quarta-feira, 1 de abril de 2015

Capítulo Vinte e Oito

BACIA DAS ALMAS


Durante o percurso do carro, Theodoro mira a rua com os pensamentos de volta à reunião. Se olhasse um pouco mais para o alto, com certeza teria enxergado Herculano, à sacada de um sobrado comercial, em outra ocorrência casual. Apreço por táticas militares, retruca o observador consigo mesmo, a espera do advogado, que deu uma saída rápida conforme o explicado pelo secretário, sentado à mesa do espaço. A porta da antessala se abre e o esperado adentra.
-- Capitão Dias?
-- Dr. Anacleto!
-- Desculpe-me de não estar aqui para recebê-lo.
-- Eu que peço desculpas. Houve um incidente na boca da Santo Antônio, parou o trânsito e não tive como postergar um compromisso anterior.
-- Não se preocupe. Soube da truculência e imaginei que poderia se atrasar.
Herculano gosta do adjetivo empregado à inspeção sanitária. Convidado a passar para outro ambiente, pega a maleta de viagem, deixada numa cadeira ao lado, e penetra o escritório decorado com sobriedade semelhante ao do anterior.
-- De viagem, Capitão?
-- Retorno do arraial de Copacabana. Minha família passa alguns dias lá.
-- Bom local para fugir deste verão infernal.
-- É. Está bastante quente.
-- Sente-se. Fique à vontade.
-- Obrigado.
-- Disse ao meu secretário que foi recomendado por D. Perpétua da Costa.
-- Pelo genro, o Capitão Brito.
-- Em que posso ser útil?
-- Como defendeu D. Perpétua na desapropriação da Cabeça de Porco, quero ouvir vossa opinião. Tivemos dois imóveis desapropriados na Avenida Central.
-- Tem sócios?
-- Não. Os imóveis são herança da minha mulher.
-- Como estão as condições de salubridade?
-- Aceitáveis.
-- Algum é moradia?
-- Dos inquilinos. Possuem atividade comercial no andar de baixo.
-- O que me diz do preço registrado para fins de imposto?
-- Nem um centavo a menos do valor de compra.
-- Menos mal. Algum problema com os cálculos indenizatórios?
-- Não. O erro é a mudança da base de cálculo. Inaceitável não pagar o preço atual
-- Com certeza, espolia a valorização do imóvel.
-- Não compro com a indenização a mesma metragem desapropriada. E terei perdas de aluguel. Por favor, veja os cálculos que fiz.
Herculano retira papéis de dentro da maleta e os entrega. Anacleto passa os olhos.
-- Uma quantia apreciável!
-- Como ganhou a causa de D. Perpétua, é a pessoa certa para nos representar.
-- Obrigado pela confiança, mas hoje o processo provavelmente não correrá no juízo dos feitos da Fazenda Municipal e sim nessa Justiça Sanitária que o Governo quer criar. Está sabendo da novidade, não está?
-- Estou. O caso lhe interessa?
-- Sim, porém receio que esse novo órgão seja uma artimanha do Governo para dar aparência legal às arbitrariedades da reurbanização. Teremos dificuldades.
-- Estou decidido a enfrentá-las. O direito da propriedade privada não pode ser inalienado na bacia das almas.
-- Exato e os termos dessa desapropriação são anticonstitucionais, diz Anacleto dirigindo-se à janela, onde fecha a gelosia.
A medida veda o sol e reduz o burburinho da rua, por onde Dr. Eugênio anda contrariado. Nem água lhe serviu a empregada da paciente que visitou. Que falta faz uma dona de casa sã! Não vê a hora de trocar a roupa pesada por um leve e fresco camisolão, depois, sentar-se à mesa e almoçar. Chega ao Largo da Carioca ocupado de novo pelos ambulantes. É um absurdo esse povo. Avista um conhecido, que sai da Marcenaria Atlas. Aperta o passo.
-- Psiu! Sr. Andreadis!
Grego se vira e espera o médico se aproximar.
-- Como está, Doutor?
-- Bem. Talvez precise do senhor, na próxima segunda-feira.
-- Banho de mar?
-- Para afinar violino que não seria a cinco da manhã!
Grego ignora a indelicadeza alheia.
-- O serviço é na praia do Arraial?
-- É. Mas só terei certeza no dia. Pode estar lá sem compromisso?
-- Posso. Espero o senhor nas pedras de Inhangá?
-- Bom local. Pra onde está indo?
-- Tomar o bonde pro Largo do Machado.
-- Serve pra mim. Vamos juntos e no caminho explico como quero o banho.
Embarcam no carro parado no meio do Largo que logo parte. Entre falas de um e devaneios do outro sobre a paciente, o percurso evolui. Na altura da praia do Flamengo, o bonde margeia os fundos do ex-palacete do Barão de Nova Friburgo e, desde 1897, sede do Governo Federal e denominado de Palácio do Catete.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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