domingo, 19 de abril de 2015

Capítulo Quarenta

COMO UM JOGADOR


Uma hora atrás, após despachar com Theodoro as deliberações do dia, Rodrigues Alves lera o relatório sobre o entrevero entre o deputado Alfredo Varela e o presidente da Câmara Federal. Mais correto dizer que o presidente passara os olhos pelo papel. Não por indiferença ao conteúdo já adiantado pelo Ministro da Justiça, o mensageiro do documento confidencial. E sim porque sua atenção estava na sedição evocada pelas ameaças registradas pelo chefe de polícia e o papel era o ponto focal desses instantes em que analisava o que decidiu e anunciou em seguida: ampliar, para além do Congresso, a vigia dos políticos oposicionistas e chamar Theodoro de volta à sua sala. Neste momento, o ouve opinar sobre o discurso.
-- Varella possui têmpera inflamada e a tribuna é um local apropriado. Dr. Silva Castro apenas cumpriu seu papel sem atinar para esse particular.
-- Ou atentou para o possível. Cão que ladra uma hora morde.
O tabefe verbal agrava a tensão desencadeada pelo motivo do retorno ao gabinete. Mas Theodoro lida bem com a situação. Como um viciado em jogo, a espera de vencer a próxima partida, administra a tensão com ar respeitoso e atento à reação alheia.  
-- Garanto-lhe que não ignoro os tipos intempestivos nem situações aparentemente insuspeitas. Porém, filtro as preocupações para não assoberbá-lo desnecessariamente.
-- Faz bem e o aconselho também a não perder de vista que o custo humano das prioridades do meu governo é um capital valioso nas mãos da oposição.
-- Sim, senhor. Esteja certo de que sempre ponho esse custo em perspectiva em tudo que faço para cumprir a minha missão no governo.
-- A atitude de Varella nos abre a possibilidade de revalidá-la. Há algum ponto que gostaria de rever do compromisso assumido comigo?
-- Não, presidente. Embora haja vozes destoantes e possam surgir outras, asseguro que o senhor terá as leis que precisa para governar.
-- Ótimo. Em frente.    
Questão resolvida, Theodoro sai do gabinete e encarrega BV de fazer com que o chefe de polícia esteja no Clube dos Diários para um encontro no final do expediente.
Silva Castro não tem tempo de saborear o inusitado convite, pois, como um estalo, seu relatório lhe vem à mente. Pensa em insatisfações que expliquem o encontro e se apresenta pontualmente no local combinado, onde os influentes da cidade se reúnem para relaxar, discutir interesses e esperar o trânsito diminuir para tomarem a barca, o trem ou um tílburi rumo as suas residências. Espanta-se ao ser encaminhado para uma sala reservada e ali Theodoro o receber como se fosse seu velho conhecido.  
-- No salão, nossos amigos disputariam nossa atenção.
-- De fato. O Clube é muito prestigiado e o horário concorrido.
Pedidos feitos ao garçom, os dois ficam a sós.
-- Pela manhã o presidente quis ouvir o meu parecer acerca do seu relatório sobre os ânimos na Câmara. Como estarei muito ocupado nos próximos dias, preferi não adiar a oportunidade de parabenizá-lo. Um excelente trabalho.
Confirmada a razão do convite, Silva Castro se defende com sutilezas.
-- Agradeço em nome de todos da Segurança Pública. Nosso trabalho tem seus dissabores e precisa ser executado de maneira irrepreensível. Assim, não poupo esforço.
-- A olhos vistos e com uma agilidade admirável.
-- Os tempos exigem e a oposição parlamentar requer controle absoluto.
-- Com certeza, pequena, mas inconsequente, pode nos criar problemas.
-- Não, se depender de mim, Dr. Theodoro. Investigo o menor sinal de ameaça. Não ignoro nada, diz o convidado se valendo do ensejo para aprofundar sua defesa.
-- Por isso sempre digo ao presidente e também a Seabra: com Silva Castro à testa da Polícia, não seremos surpreendidos com embaraço algum.
-- Agradeço a confiança transmitida aos meus superiores e adianto que, com a entrada em operação da Guarda Civil, no mês que vem, terei melhores condições de manter o Governo de sobreaviso acerca de possíveis riscos.
-- Isso é muito bom. Mas fico cá a pensar no seu desgaste. Deve ser fatigante ter de sobrecarregar o presidente com toda e qualquer ameaça pressentida?
Silva Castro fica confuso. Jamais imaginou que poderia fatigar o chefe da nação com a sua intenção de lhe mostrar serviço.
-- Ossos do ofício, senhor secretário. Como fazer diferente?
-- É o que me perguntava quanto me deparava com uma questão mais alarmante: Theodoro, o presidente precisa saber disso, mesmo que ele diga “está é uma missão que deleguei ao senhor, cumpra-a do modo que achar melhor”. Já ouviu essa frase, não?
-- O ministro Seabra costuma me inteirar sobre ela.
-- Se depender de mim, em breve o senhor a ouvirá diretamente do presidente.
Silva Castro não pode saborear o apoio anunciado. Se, por um lado, agrada-lhe ser apadrinhado por Theodoro, por outro, teme dever favor a ele. Na balança do poder, seu prato alcança a altura máxima, impulsionado pelo peso do outro. Não só por causa da diferença de hierarquia, um nível menor, como também porque seu poder não vem de família. Conquistou-o na marra, com muita subserviência, peleja e após aprender a tirar partido da situação. Mas essa é colossal. Meneia a cabeça em sinal de agradecimento e dá corda a Theodoro.
-- Quanto à carta branca que o presidente lhe deu, que conclusão chegou?
-- A mesma que o senhor decerto chegaria. Concorda que não podemos refutar a confiança dele em nós, nem estafá-lo à atoa, se temos bons colegas para nos aconselhar?
-- Realmente uma escuta esclarecida nos ajuda a decidir o que poupar ou informar o superior, num primeiro momento.
-- Folgo em saber que pensa como eu e acho que podemos nos ajudar. Afinal, muitos pontos das nossas atividades se completam. O que me diz?
-- Muito me lisonjeia unir nossas forças para o bem da Pátria. Estou às ordens.
-- Faço minhas suas palavras. Conte comigo para o que precisar.
Silva Castro acha melhor selar a aliança.
-- Tenho algumas notas sobre os opositores da reforma. Gostaria de lê-las?
-- Claro. Esse é o espirito do nosso apoio mútuo.
-- Levarei o relatório ao seu gabinete. Aliás, depois do nosso encontro no Senado, copilei de modo mais objetivo as informações que disponho sobre Herculano Dias.
-- Alguma suspeita desde então?
-- Nenhuma. Trata-se apenas de precaução. O Capitão frequenta as galerias do Congresso. Não sempre, mas o suficiente para eu acompanhar de perto esse interesse.
-- Vejo que faremos uma boa associação.
Após se retirar do Clube dos Diários, Theodoro se encontra com BV e o ordena entregar uma cesta de iguarias da Raffinée na casa de Silva Castro e incluir a residência na lista dos agrados mensais. Libera BV e toma um coche de aluguel. Distende-se no banco. O escuro da cabine lhe faz bem e ainda o ruído dos cascos dos cavalos a golpear as pedras do caminho. Parece marcar a cadência dos seus pensamentos: de confrontar as informações pedidas ao empregado sobre o Capitão Dias com as oferecidas pelo chefe da polícia, de ter um militar que lhe relate sobre os ânimos na Praia Vermelha, de Herculano vir a ser esse informante, de convidá-lo para o sarau, por que não? E assim por diante Theodoro passa em revista as possibilidades de controlar melhor a situação.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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