terça-feira, 7 de abril de 2015

Capítulo Trinta e Três

DO SENADO À PRAÇA DA REPÚBLICA


Herculano chega ao Senado e se dirige a uma das galerias do segundo andar. O recinto lembra um camarote e já está ocupado por alguns civis e pelo Capitão Brito, ex-colega da Escola Militar da Praia Vermelha e atualmente professor da Escola Preparatória e de Tática de Realengo. Herculano troca continência de modo formal com Brito e se abeira do balcão. Como raio, sua visão incide sobre Theodoro que conversa com Duarte, rente à balaustrada que divide o espaço da galeria e o das bancadas dos senadores. Herculano se afasta do balcão e aguarda sentado o início da sessão.
Aberto os trabalhos, a crítica à velocidade com que a Casa tem aprovado projetos de lei de interesse do Governo é seguida pelo questionamento de se criar a Justiça Sanitária.  Argumentos embasados na Carta Magna se sucedem e rebatem a ideia de que administrar a higiene urbana necessita de órgão especial. A conclusão se expressa.
-- A organização desse Juízo não cabe dentro da nossa Constituição. É um órgão dispensável e a sua aprovação uma excrecência, uma violência aos princípios de uma Justiça para todos os cidadãos e para todas as causas.
Aplausos são dados às galerias e a percepção da dificuldade para aprovar a Lei entrecruza-se dos olhares da base aliada às bancadas. O senador Duarte toma a palavra.
-- Há anos testemunhamos os esforços dos diversos diretores de Saúde Pública para combater as epidemias que abatem a nossa gente e país. E todos, sem exceção, foram vencidos pela anarquia com que são tratadas as medidas destinadas a exterminar as causas das doenças. É essa indisciplina que torna especial a matéria e impõe a criação de uma Justiça específica. Só assim as autoridades poderão sanear a Capital Federal. 
Vaias vibram nas galerias. Theodoro não demonstra tensão e, no andar de cima, Herculano se abstém de comentários com o grupo ao redor.
Lauro Sodré, de 45 anos, militar de formação, político de profissão e ex-governador do Pará, ocupa a tribuna. Refuta o ponto de vista de Duarte e aprofunda a critica aos projetos votados em caráter de urgência sem a análise devida.
-- Como autorizar o Governo a expedir uma série de regulamentos que nenhum de nós é capaz de dizer até onde as atribuições conferidas ao Poder Executivo podem levá-lo; até aonde o arbítrio desse poder, que não possui função de legislar, pode ir, no exercício de uma atribuição que não é sua e sim do Congresso Federal. Senhores, se nós andássemos a catar modos de recomendar mal a República aos olhos da opinião pública, de granjear para Ela as mais sérias e profundas antipatias, o que é um perigo nessa face inicial de regime, se andássemos a buscar meios para impopularizar a forma republicana, que mal está criando raízes no fundo da consciência nacional, eu não sei de meio mais fecundo que esse projeto sanitário.
Da bancada, Glicério interrompe Sodré.
-- Em São Paulo, há uma lei semelhante e a República não é odiada.
-- Desconheço tal fato e estou certo de que lá uma lei como essa não entraria para apreciação sem veementes protestos e nem passaria sem uma explosão de revolta.
-- Nem se exige plenos poderes para ser prefeito, nem nega aos parlamentares o direito de estudar as questões como aqui, acrescenta outro oposicionista.
-- Nossa Casa não nega nada. Haja vista o atual debate. 
-- Se não nega, Vossa Excelência concorda com o adiamento da votação?
-- Não, não concordo, porque defendo o início imediato do saneamento da Capital depois de tanto já termos discutido os diversos pontos desse projeto.
-- É um escárnio chamar isso de discussão.
-- Porque não há o que debater. Os trabalhos da Diretoria de Saúde Pública não podem ser constrangidos pelo receio parlamentar de se estranhar ao espírito do eleitor que resiste a adotar posturas higiênicas e de conservação predial.
-- Não é esse o caso e sim defender nosso papel de bem aconselhar o governo no estrito dos valores republicanos.
-- Sem dar forças ditatoriais aos homens do governo, grita outro senador.
-- Lastimo que pense assim, nobre colega, pois investimos o Prefeito do poder que pôs em dia o pagamento dos servidores, recuperou o crédito municipal e imprimiu eficiência aos serviços que há meses beneficia nossa gente granjeia louvores públicos.
Aplausos se misturam aos brados de morra a lei. O senador Sodré fala de novo.
– Não podemos abdicar de nosso papel de legislar nem nos cabe arbitrar sobre o modo de viver e morar da população, e muito menos decretar a demolição de imóveis combalidos. Isso é um atentado ao livre-arbítrio e ao direito da propriedade privada.
-- Vossa excelência me comove, mas não aos ratos e mosquitos. Anárquicos, desrespeitam direitos, democráticos, espalham a doença sem olhar a quem.
Risadas soam, ânimos se acirram e a vacina contra varíola é posta em discussão. Duarte propõe retirá-la da pauta do dia e iniciar a votação dos projetos debatidos. Moção aceita, a votação se inicia, em votos abertos. A cada sim ouvido fortalece a confiança de Theodoro no resultado aspirado.  
Herculano deixa a galeria após ocorrer o voto que decide a aprovação da Justiça Sanitária. O secretário de governo também não espera o final da sessão e sai. Durante o trajeto, com um aceno de cabeça, cumprimenta Silva Castro, o chefe de Polícia, postado no fundo do ambiente, que atribui a saída à intenção em dar logo a notícia ao presidente. Decide se certificar da direção dos seus passos.
Theodoro adentra o vestíbulo e avista Herculano descer a escada. Deduz de onde o conhece e se sente instigado a comprovar sua dedução. Silva Castro para, atrás de uma coluna, e o militar lastima consigo mesmo o encontro que quis evitar.  A saudação soa.
-- Que satisfação reencontrá-lo Capitão...
-- Dias. Herculano Dias. Como vai o senhor?
-- Bem e pelo que vejo é da Casa do Povo que nos conhecemos.
-- Ao que parece.
-- Satisfeito com o resultado?
-- Auspicioso. Infelizmente tenho de pedir licença. Estou em cima da hora para um compromisso.
-- À vontade, Capitão.
-- Até mais ver!
Theodoro acompanha com os olhos o deslocamento do militar e Silva Castro se aproxima a mirar a mesma direção.
-- Herculano Dias.
-- Vosso conhecido?
-- Do dever da vigilância. Sem o sólido alicerce da identificação, impossível defender em tempo hábil a República.
-- Folgo em saber.
-- Permita-me uma indiscrição?
-- À vontade.
-- Ouvi vosso comentário de ser daqui que conhece o Capitão Dias. Porém, vossa excelência, não estudou no Pedro II?
-- Sim.
-- O Capitão também e na mesma época que o senhor.
Lembranças surgem à mente de Theodoro e, entre os rostos recordados à sala, ao pátio, ao corredor do Colégio, em nenhum identifica traços do jovem Herculano. Ouve então Silva Castro dizer que o militar era o bolsista, filho da cozinheira. Lembranças são interrompidas pela passagem de Brito e pela abertura das portas do plenário. Receoso de que conhecidos o segurem, Theodoro despede-se do chefe de polícia. Na rua, entra no coche estacionado, com BV a espera. Incumbe o empregado de investigar Herculano.
-- Quero dossiê completo: das virtudes aos vícios.
-- Obtenho como de costume os recursos?
-- A partir de amanhã, já estarão autorizados. Fique por conta disso.
-- Entendido.
O empregado desce e faz sinal para Abdias partir.  Dali a instante, o carro já roda pela rua que margeia a Praça da República. O espaço primeiro se chamou Campo de São Domingos, depois de Santana e, em seguida, da Aclamação, onde Pedro I foi aclamado imperador do Brasil. Após a deposição da monarquia, autoridades acharam melhor mudar o nome para o atual a fim de evitar lembranças do regime decaído. Nesse ambiente secular, em meio a um dos arvoredos, Brito conversa com Herculano.
-- Esteja certo de que aqueles calhordas darão ao Governo as leis que quer para reformar a cidade a seu bel-prazer e a gente que se lixe.
-- A indiferença é a corda da forca. Alves cairá.
-- Sinto dizer, mas não há ninguém para abrir o alçapão.
-- Surgiu para proclamar a República, surgirá para a sua restauração.
– Não sonhe alto. Desde Canudos, brios e patriotismos não nos unem mais. A causa da farda agora é o pão nosso de cada dia e, quando preciso, a segurança nacional.
-- Está a desprestigiar a força dos ensinamentos.
-- Ou a entender os sinais. Mesmo que de quando vez haja um tumulto qualquer, é coisa da hora. Somos um povo comatoso, aguentamos tudo, talvez por descrença atávica. Coisa da raça.
-- Mate um homem, mas não invada seu lar nem toque na sua mulher, porque até o mais frouxo acatará a sua sentença de morte. É isso o que acontecerá com o governo tão logo os abusos dessa reforma ultrapassem o limite do suportável.
-- Gostaria de ter a sua certeza.
-- Expurgue as desilusões do peito e a terá. Logo mais as críticas ao governo serão substituídas pelas consultas de como detê-lo. Aí entramos em ação.
-- Se houver bases firmes e consistentes. Do contrário, melhor ver a caravana passar.
-- Claro, diz Herculano para tranquilizar Brito de que não anda a sonhar alto.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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