MARCO ZERO
É noite de
estreia de Flecha Negra no palco da Maison
Moderne. Vozes, risadas e euforias vibram no espaço, ao som de cordas e
metais, enquanto homens abeirados do palco se extasiam com o apetitoso das dançarinas-cantoras
revelado durante o volteio da coreografia. Sinhá Cota e as mulheres do casarão
já chegaram acompanhadas da baiana Inácia, mãe do Zé, amigo de Juliano, que irá
participar da proibida capoeira com outros companheiros. O caixeiro Altino e a
costureira Ismênia também prestigiam a estreia do vizinho de rua que viram
crescer e há pouco se integraram ao alegre e ansioso grupo feminino,
distribuído ao redor de redor de mesas unidas, com duas cadeiras vazias. São de
Belizária e de Mariinha, que foram logo ali e já voltam.
O logo ali ocorre
em trajetórias circulares oferecidas pela roda-gigante do parque da casa de
diversão. Belizária jura nunca mais fazer a vontade de Mariinha nem andar nessa
roda de encantamento há tempo temido e de terror comprovado ao longo de giros
infernais que a impedem de apreciar a vida com a segurança da terra firme. Por
mais que tente, não consegue mover a cabeça para lado nenhum nem mirar para onde
a amiga roda com um olhar acarneirado para a razão motivadora da ausência à
mesa: o procurado de dias atrás, Abel Adônis, um solteirão de quarenta anos de
idade, versado em estrofes de poesia, com quem já esteve outras vezes em
calorosos encontros.
-- Ah! Sinto uma
coisa quando a roda sobe e outra quando desce.
-- Ó, menina
linda. O viver tem disso e outras inebriantes palpitações.
-- Como sonho ter
uma vida assim.
-- Tão mimosa
como és, pode ter o mundo aos teus pés.
Mariinha se
percebe ainda mais cheia de encantos e poder.
-- Dizes isto
para todas ou só para mim?
-- Só para as que
podem se aninhar em cetim carmesim.
Cor e tecido a
agradam, mas não a ausência de exclusividade.
-- Faça parar
essa roda. Não quero mais girar com o senhor.
-- Tudo ao seu
tempo, mimosa!
-- Quem tu pensas
que eu sou?
Mariinha não
entende o significado de todas as palavras, porém, pelo modo como foram ditas,
em lábios debruados de volúpia e olhar incendiário, decifra o sentido como algo
relacionado aos pecados da paixão. Já seria uma pecadora completa se não
temesse o risco de ser deserdada do paraíso nupcial, que sonha penetrar.
Inflada de onipotência juvenil e de desejos, acha melhor reagir como o esperado
de uma donzela de família. Ergue a mão para desagravar a ofensa. Abel segura o
pulso no ar.
-- Não te agites,
botão de rosa. Posso te ajudar a realizar os teus sonhos.
-- Então me
cortejes direito. Por que não me pedes ao meu pai de criação?
-- Meu ofício não
permite, nem sou talhado para o casamento.
A dúvida de quais
impeditivos matrimoniais um empresário de diversão pode ter estampa-se na feição
de Mariinha e, no segundo seguinte, cede lugar ao ar resoluto.
-- Se é assim, de
mim não terás nem mais um olhar.
-- Ó lago que a
brisa mal encrespa, ainda não és um oceano para luxar!
O medo de ter
sido incisiva e de perder Abel a faz mudar mudar de arma.
-- Por que és
cruel se te quero tão bem?
-- Porque sirvo a
outros com os botões que colho nos passeios.
A declaração
relampeia a compreensão e Mariinha entende a natureza do ofício de Abel, suas apalpadelas
eletrizantes e o motivo de certa vez ele lhe ter tido, em peito arfante, que a preciosidade
dela era digna do sacrifício dele. Que
lindo, achou e suspirou diante do cavalheiro de seus sonhos. Entende também
o próprio engano e o derradeiro: correu das alcoviteiras de pretendentes
baratos para cair nos braços de um rufião, que deve ter planos de faturar com a
sua virgindade. Não! Não pode ser,
pensa e balbucia:
-- Lanças
donzelas?!
-- Só as valiosas
e num mundo a parte até para os teus sonhos mais fantásticos.
As sobrancelhas dela
se erguem e a testa se vinca num espanto só.
-- Queres me
lançar?
-- Se for do teu
querer.
-- És um infame!
-- Quieta, menina
atrevida, diz Abel, apertando uma de suas bochechas.
-- Vou contar pro
meu pai e serás preso. Sou de menor.
-- O que queres?
Desconjuntar essas belas ancas com o peso do batente?
-- Eu quero casar
com um homem bom e protetor.
-- Esperta, como
pareces ser, poderás até conhecer o amor.
-- Nunca mais te
verei, nunca mais.
-- Pense bem, pombinha,
estarei por perto, se mudares de ideia.
Mariinha
silencia. Teme desperdiçar sua beleza numa vizinhança de gente pobre e deseja
sair da casa dos pais de criação onde tudo está bom, se há saúde e se assim é a
vontade de Deus. Odeia a lida doméstica. Não quer ter as mãos queimadas pelo
ferro de brasas, a barriga molhada pelas roupas lavadas, o joelho esfolado pela
limpeza do assoalho, a esperteza gasta em fazer render a comida e os olhos
ardidos com a miudeza dos pontos exigidos por Ismênia na costura. Quer ser a
Margot aspirada: trajar vestidos, luvas e chapéus franceses, passear de coche,
brilhar com joias no Theatro Lyrico, tomar sorvetes na confeitaria e ter alguém
para protegê-la das adversidades. Quer muito tudo isso. Nessa atmosfera raiada
de luz e ao som do realejo, percebe seu sonho pendular, como a cadeira da
roda-gigante a cada parada, ora para frente, ora para trás, em fluxo que diz para
seguir adiante e refluxo que sinaliza as perdas de se afastar da vida honesta.
Nesse ir-e-vir, o casal chega à portinhola da roda, com Belizária à espera.
Abel desce e estende a mão. Cortesia aceita, Mariinha se move sem transparecer
para a amiga a decepção de retornar ao marco zero dos seus sonhos.
-- Boa noite,
senhor Abel. Agradeço a diversão.
-- Faço votos de
te ver em breve.
As duas se
afastam de braços dados.
-- E?
-- E o quê?
-- O que ele
disse.
-- Um monte de
coisa.
-- De que tipo?
-- Segredo.
-- Qual?
-- Deixa de ser
abelhuda.
-- Que um raio caia
em mim se o meu interesse não for pro seu bem.
-- Quer me pedir
para o meu pai.
-- Nossa! Tão
depressa assim?
-- Tem de ser
devagar?
-- Pra ter tempo
de conferir se ele é solteiro e se pode cuidar direito de ti.
-- Não me
desoriente! Preciso pensar.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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