas as preocupações versam sobre o Código Sanitário nem todos vivem instantes de inquietação. Esse é o caso de Juliano e aquele o de Divina e de Delfina, na cozinha de Sinhá Cota. Ontem, na Maison Moderne, o jovem assistiu à exibição da luta marcial do japonês Conde Akito. Aberta a peleja para a participação da plateia, topou o desafio e derrotou lutador. Ganhou nove mil réis de prêmio e foi convidado por Pietro para se apresentar na casa de diversões. Juliano aguardou para dar a boa nova até hora atrás, quando recebeu o dinheiro, que acaba de dividir com as mulheres. Com o viço da juventude a irradiar a glória conhecida no palco da Maison, fala do futuro vislumbrado.
-- Pra seu Pietro é sucesso certo. 
-- Mas Juliano, isso é proibido!
-- No palco, não.
-- Se uma coisa é proibida, é proibida em todo lugar.
-- É como teatro, tia. Luta de artista. E Seu Pietro lida bem com a autoridade.
-- Tá vendo?! Isso não é bom sinal.
-- Mas não é assim com tudo? Ambulante não se vira com a guarda e comerciante, com o fiscal? Seu Pietro também tem que dar seus pulos, ora.
-- E se não pular, filho? Morro se te perder.
-- Oh, mãezinha, num se aflige à toa.
-- Preferia te saber em outro ofício ou de coração inteiro aqui com a gente.
-- Já falamos disso e sabe bem que ajudo com gosto e como posso. Mas meu destino é outro nem posso ganhar a vida na barra da saia das senhoras.  
-- Te entendo, filho. Mas sabes ler e escrever, e contas bem. Podes arrumar um trabalho bom e direito.
-- A luta não é? Hei de mudar nosso futuro!
-- Eu não te peço isso, Juliano!
-- Mas eu quero te dar, mãe, e pra senhora também, tia! Chega de trabalhar como escravas e não ter ganho pra guardar. A gente tem direito ao bom da vida.
-- Tome tento, Juliano, não há melhora de pronto, diz Divina, quieta até então.
-- Crescerei de luta em luta. Vão ver que tudo é sério e possível.
-- Ouça quem te quer bem: caminho batido é mais fácil de andar.
-- Tia minha! Guarde bem estas palavras: serei Flecha Negra, o orgulho da nossa gente e o provedor do casarão.
As mulheres se entreolham, desesperançadas, e depois abençoam o jovem.
-- Se é o que quer... Que Deus te proteja, filho.
-- E Ogum te defenda.
-- Oxalá!
Corina e Conceição terminam os afazeres com o roupeiro no quintal e entram para ajudar Delfina e Divina na feitura de mães-bentas. Não tarda para lhes ser desfiado o rosário das aflições com os planos de Juliano. O silêncio inunda a cozinha. Lindalva, Gracinda e Bebiana chegam da rua. A preocupação percebida, questionada e informada suscita mais discussão que endossa ou refuta as inquietações despertadas pelo rapaz querer ser artista da capoeira. Tempo depois, Belizária surge vindo mais cedo do trabalho. Inteirada também da novidade, reage num misto de atração e rejeição à oportunidade, que provoca outros sim e outros não à sorte ou à tragédia que ronda o jovem. Mais um pouco é a vez de Sinhá Cota adentrar a cozinha, apoiada à bengala e acompanhada de Anunciata. O debate é encerrado para evitar desassossego extra. Há então a dispersão, banhos que acalmam as emoções e vestes e turbantes brancos que as adornam. E com Sinhá de mantilha e leque na mão, as mulheres se distribuem às janelas frontais do casario e Juliano se põe à porta, à espera da visita da bandeira que está para chegar. Levada por devotos de casa em casa, celebra a peregrinação feita por Melchior, Baltasar e Gaspar para honrar o menino Jesus nascido na manjedoura há séculos – e, neste instante, adorna o presépio de uma morada da rua, onde os devotos louvam o bem e espantam o mal, ao som de zabumba, reco-reco e pandeiros.
-- Pelo menos o trato do Juliano com Seu Pietro foi feito em dia bom.
-- Foi sim, Delfina.
-- E ninguém foge do seu destino, não é?
-- Ninguém, responde Divina.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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