domingo, 5 de abril de 2015

Capítulo Trinta e Dois

DA BATIDA POLICIAL


Mariinha e Belizária retomam a caminhada pelo meio da rua: um filete torto e comprido, iluminado por esparsos lampiões e ladeado por sobrados de dois ou três andares, grudados um no outro e com a maioria das fachadas em mau estado de conservação. Passam diante da casa de Sinhá Cota, ultrapassam a Rua da Lampadosa, depois, a Travessa das Belas Artes, num percurso em que os olhos se esguelham de um lado para o outro. No interior de uma taverna, avistam homens ao balcão e mulheres em modos nada recatados. Mais à frente, a cena se repete, acrescida de um carteado jogado sobre um tonel; em seguida, aparecem os casarios de portas abertas para íngremes escadas. Os olhos das duas se obliquam para os varões que proseiam no passeio com meretrizes de bustos pendidos à janela. Finalmente, perscrutam de longe o interior do botequim do Rômulo com portas também para o Beco do Tesouro. Como o procurado não está na bodega, as duas viram a esquina e combinam de ir até o fim do Beco e de lá ir embora. Poucos metros percorridos, à boca de uma viela, veem uma roda de capoeira. Belizária eriça-se com a visão e, sem dar ouvidos aos resmungos de Mariinha de que parar não era o combinado, empaca diante de um jovem de vinte anos. Num giro, o observado apoia as mãos no chão e lança as pernas em direção do adversário. Tão logo se ergue, Juliano já ginga em novo movimento. Belizária se deslumbra, Mariinha nem tanto e de novo reclama em vão.
O adversário de Juliano cede o lugar na luta para outro colega e a admiração volta a brilhar no rosto de Belizária e dos capoeiristas. Reconhecem no jovem não só o filho, mas também o legítimo sucessor de Malaquias, de quem todos têm uma história para contar, apesar de não se lembrarem do lendário porque eram pequenos quando ele foi deportado pelo crime da capoeiragem. Gritos e xingamentos ressoam e interrompem o jogo. Belizária corre para a esquina e avista a cavalaria. Os olhos arregalam-se e o corpo se vira em disparada para avisar os capoeiristas.
-- É a patrulha.
Num minuto o grupo se dispersa pela Travessa das Belas Artes: os rapazes somem por um lado e as moças por outro. Na esquina da São Jorge, as duas param e espiam a revista dos guardas pela rua abaixo. Mariinha torce para que a confusão desentoque o procurado e Belizária, que um conhecido surja para dar detalhes do ocorrido.
Não tão longe dali, na cozinha do casarão da Sinhá Cota, as mulheres ocupam os bancos, que ladeiam a comprida mesa. Algumas cerzem toalhas, outras montam pratos de doces, sob o olhar de Sinhá, acomodada à cadeira de balanço, ao lado de Anunciata, que faz crochê, sentada numa cadeira parecida, apenas menor. Tempo depois, Belizária chega e, em borbotões, relata a prisão de uma moradora da estalagem São Jorge.
-- Não sei bem porque, o Borges juntou a Rufina num canto e ela lascou um bofetão na cara dele. Fulo da vida, ele foi embora. Mas só que voltou com a patrulha e o Raposo. Quando a Rufina viu, injuriou. Chamou o Borges de tudo quanto é nome, disse que ele era um guarda de merda e coisas mais. O Raposo tomou as ofensas e mandou que ela tivesse modos. Pra quê? Baixou Exu nela. Pulou pra cima das sacas e gritou: a boca é minha, falo o que quiser. Prendam esta mulher, disse o Raposo. Aí a Rufina falou: vem que eu quero ver quem é homem aqui. Foi um banzé. Ela deu pontapé, dentada, ranhou a cara de um, rasgou a farda de outro e saiu arrastada para a delegacia.
Bebiana estranha.
-- Tá esquisito isso. Rufina só exalta na razão, até quando bebe.
-- Algo o Borges aprontou, aventa Divina.
-- Extorsão, sentencia Sinhá.
Anunciata balança um sim com a cabeça e os olhos no crochê.
-- Aí eu já não sei dizer. Conto o que o seu Montes contou.
-- Quem?
-- O salafrário do Montes, grita Sinhá Cota para Conceição. -- Onde já se viu fiar-se em palavra de gente ruim. Aquilo é um Judas.
Anunciata balança outro sim e Corina se inquieta com a andança de Belizária.
-- O que fazias lá embaixo?
-- Só fui acompanhar Mariinha até a venda do Rômulo.
-- Essa é outra com o futuro por um triz.
-- Eu, sinhá?
-- Sancta simplícitas! Tu tens têmpera para luxar?
-- Virgem Maria! Eu não.
-- Pois então não me enerves com o descabido.
-- Viste Juliano?
-- Sabe que não, mente Belizária para não afligir Delfina.
-- Onde anda esse menino? Já era hora de ele aparecer.
-- Não se agaste assim, minha tia, daqui a pouco ele chega, fala Gracinda.
-- Mas só de ouvir que a patrulha tá na rua, dá um travo amargo na boca.
-- Ele sabe se virar, acalma Lindalva.
-- Isso é o perigo. Morro se perder ele também para aquela maldita ilha.
Os olhos grandes de Belizária se assombram com as perspectivas.
-- Vocês mimam Juliano demais.
-- Só nós, sinhá?!
-- Não me desdiga, Gracinda. Ele tinha era que estar o tempo todo na lida com vocês, não caçando sonhos de grandeza longe daqui. Entendeste, Delfina?
-- Como não, sinhá, se isso é o que mais quero?
-- Ah, bom! E tu, Divina, ouviste bem?
-- Ouvi, sim, Sinhá, responde a dirigente dessa casa de mulheres na qual Juliano é o bendito fruto crescido entre tantos braços que o querem bem.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário