sábado, 11 de abril de 2015

Capítulo Trinta e Cinco

DEVANEIOS E BOVARISMO


Anoitece. O passeio pelo cenário da reurbanização termina diante do Morro do Castelo, que se abeira da baía da Guanabara. Termina também em meio ao clima armado pelas críticas de Valentin às prioridades das obras e por sua decisão em ficar um pouco mais na cidade. Theodoro e Catarina partem no coche e Valentin se afasta do morro, que em breve será desbastado para acomodar as futuras sedes do Supremo Tribunal Federal e da Biblioteca Nacional.
Berço da cidade e morada dos nobres até meados do século XIX, o Castelo abriga construções antigas, como o convento dos capuchinhos, as igrejas de Santo Inácio e de São Sebastião, o antigo colégio dos jesuítas, atualmente hospital São Sacarias, além do Observatório Astronômico de cúpula arredondada. A partir do arruamento da planície, a nobreza desceu e a pobreza subiu o Castelo, passando a morar nos casarões, que foram transformados em habitações coletivas.
Valentin vivenciou parte dessas transformações e carrega a tristeza de reencontrá-las mais acirradas ali, no morro, e nas demais contradições de carne e de tijolo que gritam pela cidade afora. Tomado por esse sentimento, perambula pelas ruas do centro, lançando seu olhar de brilho frouxo sobre a precariedade humana e material do entorno, como os raios ainda tênues dos primeiros lampiões acessos. Suspeita que os retratos solicitados por Theodoro visem à delação das chagas sociais que precisam desaparecer para a cidade ressurgir em paisagens dignas de um cartão postal. Sente-se enganado pelo amigo e bordeja o arrependimento de ter retornado ao Rio de Janeiro, de ter exposto a sua solidão ao domínio enfeitiçante de Catarina. A cada bar avistado, adia o desejo de beber. De adiamento em adiamento, chega ao Maison Moderne, um misto de parque de diversões e teatro de variedades, que defronta a Praça Tiradentes.
No local de chão de terra, há público para movimentar a roda-gigante, o carrossel, o tiro ao alvo e o jogo de argolas. Há público também para dar vida às mesas espalhadas ao ar livre ou espremidas debaixo de uma lona de circo. No fundo desse espaço, num mambembe palco, um mágico faz aparecer de dentro da cartola flores que oferece para a sua ajudante, de colo e braços desnudos. Valentim se senta, pede uma bebida e sua escuta é fisgada pela conversa que evolui na mesa de trás.
-- Será o meu bovarismo a razão do meu sentimento de dessemelhança?
-- Que bovarismo é esse?
-- A diferença entre o que eu sou e imagino ser.
-- De onde tirou isso?
-- De Jules Gaultier: escreveu sobre o poder da gente de se conceber outro.
-- Tipo fidúcias ou sandices?
-- Ou por qualquer razão que faça a pessoa achar que é o que não é.
-- Às vezes falta aparato...
-- E sobre imaginação, sem autocrítica. Para Gaultier, esse foi o problema de Bovary, por isso chamou a concepção de bovarismo.
Valentin fica curioso em ver quem é o expositor da teoria e deixa cair o guardanapo no chão ao lado. Vira-se na cadeira e se abaixa para pegar o objeto. Durante o movimento, que não interrompe a conversa-alvo, observa a fonte da sua curiosidade – vinte e poucos anos embalados em roupa surrada – e retorna a posição.
-- Ando pensando muito nas razões do entendimento que uma pessoa tem de si e também do que o outro tem dela. Veja você. Hoje, eu ia pelo corredor do Ministério e um soldado me perguntou se eu era contínuo. Ora, sendo a terceira vez que me fazia a mesma pergunta, a coisa feriu um tanto minha vaidade, e precisei de muito sangue frio para não responder com azedume.
-- Deve sofrer de bovarismo.
-- Pode ser. E o pior é que até gente simples insiste em tomar-me como tal.
-- Coisa de despeito.
-- Ou um desmentido à afirmação de que a educação embeleza, dá outro ar à feição. Pelo menos comigo isso não acontece.
-- Deixa disso, Barreto.
-- Não dá pra deixar. O que é verdade na raça branca, tem de ser pra outras. Por que eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser tomado por contínuo?
-- Não se apoquente e siga em frente, de cabeça erguida.
-- É o que digo para mim: Afonso Henriques de Lima Barreto, tua vida será sempre cheia desse desgosto – e ele te fará ir longe.
-- Assim que se diz.
-- Quando me julgo, nada valho; quando me comparo, sou grande.
-- Também não exagera nem para um lado nem para o outro. O importante é não se abater. Persistir, sempre!
-- Há de se pensar se a persistência não é uma ilusão da vontade.
– Qual o problema se for? Dá razão de viver. E mais. A sabedoria popular não se engana: de grão em grão, a galinha enche o papo e a fé remove montanhas.
-- É. Talvez o bovarismo seja também vetor da evolução, mas não daqueles ali.
-- De quem?
-- Ali na frente, à esquerda, aos cumprimentos com o Pietro.
Cristóvão olha – Valentin também. Avistam um sujeito sorridente, na casa dos quarenta anos, que recebe dois jovens de braços dados com alegres damas.
-- Não são os filhos do Silva Castro?
-- São e, como o pai, as bestas mais imbecis do país.
-- Fala baixo, Barreto. Mas aquelas damas... Que petisco!
-- Que comam e se divirtam, porque daqueles cáftens não receberão um tostão. Um bando de salafrários e desonestos, como o poltrão do pai.
-- Essa tua boca ainda te complica um dia.
-- Mas é fato. Sabe que os filhos recebem subvenções de bicheiros e o mais velho, casado, mora de cortesia em casa de propriedade de um deles?
-- Já ouvi comentários.
-- Acham-se os tais. É engraçado: em uns o bovarismo não causa problema; já em outros, provoca uma tremenda tormenta.
-- Mas não ponha tudo na conta da filosofia. O caso ali e caráter de menos.
-- Oh, e como!
A prosa continua e Valentin vaga indagações: concebo-me outro que não sou? A vida se revela na ilusão? A existência é o bovarismo de si?  A imagem de Catarina lhe vem à mente e o transporta para os dias vividos em Paris.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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