DA VISTORIA SANITÁRIA
Acompanhado da
autoridade sanitária, Barroso ultrapassa o portão do Maison Moderne, com o rosto encerado de suor e satisfação. No
entanto, amarga a frustração quando papéis se cruzam: de um lado, estende-se o
ultimato de desocupação imobiliária, do outro, o habeas corpus que assegura o
funcionamento da casa de diversões até o final do ano. Minutos depois,
descarrega a raiva na vistoria do espaço. Nada lhe passa despercebido. Comunica
todas as desconformidades à autoridade sanitária, com uma insistência de criança
quando quer algo da mãe. Em parte é bem sucedido e tem o prazer de anotar o que
se converterá em multa para Pietro.
Antes do
entardecer, o grupo chega à casa de Sinhá Cota. A tensão vibra à porta aberta
por Juliano, com Divina ao lado, e também na sala, ocupada por Sinha e pela mucama.
-- Os seus dias
estão contatos, diz Barroso para Flecha Negra.
A benzedeira faz
um sinal para o jovem não reagir, enquanto os olhos do delegado percorrem os
cordões, que adornam as imagens dos santos, depois pulam para a mesa, de onde
saltitam sobre os búzios na peneira e assim chegam ao baralho.
-- Os dias da
senhora também findam por misturar crendices com o sagrado.
A autoridade
sanitária impacienta-se com a intolerância do delegado. Observa o espaço sem
ver indícios de que a mulher propagandeia suas crendices para delas fazer
ganho. Tampouco constata falta de higiene. A mesa da saleta possui toalha alva,
as paredes não têm negrumes de lamparinas e os santos, os terços e os enfeites
estão limpos. Desejoso de encerrar a vistoria, bem como o expediente, intervém.
-- Vamos cuidar
do que nos cabe fazer?
Ânimos azedados,
o grupo prossegue a vistoria. Sinhá fica na sala, com Anunciata.
-- Isso é coisa de governo maldito, sem dignidade e majestade!
A velha mucama balança um sim com a cabeça.
Os aposentos
vistoriados mostram-se de acordo com o exigido pelo Código de Higiene. As
alcovas estão em ordem, inexiste divisão de madeira e nenhuma janela está desfalcada
de fresta. Os reservados, limpos, têm até aparelho sanitário. A licença da
quituteira está em dia e há zelo na cozinha: nem uma mosca voa no espaço e os
vasilhames se exibem ariados. Trata-se de um casario antigo, de pintura
esmaecida, madeirame picado ali, lá e acolá de caruncho, assoalho que range ao
andar, mas tudo em ordem, arejado. A autoridade sanitária chega até a porta do
quintal. Vê as roupas penduradas no varal e decide encerrar a vistoria. Barroso
o demove da decisão e toma à dianteira. Com o grupo atrás, desce até o quintal,
vê as galinhas, em seguida, o chiqueiro, com uma porca deitada em tetas sugadas
por uma rosada ninhada.
--Vendem os
bichos?
-- Alguns.
-- Terão de
acabar com isso.
Juliano se exalta.
-- A troco de quê?
-- Práticas
rurais com finalidades comerciais não serão mais aceitas nos quintais da cidade
daqui em diante, explica a autoridade.
Barroso indaga
sobre a finalidade das ervas plantadas.
-- Umas são pra tempero, outras pra chá, xarope e
unguentos, responde Divina.
-- Sei. Vende hortaliças?
-- Somos quituteiras.
-- Muito espaço vazio dando sopa, não acha?
-- Está fora da
área demarcada e há edificação, responde a autoridade sanitária.
-- O muro precisa
de reboco e o portão de uma mão de tinta.
-- Sim, senhor.
Sem nada mais a vistoriar,
as autoridades partem. Vozes se alternam na sala.
-- É caso de fazer um feitiço.
-- Vou falar com João Alabá. Isso não pode ficar assim.
-- Não ficará,
meu filho. Deus é mais forte.
-- Que mundo é
esse, Santíssima Trindade?
-- De
republicanos desalmados. Que o demo os carregue, pragueja Sinhá Cota.
Anunciata concorda com o seu habitual balançar de cabeça e Divina se afasta em direção ao oratório. Receia que as nuvens
vistas no baralho cigano já estejam sobre o casarão.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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