BACIA DAS ALMAS
Durante
o percurso do carro, Theodoro mira a rua com os pensamentos de volta à reunião.
Se olhasse um pouco mais para o alto, com certeza teria enxergado Herculano, à
sacada de um sobrado comercial, em outra ocorrência casual. Apreço por táticas militares, retruca o
observador consigo mesmo, a espera do advogado, que deu uma saída rápida
conforme o explicado pelo secretário, sentado à mesa do espaço. A porta da
antessala se abre e o esperado adentra.
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Capitão Dias?
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Dr. Anacleto!
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Desculpe-me de não estar aqui para recebê-lo.
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Eu que peço desculpas. Houve um incidente na boca da Santo Antônio, parou o
trânsito e não tive como postergar um compromisso anterior.
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Não se preocupe. Soube da truculência e imaginei que poderia se atrasar.
Herculano
gosta do adjetivo empregado à inspeção sanitária. Convidado a passar para outro
ambiente, pega a maleta de viagem, deixada numa cadeira ao lado, e penetra o
escritório decorado com sobriedade semelhante ao do anterior.
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De viagem, Capitão?
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Retorno do arraial de Copacabana. Minha família passa alguns dias lá.
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Bom local para fugir deste verão infernal.
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É. Está bastante quente.
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Sente-se. Fique à vontade.
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Obrigado.
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Disse ao meu secretário que foi recomendado por D. Perpétua da Costa.
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Pelo genro, o Capitão Brito.
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Em que posso ser útil?
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Como defendeu D. Perpétua na desapropriação da Cabeça de Porco, quero ouvir
vossa opinião. Tivemos dois imóveis desapropriados na Avenida Central.
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Tem sócios?
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Não. Os imóveis são herança da minha mulher.
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Como estão as condições de salubridade?
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Aceitáveis.
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Algum é moradia?
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Dos inquilinos. Possuem atividade comercial no andar de baixo.
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O que me diz do preço registrado para fins de imposto?
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Nem um centavo a menos do valor de compra.
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Menos mal. Algum problema com os cálculos indenizatórios?
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Não. O erro é a mudança da base de cálculo. Inaceitável não pagar o preço atual
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Com certeza, espolia a valorização do imóvel.
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Não compro com a indenização a mesma metragem desapropriada. E terei perdas de aluguel.
Por favor, veja os cálculos que fiz.
Herculano
retira papéis de dentro da maleta e os entrega. Anacleto passa os olhos.
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Uma quantia apreciável!
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Como ganhou a causa de D. Perpétua, é a pessoa certa para nos representar.
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Obrigado pela confiança, mas hoje o processo provavelmente não correrá no juízo
dos feitos da Fazenda Municipal e sim nessa Justiça Sanitária que o Governo
quer criar. Está sabendo da novidade, não está?
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Estou. O caso lhe interessa?
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Sim, porém receio que esse novo órgão seja uma artimanha do Governo para dar
aparência legal às arbitrariedades da reurbanização. Teremos dificuldades.
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Estou decidido a enfrentá-las. O direito da propriedade privada não pode ser
inalienado na bacia das almas.
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Exato e os termos dessa desapropriação são anticonstitucionais, diz Anacleto
dirigindo-se à janela, onde fecha a gelosia.
A
medida veda o sol e reduz o burburinho da rua, por onde Dr. Eugênio anda
contrariado. Nem água lhe serviu a empregada da paciente que visitou. Que
falta faz uma dona de casa sã! Não vê a hora de trocar a roupa pesada por
um leve e fresco camisolão, depois, sentar-se à mesa e almoçar. Chega ao Largo
da Carioca ocupado de novo pelos ambulantes. É um absurdo esse povo.
Avista um conhecido, que sai da Marcenaria Atlas.
Aperta o passo.
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Psiu! Sr. Andreadis!
Grego
se vira e espera o médico se aproximar.
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Como está, Doutor?
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Bem. Talvez precise do senhor, na próxima segunda-feira.
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Banho de mar?
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Para afinar violino que não seria a cinco da manhã!
Grego
ignora a indelicadeza alheia.
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O serviço é na praia do Arraial?
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É. Mas só terei certeza no dia. Pode estar lá sem compromisso?
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Posso. Espero o senhor nas pedras de Inhangá?
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Bom local. Pra onde está indo?
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Tomar o bonde pro Largo do Machado.
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Serve pra mim. Vamos juntos e no caminho explico como quero o banho.
Embarcam
no carro parado no meio do Largo que logo parte. Entre falas de um e devaneios
do outro sobre a paciente, o percurso evolui. Na altura da praia do Flamengo, o
bonde margeia os fundos do ex-palacete do Barão de Nova Friburgo e, desde 1897,
sede do Governo Federal e denominado de Palácio do Catete.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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