COMO UM JOGADOR
Uma hora atrás, após
despachar com Theodoro as deliberações do dia, Rodrigues Alves lera o relatório
sobre o entrevero entre o deputado Alfredo Varela e o presidente da Câmara Federal.
Mais correto dizer que o presidente passara os olhos pelo papel. Não por
indiferença ao conteúdo já adiantado pelo Ministro da Justiça, o mensageiro do documento
confidencial. E sim porque sua atenção estava na sedição evocada pelas
ameaças registradas pelo chefe de polícia e o papel era o ponto focal desses instantes em que analisava o que decidiu e anunciou em seguida:
ampliar, para além do Congresso, a vigia dos políticos oposicionistas e chamar Theodoro
de volta à sua sala. Neste momento, o ouve opinar sobre o discurso.
-- Varella possui
têmpera inflamada e a tribuna é um local apropriado. Dr. Silva Castro apenas
cumpriu seu papel sem atinar para esse particular.
-- Ou atentou para
o possível. Cão que ladra uma hora morde.
O tabefe verbal
agrava a tensão desencadeada pelo motivo do retorno ao gabinete. Mas Theodoro
lida bem com a situação. Como um viciado em jogo, a espera de vencer a próxima
partida, administra a tensão com ar respeitoso e atento à reação alheia.
-- Garanto-lhe
que não ignoro os tipos intempestivos nem situações aparentemente insuspeitas.
Porém, filtro as preocupações para não assoberbá-lo desnecessariamente.
-- Faz bem e o
aconselho também a não perder de vista que o custo humano das prioridades do
meu governo é um capital valioso nas mãos da oposição.
-- Sim, senhor.
Esteja certo de que sempre ponho esse custo em perspectiva em tudo que faço
para cumprir a minha missão no governo.
-- A atitude de
Varella nos abre a possibilidade de revalidá-la. Há algum ponto que gostaria de
rever do compromisso assumido comigo?
-- Não,
presidente. Embora haja vozes destoantes e possam surgir outras, asseguro que o
senhor terá as leis que precisa para governar.
-- Ótimo. Em
frente.
Questão
resolvida, Theodoro sai do gabinete e encarrega BV de fazer com que o chefe de
polícia esteja no Clube dos Diários para um encontro no final do expediente.
Silva Castro não
tem tempo de saborear o inusitado convite, pois, como um estalo, seu relatório
lhe vem à mente. Pensa em insatisfações que expliquem o encontro e se apresenta
pontualmente no local combinado, onde os influentes da cidade se reúnem para
relaxar, discutir interesses e esperar o trânsito diminuir para tomarem a barca,
o trem ou um tílburi rumo as suas residências. Espanta-se ao ser encaminhado
para uma sala reservada e ali Theodoro o receber como se fosse seu velho
conhecido.
-- No salão,
nossos amigos disputariam nossa atenção.
-- De fato. O
Clube é muito prestigiado e o horário concorrido.
Pedidos feitos ao
garçom, os dois ficam a sós.
-- Pela manhã o
presidente quis ouvir o meu parecer acerca do seu relatório sobre os ânimos na
Câmara. Como estarei muito ocupado nos próximos dias, preferi não adiar a
oportunidade de parabenizá-lo. Um excelente trabalho.
Confirmada a
razão do convite, Silva Castro se defende com sutilezas.
-- Agradeço em
nome de todos da Segurança Pública. Nosso trabalho tem seus dissabores e
precisa ser executado de maneira irrepreensível. Assim, não poupo esforço.
-- A olhos vistos
e com uma agilidade admirável.
-- Os tempos
exigem e a oposição parlamentar requer controle absoluto.
-- Com certeza,
pequena, mas inconsequente, pode nos criar problemas.
-- Não, se
depender de mim, Dr. Theodoro. Investigo o menor sinal de ameaça. Não ignoro nada,
diz o convidado se valendo do ensejo para aprofundar sua defesa.
-- Por isso
sempre digo ao presidente e também a Seabra: com Silva Castro à testa da
Polícia, não seremos surpreendidos com embaraço algum.
-- Agradeço a
confiança transmitida aos meus superiores e adianto que, com a entrada em
operação da Guarda Civil, no mês que vem, terei melhores condições de manter o
Governo de sobreaviso acerca de possíveis riscos.
-- Isso é muito
bom. Mas fico cá a pensar no seu desgaste. Deve ser fatigante ter de sobrecarregar
o presidente com toda e qualquer ameaça pressentida?
Silva Castro fica
confuso. Jamais imaginou que poderia fatigar o chefe da nação com a sua
intenção de lhe mostrar serviço.
-- Ossos do
ofício, senhor secretário. Como fazer diferente?
-- É o que me
perguntava quanto me deparava com uma questão mais alarmante: Theodoro, o
presidente precisa saber disso, mesmo que ele diga “está é uma missão que
deleguei ao senhor, cumpra-a do modo que achar melhor”. Já ouviu essa frase,
não?
-- O ministro
Seabra costuma me inteirar sobre ela.
-- Se depender de
mim, em breve o senhor a ouvirá diretamente do presidente.
Silva Castro não
pode saborear o apoio anunciado. Se, por um lado, agrada-lhe ser apadrinhado
por Theodoro, por outro, teme dever favor a ele. Na balança do poder, seu prato
alcança a altura máxima, impulsionado pelo peso do outro. Não só por causa da diferença
de hierarquia, um nível menor, como também porque seu poder não vem de família.
Conquistou-o na marra, com muita subserviência, peleja e após aprender a tirar
partido da situação. Mas essa é colossal. Meneia a cabeça em sinal de agradecimento
e dá corda a Theodoro.
-- Quanto à carta
branca que o presidente lhe deu, que conclusão chegou?
-- A mesma que o
senhor decerto chegaria. Concorda que não podemos refutar a confiança dele em
nós, nem estafá-lo à atoa, se temos bons colegas para nos aconselhar?
-- Realmente uma
escuta esclarecida nos ajuda a decidir o que poupar ou informar o superior, num
primeiro momento.
-- Folgo em saber
que pensa como eu e acho que podemos nos ajudar. Afinal, muitos pontos das
nossas atividades se completam. O que me diz?
-- Muito me
lisonjeia unir nossas forças para o bem da Pátria. Estou às ordens.
-- Faço minhas
suas palavras. Conte comigo para o que precisar.
Silva Castro acha
melhor selar a aliança.
-- Tenho algumas
notas sobre os opositores da reforma. Gostaria de lê-las?
-- Claro. Esse é
o espirito do nosso apoio mútuo.
-- Levarei o
relatório ao seu gabinete. Aliás, depois do nosso encontro no Senado, copilei
de modo mais objetivo as informações que disponho sobre Herculano Dias.
-- Alguma
suspeita desde então?
-- Nenhuma.
Trata-se apenas de precaução. O Capitão frequenta as galerias do Congresso. Não
sempre, mas o suficiente para eu acompanhar de perto esse interesse.
-- Vejo que
faremos uma boa associação.
Após se retirar do
Clube dos Diários, Theodoro se encontra com BV e o ordena entregar uma cesta de
iguarias da Raffinée na casa de Silva
Castro e incluir a residência na lista dos agrados mensais. Libera BV e toma um
coche de aluguel. Distende-se no banco. O escuro da cabine lhe faz bem e ainda o
ruído dos cascos dos cavalos a golpear as pedras do caminho. Parece marcar a cadência
dos seus pensamentos: de confrontar as informações pedidas ao empregado sobre o
Capitão Dias com as oferecidas pelo chefe da polícia, de ter um militar que lhe
relate sobre os ânimos na Praia Vermelha, de Herculano vir a ser esse
informante, de convidá-lo para o sarau, por que não? E assim por diante
Theodoro passa em revista as possibilidades de controlar melhor a situação.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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