sexta-feira, 3 de abril de 2015

Capítulo Trinta


MEDITAÇÃO


-- O senhor precisa de alguma coisa mais?
-- Não, Belizária, pode ir.
-- Até amanhã.
-- Boa noite.
-- Pro senhor também.
O silêncio retorna à biblioteca do casarão e a leitura, à escrivaninha.
Respondo a tua carta recém-chegado de uma viagem, com os meus dois pequenos me puxando para eu ver algo importante. Ah, as urgências da inocência!
Nessa minha vida de engenheiro errante, estou de novo de mudança. Monto em Guarujá a minha próxima e provisória tenda, de onde viajarei para conhecidos pontos, na miserável canseira de um Sísifo, a rolar o meu fardo por essas estradas… ou a realizar a sombria tarefa siberiana de que nos fala Dostoievski – abrir todos os dias a mesma vala para depois preenchê-la com a terra retirada. Assim vou, no círculo vicioso de uma faina ingrata. Porém, tenho tido consolos.
A eleição, em setembro último, para a Academia Brasileira de Letras, sem data ainda de posse à cadeira do grande Castro Alves, continua a alegrar meu espírito, nesses tempos de filhotismo absoluto, verdadeira idade de ouro dos medíocres. Mas não tenho vaidades: mantenho-me na boa linha reta que meu pai me ensinou desde pequeno. E nela hei de continuar.
Alenta-me também o interesse dos leitores que querem conhecer as palavras deste advogado dos sertanejos assassinados por essa ordem pulha e covarde que aí está. Reconheci, na leitura da tua carta, a crença inabalável de ser possível regenerar o sistema, por ser imortal a República. Mas, ante os politicões, cheguei à conclusão desanimadora de que nossa política não passa de uma conspiração contra o caráter nacional. E penso que nossa raça (?) está liquidada. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e, por fim, o que vemos por toda parte ― a bandalheira sistematizada. Resta-me o consolo de haver feito pelos admiráveis patrícios de Canudos a minha denúncia e o recurso para apelar às gentes do futuro para quem especialmente escrevi Os Sertões.
Livros e escritos resumem a minha aspiração de uma vida tranquila. E para realizá-la persisto na decisão de lecionar na Politécnica de São Paulo. Na Escola poderei suprir a necessidade de trabalhar e de estar com as pessoas que me faltam nessa convivência estúpida com os empreiteiros que me rodeiam. Não sei se sabes que na Politécnica acabou o concurso para admissão de professores. Até os substitutos só entram agora por indicação. Conto com a boa vontade dos amigos lentes de lá, que incansáveis se esforçam para minha contratação e me aconselham a dar um pouco mais de tempo ao tempo, para que tudo se arranje a favor do aceite do meu nome. Assim, impacientemente, aguardo.
Minhas passagens pelo Rio têm sido céleres de um noturno ao outro. Em todo caso, se surgir uma possibilidade de demorar mais que um dia, te avisarei para podermos nos encontrar. São raros os bons companheiros, nestes tempos maus, e bem sabes que eu não dispenso os raríssimos que possuo.
Sobrescrevo, no verso do envelope, o endereço de Guarujá, onde espero receber tuas próximas notícias, e peço-te que me recomende à Exma. Senhora e filha.
Abraço-te,
Euclides.
Em mangas de camisa, Herculano parece mais jovem, mas não menos sóbrio. Braços apoiados sobre os da escrivaninha, carta sobre a escura madeira do móvel, recorda-se de um artigo que Euclides escreveu por época da fundação da Escola paulista, em 1893, no qual criticou o modelo de ensino adotado. Orientado para um estudo prático, o método suíço diferia do francês, implantado na Escola Militar do Rio de Janeiro e na de Minas de Ouro Preto. Euclides defendia o francês, por causa da sua ênfase na matemática e da didática que partia da dedução dos princípios das ciências físicas e naturais para ensinar a aplicação dessas acepções às indústrias. Com a justificativa de que cumpria o dever de combater o erro cometido por uma escola pública, naquele artigo, Euclides classificou o projeto de desastroso, incorreto na forma, carente de matérias e filosoficamente deficiente para formar a mentalidade dos engenheiros e desenvolver o pensamento científico no país. Como o artigo não suscitou réplicas, em novo texto, declarou que ninguém ousaria arrostar as consequências de negar os defeitos apontados por ele, nem mesmo o autor do projeto, que era o reitor. A despeito de suas críticas, por duas vezes, candidatou-se à posição de lente na Escola e, em ambas as ocasiões, teve seu nome preterido.
Impossível para Herculano não pensar que Euclides tornou-se um desafeto do reitor, que se mantém no cargo invulnerável à dança das cadeiras de sucessivos governos. Imagina que pese negativamente contra o colega não somente suas críticas passadas, mas também sua índole combativa do improbo. E receia que uma vez mais o despotismo do reitor consiga manter fechadas as portas da Escola paulista para o engenheiro autor de Os Sertões.
Tão pouco lhe é impossível ignorar a opinião de Euclides sobre a política ser uma conspiração contra o caráter nacional. Escrevera-lhe para conhecer sua visão acerca do momento atual do país e apreciou a resposta. Vislumbra, nas decepções com os políticos, a perspectiva de que o colega se torne um aliado para extirpar as condições daninhas que impedem o progresso para todos. Anota um pensamento na própria carta para incluí-la na próxima correspondência: dê um pouco mais de tempo ao tempo para ter também a resposta daquela pergunta que me fez em Canudos. O presente engendra as condições para eu lhe dizer o que as bandas do futuro nos reservam.
Encosta a cabeça no espaldar da cadeira, numa posição que favorece a visão do quadro da República. Pensa no encontro com Theodoro. Julga inapropriado falar sobre teoria militar no meio da rua, ainda mais com estranhos, e desconfia de palavras apressadamente lisonjeiras e do sorriso fácil -- costumam esconder dissimulações. Porém, à luz da cartilha pela qual analisa a conduta humana, as duas ocorrências não se coadunam: um ardiloso nunca se revela! Se a afabilidade de Theodoro tivesse se resumido à declaração do seu apreço por leituras de guerra, tomaria a ocorrência como de um sujeito maneiroso, inadequado ao cargo de secretário de governo, em virtude do risco daquele apreço ser interpretado como a expressão de um temperamento belicoso, nada indicado para a condução dos assuntos públicos. Mas enfatizar esse apreço, numa ampliação da exposição de si, com o comentário de que táticas militares também são úteis em tempos de paz, parece-lhe uma ação deliberada: por quê? Teme insatisfações com a reurbanização? Receia o comportamento dos militares e quer avisar que está atento? Ou continua a se exibir, como um pavão?
Não responde a própria pergunta, atraído pela beleza de República. Contempla a expressão em sábia atenção, depois os lábios fechados na suavidade de um quase sorriso. Seu olhar percorre a linha do pescoço, escorrega pelo regaço dos seios cobertos pela túnica branca e, no ir-e-vir das vagas formadas pela veste cinturada, oscila, quando então desliza o ventre até o incógnito delta... Aí se detém sem rolar pelas roliças coxas encobertas pelo tecido leitoso. 
Vaga o prazer despertado por essa incursão, desejoso de ser o homem da pátria, o predestinado a defendê-la dos violadores de suas virtudes, aquele que a guiará rumo ao progresso. Experimenta forte sensação em se imaginar abraçado àquele corpo, reconfortado no abrigo morno e macio do colo desejado. Inspira o deleite e o prazer se esvai com a lembrança invasiva da dificuldade da esposa para compreender que poderia ser como aquela musa, se ambas são parecidas e é da natureza feminina confortar. Não com um acolhimento que aproveita da brandura para querer conhecer seus mais íntimos pensamentos, nem com um silêncio que se ressente do que pela própria ordem natural das coisas não pode haver. Um marido deve possuir reservas para tomar decisões sem causar preocupações à mulher nem lhe estimular ponderações que, apesar de bem intencionadas, desconhecem a temática que buscam influir. E há o indizível que fala ao coração de um homem, como neste instante, de profunda intimidade consigo mesmo. Levanta-se e acende as luminárias: República se ilumina banhada pela luz que vaza das arandelas de papel dourado. Como é bela! Por que não consegue, Páscoa?

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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