terça-feira, 21 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Dois

A ARTE DE ANIBAL


Ainda mais lotado e fervilhante o espaço coberto do Maison Moderne recebe Mariinha e Belizária de volta. Agora há clientes de pé entre as mesas e aglutinados perto de cada lateral do palco. Esses são os capoeiristas. Trajam indumentárias parecidas que se diferenciam apenas pela posição da aba do chapéu e pela sobreposição da cor da cinta da calça. Nos da esquerda, da nação Nagoa, a aba da frente do chapéu está levantada e o vermelho se sobrepõe ao branco na cinta; nos da direita, os Guaiamu, essas cores se invertem e a aba do chapéu está abaixada. O território desses compreende o centro da cidade de cercanias dominadas por aqueles. Mas para Juliano não existe essa divisão: sua nação é a cidade inteira. Um preceito tolerado pelos Nagoas e os Guaiamus que, dispostos a enfrentar a polícia, se preciso, vieram à estreia não pelo prêmio, mas pela satisfação de lutar com o filho de Malaquias, o bamba entre bambas deportado há mais de uma década por jogar capoeira.
O mestre de cerimônia surge no palco trajando casaca e cartola brilhantes.
-- Senhores e senhoras, com imensa satisfação, a Maison Moderne, casa de diversões variadas e ótimas para todos os gostos, organizou para vos alegrar a exibição das artes marciais de Aníbal. Valente general africano, Aníbal derrotou gregos, romanos e outros povos mais com a força do seu exército e o poder da luta que irão ver aqui.  
Desconhecedores do tal Aníbal e de seus feitos, os capoeiristas e as mulheres do casarão da Sinhá se entreolham com ar cabreiro e voltam a mirar o mestre de cerimônia.
-- Uma salva de palmas, estimado público, aos escudeiros dessa arte secular.
Liderados por Zé da Baiana, seis jovens entram tocando tambores, marimba e berimbau. Descalços, vestem camisa de malha branca e calça da mesma cor, em corpos ornados por colares de contas e cintas azuis. Distribuem-se num semicírculo aberto para o proscênio. O mestre de cerimônia retoma a palavra.
-- É chegada a hora, senhores e senhoras. Acomodem-se bem e preparem vossos corações para o inesquecível. Vem aí o mais laureado entre os mundiais herdeiros da arte de Aníbal. Vem aí Fleeeeeeeecha Negra!
Tambores rugem, metais vibram, palmas ritmadas soam... Como um redemoinho, o convocado adentra em saltos e giros, que o levam até a beira do palco, onde, ereto, esguio e belo, se exibe vestido com uma blusa sem mangas e um saiote sobre a calça, num todo azul escuro. Usa também cinturão e elmo prata, com o tronco cruzado por colares de contas iridescentes.
-- Oxalá, meu Pai. Saravá, Ogum, exclama Divina.
-- Que São Jorge o defenda, clama Sinhá Cota.
-- Assim seja! Saravá, repete a totalidade à mesa, com a exceção de Delfina. A emoção de ver o filho, cópia do pai, vestido como o orixá da guerra, embargara a sua voz. Já Mariinha, contagiada com a força emanada por Juliano, orou mais um pouco: Ogum, São Jorge, mate os dragões da minha vida.
Inicia-se a exibição da arte marcial. Flecha Negra luta com Zé da Baiana. A peleja parece um diálogo corporal no qual os movimentos são como perguntas e respostas de como deferir golpes ou deles se safar, ao rés-do-chão, ou ao alto, numa sequência de agilidade e destreza que diverte o público e enche de orgulho as mulheres do casarão.
Aplausos entusiasmados marcam o final da demonstração, avolumados pelo frenesi de saber que o melhor da noite está por começar: o certame que decidirá o resultado das apostas - e todas feitas à surdina, pois são proibidas. Uma pessoa, entretanto, nutre outras expectativas, no fundo do espaço. É Raposo, o fiscal da guarda. À paisana, observa com intenções de denunciar o que intui e vê, enquanto, Pietro, o dono da Maison Moderna contempla a plateia eufórica, tomado de satisfação.
O mestre de cerimônia estimula a plateia para o desafio.
-- Quem se habilita a derrotar o invencível Flecha Negra? Ao vencedor as glórias e nove mil reis. Ao perdedor, nossos aplausos e Mimi para curar os hematomas. Mimi, vosso adorável e leal público a chama.
Ouriçados com ambos os prêmios, os homens vão ao delírio com a entrada da jovem loira, de busto a saltar do apertado peitilho do vestido, cintura de mariposa a requebrar e pernas descobertas pela saia em babados que cobrem até os joelhos. Do regaço dos seios, Mimi tira um lenço que beija e joga para o público. Vagas masculinas se levantam para pegar a prenda no ar. O mestre de cerimônia retoma a palavra e autoriza a subida do primeiro candidato da disputa.
A peleja se inicia com Zé da Baiana de juiz e com um Nagoa em luta. Acertado por um golpe, um Guaiamu toma o lugar do adversário de Juliano, e assim ocorre uma sucessão de revezamentos entre lutadores de cada nação e de vitórias para o jovem. Durante esses marciais instantes, aquilo que parecia um diálogo corporal torna-se de fato uma disputa de força e agilidade que faz a plateia torcer e vibrar. Até que, em dado momento, o que mobiliza os expectadores não são mais as defesas perfeitas de Juliano, nem seus exímios contra-ataques. O que prende os olhos de todos, num crescendo de frisson nervoso, é a resistência sobre-humana de Flecha Negra. O adversário da vez é derrubado com uma cabeçada que atordoa até o emissor. O público exclama quase em uníssono: Aaai! – e o suspense se forma em torna da possibilidade de Juliano tombar. Os Nagoas e os Guaiamus confabulam entre si e decidem parar a candidatura por julgar uma desonra obter uma vitória sobre alguém, no limite de uma resistência colossal.
Como um touro resfolegante, lustroso de suor, olhar congestionado, Juliano fita a plateia – e a imagem sonorizada por um zumbido oscila diante dele, como se a Maison Moderne fosse um navio em mar revolto. Em respiração suspensa, coração batendo forte, as mulheres do casarão da sinhá Cota oram, os capoeiristas se imobilizam em inquietante concentração, enquanto os expectadores das últimas mesas erguem-se para não perder o desfecho e ali ficam como estátuas. O silêncio se faz por alguns segundos, até que o mestre de cerimônia conclama novos candidatos. Ninguém se apresenta.
-- Dou-lhe uma...
Rostos ansiosos se viram e nenhum esboço de candidatura é visto.
-- Dou-lhe duas...
Persiste a tensa recusa em subir no palco.
-- Dou-lhe três.
Nada. Nem um movimento acontece.
-- Luta encerrada com a vitória do invencível Flecha Negra.
A ovação explode. Urras são dadas e chapéus jogados ao ar. Dançarinas radiantes ocupam o palco no compasso alegre da música ritmada também pelos instrumentos dos escudeiros. O mestre de Cerimônia e Zé da Baiana erguem os braços de Juliano. Mimi enxuga a testa do invicto. Pietro regozija a esfuziante manifestação, as mulheres se abraçam e depois contemplam Flecha Negra, erguido por um grupo de Nagoa e de Guaiamu. A emoção delas é tanta que nem conseguem acompanhar direito o coro que canta brava gente brasileira longe vá temor servil, em uma babel de sotaques e num ritmo nunca antes visto na terra Brasilis. O estrepitoso civismo ainda fervilha, quando Raposo deixa o espaço – e a glória prossegue noite adentro no coração de muitos cidadãos.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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