quarta-feira, 29 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Oito

O SARAU


Herculano chega do trabalho e encontra um envelope sobre a escrivaninha do seu gabinete. Surpreende-se com os remetentes: Senhor e Sra. Theodoro de Alcântara Avelar. Associa Dr. Eugênio à fonte de informação do seu endereço e se inteira do conteúdo da correspondência: é convidado para o sarau no solar. O que esse sujeito quer? Não tenho nada que fazer lá, pensa e põe o convite de lado na mesa. Ao cabo de algumas horas, a conveniência de conhecer o território do inimigo político e seus aliados o faz mudar de ideia.  Comparece ao evento.
Em meio aos convidados militares, é o único capitão. Os demais possuem patente de nível superior. Neste momento de programação musical finda e de baile no salão da residência, conversa em uma das rodas distribuídas no espaçoso terraço.  Está diante do ministro da Guerra, marechal Argolo, e ladeado pelo comandante da Escola da Praia Vermelha, general Costallat, e pelo chefe do Estado-maior do Exército, marechal Bibiano. Reconhece Valentin, que passa em direção à casa de hóspedes, e volta a sua atenção para a conversa. O tema versa sobre a recente guerra decretada pelo Japão à Rússia, em território chinês. Bibiano considera desfavorável a situação dos russos.
-- Estão isolados do seu poder bélico e com o Japão a vigiá-los pelo mar.
Theodoro se aproxima.
-- Ouvi bem: Japão?
A roda se abre para o anfitrião e Argolo responde.
-- Sim, comentávamos sobre o ataque aos russos, em Port Arthur.
-- Acha que a China apoiará o colosso moscovita?
-- Se vencer a resistência local, sim. Li que a população não gostou do governo ter cedido Port Arthur para os russos. 
-- Seria o melhor dos mundos se a compreensão dos interesses de uma nação pudesse estar ao alcance de todas as inteligências do seu país.
Herculano identifica no comentário de Theodoro uma crítica velada aos opositores do modelo da reurbanização em curso na cidade. Nada diz. Por questões de hierarquia, não lhe cabe expressar opinião, a menos se solicitado. Argolo tem a mesma impressão do subordinado com relação à intenção da fala do anfitrião. Alinha a análise da guerra com o foco das suas preocupações: o baixo investimento no Exército nacional.
-- Apesar de ser três vezes maior do que o dos japoneses, o poder bélico dos russos está a léguas de distância e disperso pelo império. Uma situação nada favorável.
-- Agravada pelo poder de recrutamento dos japoneses. Tem à disposição um número expressivo de homens bem treinados e equipados, diz Bibiano, como um ator que dá a sua fala na deixa certa.
Costallat percebe as intenções dos colegas e também entra em cena.
-- Uma inspiração para o Exército nacional.
-- Gigantesca – exclama Theodoro
-- E necessária, enfatiza Argolo. – Enquanto qualquer republiqueta das Américas pode pôr para operar de seis a oito mil homens, no caso de ser surpreendida por um ataque, a nossa augusta República teria dificuldade para reunir tropa semelhante com treinamento e equipamentos à altura.  
Encalacrou-se, pensa Herculano com relação ao anfitrião.
-- Estou ciente e testemunho os esforços do presidente para garantir melhorias ao nosso Exército, de maneira compatível com os recursos do Tesouro, é claro.
-- Compatibilidade que não deixa de ser preocupante em tempo de tensão no Acre.
-- Ainda bem que temos um Rio Branco para distender esse impasse.
-- Porém, como o próprio ministro costuma dizer, nenhum país pode ser pacífico sem ser forte, lembra Costallat em socorro a Argolo.
-- Fora que conflitos são ocorrências certas em qualquer sociedade. Ingenuidade descuidar do preparo militar em época de paz, arremata Bibiano.
-- Grande verdade! Até porque, nos tempos mais calmos, os adversários aguçam nossas percepções e nos mantêm treinados para o combate.
Esse sujeito está mandando recado, cogita Herculano consigo mesmo.
Theodoro percebe os reforços mútuos dos militares e decide não só tirar o Brasil do foco da conversa, como conhecer a verve de Herculano diante dos superiores.
-- Aposta na vitória do império do sol nascente, Capitão?
-- Além das vantagens citadas, o Japão ainda pode realizar reparos em seus navios em solo próprio. Talvez Port Arthur não ofereça essa possibilidade aos russos.
Resposta técnica e neutra em tom disciplinado, avalia Theodoro e endossa a opinião. – É. Terão um problema sem condição de reparos.
As esposas dos superiores chegam e Herculano se afasta com a desculpa de apreciar a exposição montada no terraço. Um rápido comentário sobre ele é feito por Costallat.
– Grata surpresa encontrar o Capitão.
-- Estudamos na mesma época no Pedro II.
-- Não sabia.
-- Bons tempos!
Mais algumas palavras trocadas, Theodoro também pede licença. Mal deixa a roda, Emiliano Nogueira o detém pelo braço e o faz caminhar em direção ao jardim. Conhecido como o barão dos quiosques, Emiliano é sócio do comendador no projeto imobiliário que pretender realizar se conseguirem comprar o casarão de Sinhá Cota. O sócio não foi convidado para o sarau e o delegou a missão que procura cumprir.
-- Esperava encontrar Ferdinando aqui.
-- E eu contava que viesse. Quem sabe uma visita o tenha impedido?
-- Pode ser. Sabe que estou com ele no projeto imobiliário da Rua São Jorge?
-- Que beleza!
-- Queremos você junto. Prédios residências e ascensores de passageiros são o futuro. E as perspectivas de lucros são fantásticas.
-- Imagino. Mas será que nossa praça vê com bons olhos esse futuro?
-- Razão porque a construção na São Jorge se faz necessária. Mostrará aos de bem que apartamentos não são cortiço.
Sem interesse no negócio, Theodoro tenta se desvencilhar de Emiliano, mas não consegue. Já Herculano percorre a exposição. Painéis exibem os retratos de populares e mapas que informam as melhorias urbanas planejadas para a cidade. Linhas vermelhas tracejadas sinalizam as obras a cargo do Governo Federal, como a reforma da Avenida Central e a do porto cujas instalações serão modernizadas e costeadas por uma longa avenida. Linhas sólidas, da mesma cor, indicam as obras sob a responsabilidade da prefeitura. A maioria ligará o centro à região sul da cidade, como a do alargamento da Beira-mar, da abertura do túnel entre Botafogo e o areal do Leme e da construção de uma avenida na orla do arraial de Copacabana. Outros painéis exibem croquis de espaços arborizados, asfaltados e servidos por iluminação elétrica; em conjunto, o exposto dá a visão geral da modernização prevista para a Capital Federal.
 Digna de aplausos, se não fosse uma reforma imoral, pensa Herculano à luz do valor pago aos imóveis desapropriados e da população pobre que será despejada e deixada à própria sorte. Nesse particular, crê que os retratados ali expostos cumprem a função de mostrar que o povo será beneficiado pelas reformas. Quem eles pensam que enganam? Ganharão os de sempre, num jogo de cartas marcadas, acha, o que lhe confirma a lei da selva recriada por um Estado fraco: tudo o que pode ser usurpado pelo mais forte o seráMas isso está com os dias contados, admite para si. 
Theodoro se posta ao lado dele.
-- Qual a impressão?
-- Uma exposição esclarecedora.
-- Folgo em saber. Desejei que ilustrasse o progresso que nos espera.
-- As imagens dão uma ideia clara do que está por vir.
-- Confiante com as perspectivas?
-- Sim, delas depende o nosso porvir. Bom, aproveito a ocasião, para me despedir.
-- Tão cedo?
-- Infelizmente. Por favor, transmita as minhas despedidas a D. Catarina.
-- Transmitirei. Porém, precisamos nos encontrar mais vezes. Estou certo de que possuímos mais afinidades além das relacionadas com as táticas militares.
-- Será uma satisfação identificar apreços comuns.
-- Na guerra ou na paz, aliados fazem a diferença.
-- A história oferece diversos exemplos.
-- E um fabuloso conhecimento para nos guiar no presente.
-- Concordo. Mais uma vez, obrigado pelo convite.
-- Foi uma honra.
Theodoro o acompanha até o pórtico, incerto se caminha ao lado de uma pessoa somente reservada ou se as opiniões vagas em ar quase de esfinge revelam um oposicionista. Não, Caso contrário, não estaria aqui, conclui. Despedem-se e um criado leva o militar até o portão.
Cocheiros uniformizados acendem as lanternas das carruagens estacionadas na rua. O cenário destoa da fuzarca protagonizada mais adiante por condutores de tílburis de aluguel, atraídos para o local pela movimentação do sarau. Em amarfanhados trajes, divertem-se com casos contados por um e por outro, ao lado de carros mal conservados e com cavalos nada escovados. A presença do militar os alvoroça.
-- Aqui, doutor.
-- Faço preço melhor, excelência.
As ofertas silenciam-se ante a negativa de Herculano, que prefere andar enquanto ordena suas ideias sobre o que viu e ouviu no sarau. Desconfia que Theodoro esteja receoso da reforma urbana vir a despertar a oposição dos florianistas e da mocidade militar, aquietada há alguns anos. Por isso me convidou para o sarau e propôs outro encontro. Quer me tornar seu agente de informação. Quanta pretensão! Pensa nas farpas trocadas entre os superiores e o anfitrião. Hoje insatisfação, amanhã cisão, como no final da monarquia. Preciso facilitar um encontro com Agostinho. Saber o que ele está fazendo.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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