MEDITAÇÃO
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O senhor precisa de alguma coisa mais?
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Não, Belizária, pode ir.
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Até amanhã.
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Boa noite.
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Pro senhor também.
O
silêncio retorna à biblioteca do casarão e a leitura, à escrivaninha.
Respondo
a tua carta recém-chegado de uma viagem, com os meus dois pequenos me puxando para
eu ver algo importante. Ah, as urgências da inocência!
Nessa
minha vida de engenheiro errante, estou de novo de mudança. Monto em Guarujá a
minha próxima e provisória tenda, de onde viajarei para conhecidos pontos, na
miserável canseira de um Sísifo, a rolar o meu fardo por essas estradas… ou a
realizar a sombria tarefa siberiana de que nos fala Dostoievski – abrir todos
os dias a mesma vala para depois preenchê-la com a terra retirada. Assim vou,
no círculo vicioso de uma faina ingrata. Porém, tenho tido consolos.
A
eleição, em setembro último, para a Academia Brasileira de Letras, sem data
ainda de posse à cadeira do grande Castro Alves, continua a alegrar meu
espírito, nesses tempos de filhotismo absoluto, verdadeira idade de ouro dos
medíocres. Mas não tenho vaidades: mantenho-me na boa linha reta que meu pai me
ensinou desde pequeno. E nela hei de continuar.
Alenta-me
também o interesse dos leitores que querem conhecer as palavras deste advogado
dos sertanejos assassinados por essa ordem pulha e covarde que aí está.
Reconheci, na leitura da tua carta, a crença inabalável de ser possível
regenerar o sistema, por ser imortal a República. Mas, ante os politicões, cheguei à
conclusão desanimadora de que nossa política não passa de uma conspiração
contra o caráter nacional. E penso que nossa raça (?) está liquidada. Deu o que
podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante
e, por fim, o que vemos por toda parte ― a bandalheira sistematizada. Resta-me
o consolo de haver feito pelos admiráveis patrícios de Canudos a minha denúncia
e o recurso para apelar às gentes do futuro para quem especialmente escrevi Os
Sertões.
Livros e
escritos resumem a minha aspiração de uma vida tranquila. E para realizá-la
persisto na decisão de lecionar na Politécnica de São Paulo. Na Escola poderei
suprir a necessidade de trabalhar e de estar com as pessoas que me faltam nessa
convivência estúpida com os empreiteiros que me rodeiam. Não sei se sabes que
na Politécnica acabou o concurso para admissão de professores. Até os
substitutos só entram agora por indicação. Conto com a boa vontade dos amigos
lentes de lá, que incansáveis se esforçam para minha contratação e me
aconselham a dar um pouco mais de tempo ao tempo, para que tudo se arranje a
favor do aceite do meu nome. Assim, impacientemente, aguardo.
Minhas
passagens pelo Rio têm sido céleres de um noturno ao outro. Em todo caso, se
surgir uma possibilidade de demorar mais que um dia, te avisarei para podermos
nos encontrar. São raros os bons companheiros, nestes tempos maus, e bem sabes
que eu não dispenso os raríssimos que possuo.
Sobrescrevo,
no verso do envelope, o endereço de Guarujá, onde espero receber tuas próximas notícias, e peço-te que me recomende à Exma. Senhora e filha.
Abraço-te,
Euclides.
Em
mangas de camisa, Herculano parece mais jovem, mas não menos sóbrio. Braços
apoiados sobre os da escrivaninha, carta sobre a escura madeira do móvel,
recorda-se de um artigo que Euclides escreveu por época da fundação da Escola
paulista, em 1893, no qual criticou o modelo de ensino adotado. Orientado para
um estudo prático, o método suíço diferia do francês, implantado na Escola Militar
do Rio de Janeiro e na de Minas de Ouro Preto. Euclides defendia o francês, por
causa da sua ênfase na matemática e da didática que partia da dedução dos
princípios das ciências físicas e naturais para ensinar a aplicação dessas
acepções às indústrias. Com a justificativa de que cumpria o dever de combater
o erro cometido por uma escola pública, naquele artigo, Euclides classificou o
projeto de desastroso, incorreto na forma, carente de matérias e
filosoficamente deficiente para formar a mentalidade dos engenheiros e
desenvolver o pensamento científico no país. Como o artigo não suscitou
réplicas, em novo texto, declarou que ninguém ousaria arrostar as consequências
de negar os defeitos apontados por ele, nem mesmo o autor do projeto, que era o
reitor. A despeito de suas críticas, por duas vezes,
candidatou-se à posição de lente na Escola e, em ambas as ocasiões, teve seu
nome preterido.
Impossível
para Herculano não pensar que Euclides tornou-se um desafeto do reitor, que se
mantém no cargo invulnerável à dança das cadeiras de sucessivos governos.
Imagina que pese negativamente contra o colega não somente suas críticas
passadas, mas também sua índole combativa do improbo. E receia que uma vez mais
o despotismo do reitor consiga manter fechadas as portas da Escola paulista
para o engenheiro autor de Os Sertões.
Tão
pouco lhe é impossível ignorar a opinião de Euclides sobre a política ser uma
conspiração contra o caráter nacional. Escrevera-lhe para conhecer sua visão
acerca do momento atual do país e apreciou a resposta. Vislumbra, nas decepções
com os políticos, a perspectiva de que o colega se torne um aliado para
extirpar as condições daninhas que impedem o progresso para todos. Anota
um pensamento na própria carta para incluí-la na próxima correspondência: dê
um pouco mais de tempo ao tempo para ter também a resposta daquela pergunta que
me fez em Canudos. O presente engendra as condições para eu lhe dizer o que as
bandas do futuro nos reservam.
Encosta
a cabeça no espaldar da cadeira, numa posição que favorece a visão do quadro da
República. Pensa no encontro com Theodoro. Julga inapropriado falar sobre
teoria militar no meio da rua, ainda mais com estranhos, e desconfia de palavras apressadamente lisonjeiras e do sorriso fácil -- costumam esconder
dissimulações. Porém, à luz da cartilha pela qual analisa a conduta humana, as
duas ocorrências não se coadunam: um
ardiloso nunca se revela! Se a afabilidade de Theodoro tivesse se resumido
à declaração do seu apreço por leituras de guerra, tomaria a ocorrência como de
um sujeito maneiroso, inadequado ao cargo de secretário de governo,
em virtude do risco daquele apreço ser interpretado como a expressão de um
temperamento belicoso, nada indicado para a condução dos assuntos públicos. Mas
enfatizar esse apreço, numa ampliação da exposição de si, com o comentário de
que táticas militares também são úteis em tempos de paz, parece-lhe uma ação
deliberada: por quê? Teme insatisfações
com a reurbanização? Receia o comportamento dos militares e quer avisar que
está atento? Ou continua a se exibir, como um pavão?
Não
responde a própria pergunta, atraído pela beleza de República. Contempla a
expressão em sábia atenção, depois os lábios fechados na suavidade de um quase
sorriso. Seu olhar percorre a linha do pescoço, escorrega pelo
regaço dos seios cobertos pela túnica branca e, no ir-e-vir das vagas formadas
pela veste cinturada, oscila, quando então desliza o ventre até o incógnito
delta... Aí se detém sem rolar pelas roliças coxas encobertas pelo tecido
leitoso.
Vaga
o prazer despertado por essa incursão, desejoso de ser o homem da pátria, o
predestinado a defendê-la dos violadores de suas virtudes, aquele que a guiará
rumo ao progresso. Experimenta forte sensação em se imaginar abraçado àquele corpo, reconfortado no abrigo morno e macio do colo desejado. Inspira o
deleite e o prazer se esvai com a lembrança invasiva da dificuldade da esposa
para compreender que poderia ser como aquela musa, se ambas são parecidas e é
da natureza feminina confortar. Não com um acolhimento que aproveita da
brandura para querer conhecer seus mais íntimos pensamentos, nem com um
silêncio que se ressente do que pela própria ordem natural das coisas não pode
haver. Um marido deve possuir reservas para tomar decisões sem causar
preocupações à mulher nem lhe estimular ponderações que, apesar de bem
intencionadas, desconhecem a temática que buscam influir. E há o indizível que
fala ao coração de um homem, como neste instante, de profunda intimidade
consigo mesmo. Levanta-se e acende as luminárias: República se ilumina banhada
pela luz que vaza das arandelas de papel dourado. Como é bela! Por que não consegue, Páscoa?
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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