NA PRAÇA TIRADENTES
A
lua cheia se eleva, o céu estrela-se e a Praça Tiradentes apinha-se de boemia.
Trajando saia escura, blusa e turbante alvíssimos, Belizária desponta pela Sete
de Setembro depois de ter descido do bonde. Prefere dormir em casa, pelo prazer
desse passeio noturno, que faz em compostura de moça séria, com a pequena bolsa
de pano trazida junto do peito. Das vitrines das lojas aos guichês dos teatros,
das ofertas dos cambistas ao reboliço dos cocheiros, tudo a atrai e a muito
mais espreita: a beleza descontraída que chega para jantar ou assistir a um
espetáculo, os diferentes garbos que entram e saem das charutarias, os
trejeitos adamados dos moços que furtivamente penetram as ruelas arborizadas da
Praça e os modos oferecidos das mulheres de rosto maquiado que sobem e descem
as ruas ao redor.
Mas
o que mais lhe causa frisson é quando berros ecoam, corpos se atracam, brigas
de amor tomam as ruas ou desavenças acertam as contas num beco da redondeza.
Como um raio, corre para o local do fortuito e empertiga-se de espanto ante a
desgraça alheia, em intensidade que lhe perturba o sono e nem por isso evita de
conferir quando nova fatalidade ocorre. A cada drama visto, confere o triz do
destino: a cara da discórdia, a cor do ultraje, o sexo da desdita e o curso da
ventura em fúria, contido ou moribundo. Impressionada e impressionável, remói o
inesperado e amplia seu repertório sobre as coisas da vida que diz conhecer
muito bem. Quanto a si, tem que é uma moça pobre, de pouca formosura, mas
prendada e abençoada por ter caído nas graças de Corina que, na época, escrava
do asilo onde foi deixada na roda dos expostos, cuidou dela e a levou quando
emancipada foi trabalhar com Divina, outra santa que a agasalhou. Com tais
provas da misericórdia de Deus e proteção dos orixás, que ainda lhe deram
emprego bom em casa de família de bem, é crente fervorosa e bendiz o peso da
sua cruz.
Acedem
as gambiarras das casas de espetáculo do entorno, o trânsito reduz e o
movimento na Praça diminui. Belizária prossegue a sua ronda por entre o pessoal
do sereno que se reúne na calçada ao redor de um fogareiro de carvão diferente,
onde donos de bar grelham tira-gostos. Ao luar da iluminação a gás, os grupos
ali comem, bebem e jogam conversa fora. Figura conhecida, a jovem dá boa-noite
para uns, abaixa a cabeça para outros e dobra a esquina em meio ao olor das
vísceras e sardinhas fritas que incensa o ar, desperta o apetite e a empurra
para a casa, em noite de emoção amena.
Desce
a São Jorge, atravessa a Sete de Setembro e avista a vizinha de frente à janela
com a cabeça espichada para a banda de baixo da rua. Por pouquíssimo tempo,
pois a moça se desvira em sua direção – sorri quando a vê – e desaparece
correndo para dentro, onde diz aos pais de criação, o caixeiro Altino e a
costureira Ismênia, que a amiga a chama para comprar sabão. Após esse átimo
longe do seu campo de visão, Mariinha reaparece, mas na rua. Em corpo vistoso,
de seios empinados sob a blusa de chita, a trigueira alterna os ombros para
frente e para trás durante o deslocamento que faz barulhar os balangandãs de
suas pulseiras.
--
Vão comigo ali?
O
convite atiça, mas reservas inibem o pronto aceite. Belizária acha Mariinha
desmiolada, luxenta e cheia de farofas da sua boniteza de cabelo bom. Assim se
faz de difícil para não dar trela à moça.
--
Já ia entrar.
--
Não faz isso comigo.
--
Tó cansada.
--
Hoje é por mim, amanhã por ti...
--
Sei não...
--
Anda! Vem!
--
Onde?
--
Até mais embaixo.
--
Fazer o quê?
--
Ver uma coisa.
--
Que coisa?
--
Deixa de tanta pergunta e anda, diz enlaçando-se na amiga e a fazendo andar.
Formam
um par desigual: uma alta, magricela de corpo duro e a outra, menor,
arredondada em molejos.
--
Se um desconhecido falar com a gente, meu nome é Margot.
--
Que tontice é essa?
--
Tontice nada. É aprumo, diz enrolando uma mecha dos cabelos presos de um lado
por uma flor e com o olhar a borboletear. -- Margot! Num é lindo?
--
Num renega seu nome de santa e nada disso de parar pra desconhecido.
--
Vai que é a sorte?
--
Ou azar.
--
Tenho corpo fechado, coisa ruim não me pega, diz balançando os balangandãs da
sua pulseira.
Belizária
para.
--
Assim, não vou.
--
Cruzes! Que mal há um dedo de prosa?
--
Tudo. De uma nesga de nada, a língua abelhuda faz um trololó e não adianta nem
costurar boca de sapo porque não há mandinga que dê jeito em falatório de povo.
--
Ui, nem diga isso.
--
Digo porque sei das coisa. Fie em mim.
Mariinha
se derrete em tristeza.
--
Tem coragem de me negar um favor?
--
É pro seu bem, responde, lutando contra a curiosidade despertada pelo convite.
--
Oh, Belizária, vai ser rapidinho, e quem há de falar mal se estou com você?
--
Bom, lá isso é verdade.
--
Então vamos.
--
Antes desembucha: a tal coisa que quer ver é esse desconhecido?
--
É.
--
O tipo é digno?
--
Bem vestido.
--
Onde ele tá?
--
Acho que no Bar do Rômulo.
--
Promete pela alma da sua mãe que a gente só vai olhar de longe?
--
Prometo, diz, tomando de novo o braço da amiga e a fazendo andar.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005
by Maria Tereza O. S. Campos
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