CHORAI BARRACÕES
Um cuspe
arrancado das profundezas estruge, rompe a atmosfera e cai gordo sobre o
documento estendido pela autoridade sanitária. Em meio ao suspense criado, o cuspidor,
Manoel do Porto, corre a boca pela malha da camisa, na altura do ombro, flexiona
os braços, como asas, e apoia as mãos fechadas na cintura. Agiganta-se.
-- Quero ver que gajo
me fará assinar esse maldito papel.
Imperturbável, a
autoridade deita a maculada notificação sobre o balcão e o fiscal
Raposo se apressa a convencer o comerciante a fazer o esperado.
-- Oh, Seu
Manoel, bota o jamegão de uma vez no documento.
-- Só assino e
saio daqui quando receber o devido. Antes disso, não.
-- É a sua
palavra final?
-- Pelo inferno
de Dante, estejas certo de que é.
-- Ó homem de
Deus, não faça isso, será despejado na marra.
-- Cairás do cavalo.
Aguarde e verás.
A esposa de Manoel desaba em prantos e é consolada pelos filhos.
-- Nem tudo tá
perdido, mãe, diz o primogênito.
Mas para Joaquina está. Perdem o que os seus olhos afogados em lágrimas veem – o armazém – e o escondido
pela parede: a estalagem. Não adianta tampar o sol com a peneira, nem o marido jurar por todos os santos que nenhum salafrário irá tirá-los dali
sem antes pagar a indenização do trabalho de uma vida. É lei. É fado, há de cumprir-se.
Manoel intui as
considerações silenciosas da mulher. Sente uma pontada no peito, agarra a
medalha do seu santo protetor e sai atrás do grupo sanitário. Pela rua afora,
solidariza-se com o infortúnio dos vizinhos e afirma que irão receber na
justiça o valor real dos imóveis. Esperanças débeis e descrenças desencorajadoras
coam-se nas feições turvadas dos ouvintes e o desânimo
com a lentidão do advogado contratado escapole de uma boca incrédula.
-- Ora, pois,
mudamos o doutor, rebate o comerciante.
O incrédulo
encolhe os ombros e interrogações mudas sobre a validade da troca franzem os
cenhos ao redor. A reação incita os temores mais secretos de Manoel de estar a
vender ilusões até a si mesmo. Lança seu olhar perturbado sobre o Largo da
Carioca.
O prédio da Ordem Terceira de São Francisco de Xavier, do
Chope dos Mortos, do café Fidelis e da Cia de Bondes serão demolidos. Desaparecerão também a
funerária-floricultura Celestial, a
lotérica Idealista e a venda Ambos os Mundos. Desse lado avistado, só
se salvaram a confeitaria Rocha e Menères,
a casa de roupas Os Tamoios e a loja
de materiais de construção Os Materialistas. Terão apenas de
realizar melhorias. O destino da Marcenaria Atlas ainda está incerto e o
depósito Despertar não poderá mais
abrigar tantas aves. Tudo em nome da higiene pública e da modernidade. É
preciso adequar traçados urbanos, costumes e posturas às exigências dos novos
tempos.
Próximo dali, na Rua do Ouvidor, Bilac escreve sua crônica semanal.
“Chorai, barracões de todos os estilos, de
todos os feitios, de todas as cores. Chegou a vossa hora! Um prefeito que não
gosta de monstros jurou guerra implacável e feroz à vossa raça maldita;
preparai-vos todos para cair, fortalezas de mau gosto, baluartes de fealdade,
templos de hediondez. A avenida... Parece-me que a vejo acabada, ampla e
formosa, com as suas árvores, os seus palácios, as suas lâmpadas elétricas, os
seus refúgios, e cheia de uma multidão contente e limpa. Ainda não é realidade.
Mas já não é sonho”.
Na manhã
seguinte, à mesa do café, Valentin estende um jornal para Theodoro.
-- Veja o que Bilac escreveu.
-- Já li. Excedeu-se.
-- Em desrespeito
à dor alheia e em ignorância. Só por osmose a cidade reformada será palco de
uma multidão contente e limpa.
-- Poupe-o. É
alma boa, apenas foi infeliz na expressão dos seus anseios.
-- Quanta complacência.
-- Que seja! Já
você tem o sarau para ajustar o estro poético dele.
-- É, responde
Valentin, incerto se valerá a pena.
Volta a ler o
jornal. Theodoro, não. Continua a olhá-lo por constatar a semelhança de Valentin com a irmã dele, casada com Hélio Augusto. Poderiam ser gêmeos. Pensa na força genética de suas famílias, na beleza dos sobrinhos comuns, e sente a pressão da paternidade não realizada. Ignora-a. Encarar
os fatos da vida e prover soluções possíveis é o seu lema. Retoma também a leitura.
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