segunda-feira, 27 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Seis

CHORAI BARRACÕES


Um cuspe arrancado das profundezas estruge, rompe a atmosfera e cai gordo sobre o documento estendido pela autoridade sanitária. Em meio ao suspense criado, o cuspidor, Manoel do Porto, corre a boca pela malha da camisa, na altura do ombro, flexiona os braços, como asas, e apoia as mãos fechadas na cintura. Agiganta-se.  
-- Quero ver que gajo me fará assinar esse maldito papel.
Imperturbável, a autoridade deita a maculada notificação sobre o balcão e o fiscal Raposo se apressa a convencer o comerciante a fazer o esperado.
-- Oh, Seu Manoel, bota o jamegão de uma vez no documento.
-- Só assino e saio daqui quando receber o devido. Antes disso, não.
-- É a sua palavra final?
-- Pelo inferno de Dante, estejas certo de que é.
-- Ó homem de Deus, não faça isso, será despejado na marra.
-- Cairás do cavalo. Aguarde e verás.
A esposa de Manoel desaba em prantos e é consolada pelos filhos.
-- Nem tudo tá perdido, mãe, diz o primogênito.
Mas para Joaquina está. Perdem o que os seus olhos afogados em lágrimas veem – o armazém – e o escondido pela parede: a estalagem. Não adianta tampar o sol com a peneira, nem o marido jurar por todos os santos que nenhum salafrário irá tirá-los dali sem antes pagar a indenização do trabalho de uma vida. É lei. É fado, há de cumprir-se.
Manoel intui as considerações silenciosas da mulher. Sente uma pontada no peito, agarra a medalha do seu santo protetor e sai atrás do grupo sanitário. Pela rua afora, solidariza-se com o infortúnio dos vizinhos e afirma que irão receber na justiça o valor real dos imóveis. Esperanças débeis e descrenças desencorajadoras coam-se nas feições turvadas dos ouvintes e o desânimo com a lentidão do advogado contratado escapole de uma boca incrédula.
-- Ora, pois, mudamos o doutor, rebate o comerciante.
O incrédulo encolhe os ombros e interrogações mudas sobre a validade da troca franzem os cenhos ao redor. A reação incita os temores mais secretos de Manoel de estar a vender ilusões até a si mesmo. Lança seu olhar perturbado sobre o Largo da Carioca.
O prédio da Ordem Terceira de São Francisco de Xavier, do Chope dos Mortos, do café Fidelis e da Cia de Bondes serão demolidos. Desaparecerão também a funerária-floricultura Celestial, a lotérica Idealista e a venda Ambos os Mundos. Desse lado avistado, só se salvaram a confeitaria Rocha e Menères, a casa de roupas Os Tamoios e a loja de materiais de construção Os Materialistas. Terão apenas de realizar melhorias. O destino da Marcenaria Atlas ainda está incerto e o depósito Despertar não poderá mais abrigar tantas aves. Tudo em nome da higiene pública e da modernidade. É preciso adequar traçados urbanos, costumes e posturas às exigências dos novos tempos.
Próximo dali, na Rua do Ouvidor, Bilac escreve sua crônica semanal.
“Chorai, barracões de todos os estilos, de todos os feitios, de todas as cores. Chegou a vossa hora! Um prefeito que não gosta de monstros jurou guerra implacável e feroz à vossa raça maldita; preparai-vos todos para cair, fortalezas de mau gosto, baluartes de fealdade, templos de hediondez. A avenida... Parece-me que a vejo acabada, ampla e formosa, com as suas árvores, os seus palácios, as suas lâmpadas elétricas, os seus refúgios, e cheia de uma multidão contente e limpa. Ainda não é realidade. Mas já não é sonho”.
Na manhã seguinte, à mesa do café, Valentin estende um jornal para Theodoro.
-- Veja o que Bilac escreveu.
-- Já li. Excedeu-se.
-- Em desrespeito à dor alheia e em ignorância. Só por osmose a cidade reformada será palco de uma multidão contente e limpa.
-- Poupe-o. É alma boa, apenas foi infeliz na expressão dos seus anseios.
-- Quanta complacência.
-- Que seja! Já você tem o sarau para ajustar o estro poético dele.
-- É, responde Valentin, incerto se valerá a pena.
Volta a ler o jornal. Theodoro, não. Continua a olhá-lo por constatar a semelhança de Valentin com a irmã dele, casada com Hélio Augusto. Poderiam ser gêmeos. Pensa na força genética de suas famílias, na beleza dos sobrinhos comuns, e sente a pressão da paternidade não realizada. Ignora-a. Encarar os fatos da vida e prover soluções possíveis é o seu lema. Retoma também a leitura.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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