DO SENADO À PRAÇA DA REPÚBLICA
Herculano
chega ao Senado e se dirige a uma das galerias do segundo andar. O recinto
lembra um camarote e já está ocupado por alguns civis e pelo Capitão Brito,
ex-colega da Escola Militar da Praia Vermelha e atualmente professor da Escola Preparatória e de Tática de Realengo.
Herculano troca continência de modo formal com Brito e se abeira do balcão.
Como raio, sua visão incide sobre Theodoro que conversa com Duarte, rente à
balaustrada que divide o espaço da galeria e o das bancadas dos senadores.
Herculano se afasta do balcão e aguarda sentado o início da sessão.
Aberto
os trabalhos, a crítica à velocidade com que a Casa tem aprovado projetos de
lei de interesse do Governo é seguida pelo questionamento de se criar a Justiça
Sanitária. Argumentos embasados na Carta
Magna se sucedem e rebatem a ideia de que administrar a higiene urbana
necessita de órgão especial. A conclusão se expressa.
--
A organização desse Juízo não cabe dentro da nossa Constituição. É um órgão
dispensável e a sua aprovação uma excrecência, uma violência aos princípios de
uma Justiça para todos os cidadãos e para todas as causas.
Aplausos
são dados às galerias e a percepção da dificuldade para aprovar a Lei
entrecruza-se dos olhares da base aliada às bancadas. O senador Duarte toma a
palavra.
--
Há anos testemunhamos os esforços dos diversos diretores de Saúde Pública para
combater as epidemias que abatem a nossa gente e país. E todos, sem exceção,
foram vencidos pela anarquia com que são tratadas as medidas destinadas a
exterminar as causas das doenças. É essa indisciplina que torna especial a
matéria e impõe a criação de uma Justiça específica. Só assim as autoridades
poderão sanear a Capital Federal.
Vaias
vibram nas galerias. Theodoro não demonstra tensão e, no andar de cima,
Herculano se abstém de comentários com o grupo ao redor.
Lauro
Sodré, de 45 anos, militar de formação, político de profissão e ex-governador
do Pará, ocupa a tribuna. Refuta o ponto de vista de Duarte e aprofunda a
critica aos projetos votados em caráter de urgência sem a análise devida.
--
Como autorizar o Governo a expedir uma série de regulamentos que nenhum de nós
é capaz de dizer até onde as atribuições conferidas ao Poder Executivo podem
levá-lo; até aonde o arbítrio desse poder, que não possui função de legislar,
pode ir, no exercício de uma atribuição que não é sua e sim do Congresso
Federal. Senhores, se nós andássemos a catar modos de recomendar mal a
República aos olhos da opinião pública, de granjear para Ela as mais sérias e
profundas antipatias, o que é um perigo nessa face inicial de regime, se
andássemos a buscar meios para impopularizar a forma republicana, que mal está
criando raízes no fundo da consciência nacional, eu não sei de meio mais
fecundo que esse projeto sanitário.
Da
bancada, Glicério interrompe Sodré.
--
Em São Paulo, há uma lei semelhante e a República não é odiada.
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Desconheço tal fato e estou certo de que lá uma lei como essa não entraria para
apreciação sem veementes protestos e nem passaria sem uma explosão de revolta.
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Nem se exige plenos poderes para ser prefeito, nem nega aos parlamentares o
direito de estudar as questões como aqui, acrescenta outro oposicionista.
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Nossa Casa não nega nada. Haja vista o atual debate.
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Se não nega, Vossa Excelência concorda com o adiamento da votação?
--
Não, não concordo, porque defendo o início imediato do saneamento da Capital
depois de tanto já termos discutido os diversos pontos desse projeto.
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É um escárnio chamar isso de discussão.
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Porque não há o que debater. Os trabalhos da Diretoria de Saúde Pública não
podem ser constrangidos pelo receio parlamentar de se estranhar ao espírito do
eleitor que resiste a adotar posturas higiênicas e de conservação predial.
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Não é esse o caso e sim defender nosso papel de bem aconselhar o governo no
estrito dos valores republicanos.
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Sem dar forças ditatoriais aos homens do governo, grita outro senador.
--
Lastimo que pense assim, nobre colega, pois investimos o Prefeito do poder que
pôs em dia o pagamento dos servidores, recuperou o crédito municipal e imprimiu
eficiência aos serviços que há meses beneficia nossa gente granjeia louvores
públicos.
Aplausos
se misturam aos brados de morra a lei. O senador Sodré fala de novo.
–
Não podemos abdicar de nosso papel de legislar nem nos cabe arbitrar sobre o
modo de viver e morar da população, e muito menos decretar a demolição de
imóveis combalidos. Isso é um atentado ao livre-arbítrio e ao direito da
propriedade privada.
--
Vossa excelência me comove, mas não aos ratos e mosquitos. Anárquicos,
desrespeitam direitos, democráticos, espalham a doença sem olhar a quem.
Risadas
soam, ânimos se acirram e a vacina contra varíola é posta em discussão. Duarte
propõe retirá-la da pauta do dia e iniciar a votação dos projetos debatidos.
Moção aceita, a votação se inicia, em votos abertos. A cada sim ouvido
fortalece a confiança de Theodoro no resultado aspirado.
Herculano
deixa a galeria após ocorrer o voto que decide a aprovação da Justiça Sanitária.
O secretário de governo também não espera o final da sessão e sai. Durante o
trajeto, com um aceno de cabeça, cumprimenta Silva Castro, o chefe de Polícia, postado
no fundo do ambiente, que atribui a saída à intenção em dar logo a notícia ao presidente.
Decide se certificar da direção dos seus passos.
Theodoro
adentra o vestíbulo e avista Herculano descer a escada. Deduz de onde o conhece
e se sente instigado a comprovar sua dedução. Silva Castro para, atrás de uma
coluna, e o militar lastima consigo mesmo o encontro que quis evitar. A saudação soa.
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Que satisfação reencontrá-lo Capitão...
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Dias. Herculano Dias. Como vai o senhor?
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Bem e pelo que vejo é da Casa do Povo que nos conhecemos.
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Ao que parece.
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Satisfeito com o resultado?
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Auspicioso. Infelizmente tenho de pedir licença. Estou em cima da hora para um
compromisso.
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À vontade, Capitão.
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Até mais ver!
Theodoro acompanha com os olhos o deslocamento do militar e Silva Castro se aproxima a mirar a mesma direção.
--
Herculano Dias.
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Vosso conhecido?
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Do dever da vigilância. Sem o sólido alicerce da identificação, impossível
defender em tempo hábil a República.
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Folgo em saber.
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Permita-me uma indiscrição?
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À vontade.
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Ouvi vosso comentário de ser daqui que conhece o Capitão Dias. Porém, vossa
excelência, não estudou no Pedro II?
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Sim.
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O Capitão também e na mesma época que o senhor.
Lembranças
surgem à mente de Theodoro e, entre os rostos recordados à sala, ao pátio, ao
corredor do Colégio, em nenhum identifica traços do jovem Herculano. Ouve então
Silva Castro dizer que o militar era o bolsista, filho da cozinheira. Lembranças
são interrompidas pela passagem de Brito e pela abertura das portas do
plenário. Receoso de que conhecidos o segurem, Theodoro despede-se do chefe de
polícia. Na rua, entra no coche estacionado, com BV a espera. Incumbe o
empregado de investigar Herculano.
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Quero dossiê completo: das virtudes aos vícios.
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Obtenho como de costume os recursos?
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A partir de amanhã, já estarão autorizados. Fique por conta disso.
--
Entendido.
O
empregado desce e faz sinal para Abdias partir. Dali a instante, o carro já roda pela rua que
margeia a Praça da República. O espaço primeiro se chamou Campo de São
Domingos, depois de Santana e, em seguida, da Aclamação, onde Pedro I foi
aclamado imperador do Brasil. Após a deposição da monarquia, autoridades acharam melhor mudar o nome para o atual a fim de evitar lembranças do regime
decaído. Nesse ambiente secular, em meio a um dos arvoredos, Brito conversa com
Herculano.
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Esteja certo de que aqueles calhordas darão ao Governo as leis que quer para
reformar a cidade a seu bel-prazer e a gente que se lixe.
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A indiferença é a corda da forca. Alves cairá.
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Sinto dizer, mas não há ninguém para abrir o alçapão.
-- Surgiu para proclamar a República, surgirá para a sua restauração.
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Não sonhe alto. Desde Canudos, brios e patriotismos não nos unem mais. A causa da farda agora é o
pão nosso de cada dia e, quando preciso, a segurança
nacional.
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Está a desprestigiar a força dos ensinamentos.
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Ou a entender os sinais. Mesmo que de quando vez haja um tumulto qualquer, é coisa da hora. Somos um povo comatoso, aguentamos tudo, talvez por descrença atávica. Coisa da raça.
-- Mate um homem, mas não invada seu lar nem toque na sua mulher,
porque até o mais frouxo acatará a sua sentença de morte. É isso o que acontecerá com o governo tão logo os abusos dessa reforma ultrapassem o limite do suportável.
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Gostaria de ter a sua certeza.
--
Expurgue as desilusões do peito e a terá. Logo mais as críticas ao governo
serão substituídas pelas consultas de como detê-lo. Aí entramos em ação.
-- Se houver bases firmes e consistentes. Do contrário, melhor ver a caravana passar.
--
Claro, diz Herculano para tranquilizar Brito de que não anda a sonhar alto.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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