terça-feira, 21 de abril de 2015

Capítulo Quarenta e Um

MARCO ZERO


É noite de estreia de Flecha Negra no palco da Maison Moderne. Vozes, risadas e euforias vibram no espaço, ao som de cordas e metais, enquanto homens abeirados do palco se extasiam com o apetitoso das dançarinas-cantoras revelado durante o volteio da coreografia. Sinhá Cota e as mulheres do casarão já chegaram acompanhadas da baiana Inácia, mãe do Zé, amigo de Juliano, que irá participar da proibida capoeira com outros companheiros. O caixeiro Altino e a costureira Ismênia também prestigiam a estreia do vizinho de rua que viram crescer e há pouco se integraram ao alegre e ansioso grupo feminino, distribuído ao redor de redor de mesas unidas, com duas cadeiras vazias. São de Belizária e de Mariinha, que foram logo ali e já voltam.
O logo ali ocorre em trajetórias circulares oferecidas pela roda-gigante do parque da casa de diversão. Belizária jura nunca mais fazer a vontade de Mariinha nem andar nessa roda de encantamento há tempo temido e de terror comprovado ao longo de giros infernais que a impedem de apreciar a vida com a segurança da terra firme. Por mais que tente, não consegue mover a cabeça para lado nenhum nem mirar para onde a amiga roda com um olhar acarneirado para a razão motivadora da ausência à mesa: o procurado de dias atrás, Abel Adônis, um solteirão de quarenta anos de idade, versado em estrofes de poesia, com quem já esteve outras vezes em calorosos encontros.
-- Ah! Sinto uma coisa quando a roda sobe e outra quando desce.
-- Ó, menina linda. O viver tem disso e outras inebriantes palpitações.
-- Como sonho ter uma vida assim.
-- Tão mimosa como és, pode ter o mundo aos teus pés.
Mariinha se percebe ainda mais cheia de encantos e poder.
-- Dizes isto para todas ou só para mim?
-- Só para as que podem se aninhar em cetim carmesim.
Cor e tecido a agradam, mas não a ausência de exclusividade.
-- Faça parar essa roda. Não quero mais girar com o senhor.
-- Tudo ao seu tempo, mimosa!
-- Quem tu pensas que eu sou?
-- Um eflúvio luminoso... Trescalante, morno e entorpecedor.
Mariinha não entende o significado de todas as palavras, porém, pelo modo como foram ditas, em lábios debruados de volúpia e olhar incendiário, decifra o sentido como algo relacionado aos pecados da paixão. Já seria uma pecadora completa se não temesse o risco de ser deserdada do paraíso nupcial, que sonha penetrar. Inflada de onipotência juvenil e de desejos, acha melhor reagir como o esperado de uma donzela de família. Ergue a mão para desagravar a ofensa. Abel segura o pulso no ar.
-- Não te agites, botão de rosa. Posso te ajudar a realizar os teus sonhos.
-- Então me cortejes direito. Por que não me pedes ao meu pai de criação?
-- Meu ofício não permite, nem sou talhado para o casamento.
A dúvida de quais impeditivos matrimoniais um empresário de diversão pode ter estampa-se na feição de Mariinha e, no segundo seguinte, cede lugar ao ar resoluto.
-- Se é assim, de mim não terás nem mais um olhar.
-- Ó lago que a brisa mal encrespa, ainda não és um oceano para luxar!
O medo de ter sido incisiva e de perder Abel a faz mudar mudar de arma. 
-- Por que és cruel se te quero tão bem?
-- Porque sirvo a outros com os botões que colho nos passeios.
A declaração relampeia a compreensão e Mariinha entende a natureza do ofício de Abel, suas apalpadelas eletrizantes e o motivo de certa vez ele lhe ter tido, em peito arfante, que a preciosidade dela era digna do sacrifício dele. Que lindo, achou e suspirou diante do cavalheiro de seus sonhos. Entende também o próprio engano e o derradeiro: correu das alcoviteiras de pretendentes baratos para cair nos braços de um rufião, que deve ter planos de faturar com a sua virgindade. Não! Não pode ser, pensa e balbucia:
-- Lanças donzelas?!
-- Só as valiosas e num mundo a parte até para os teus sonhos mais fantásticos.
As sobrancelhas dela se erguem e a testa se vinca num espanto só.
-- Queres me lançar?
-- Se for do teu querer.
-- És um infame!
-- Quieta, menina atrevida, diz Abel, apertando uma de suas bochechas.
-- Vou contar pro meu pai e serás preso. Sou de menor.
-- O que queres? Desconjuntar essas belas ancas com o peso do batente?
-- Eu quero casar com um homem bom e protetor.
-- Esperta, como pareces ser, poderás até conhecer o amor.
-- Nunca mais te verei, nunca mais.
-- Pense bem, pombinha, estarei por perto, se mudares de ideia.
Mariinha silencia. Teme desperdiçar sua beleza numa vizinhança de gente pobre e deseja sair da casa dos pais de criação onde tudo está bom, se há saúde e se assim é a vontade de Deus. Odeia a lida doméstica. Não quer ter as mãos queimadas pelo ferro de brasas, a barriga molhada pelas roupas lavadas, o joelho esfolado pela limpeza do assoalho, a esperteza gasta em fazer render a comida e os olhos ardidos com a miudeza dos pontos exigidos por Ismênia na costura. Quer ser a Margot aspirada: trajar vestidos, luvas e chapéus franceses, passear de coche, brilhar com joias no Theatro Lyrico, tomar sorvetes na confeitaria e ter alguém para protegê-la das adversidades. Quer muito tudo isso. Nessa atmosfera raiada de luz e ao som do realejo, percebe seu sonho pendular, como a cadeira da roda-gigante a cada parada, ora para frente, ora para trás, em fluxo que diz para seguir adiante e refluxo que sinaliza as perdas de se afastar da vida honesta. Nesse ir-e-vir, o casal chega à portinhola da roda, com Belizária à espera. Abel desce e estende a mão. Cortesia aceita, Mariinha se move sem transparecer para a amiga a decepção de retornar ao marco zero dos seus sonhos.
-- Boa noite, senhor Abel. Agradeço a diversão.
-- Faço votos de te ver em breve.
As duas se afastam de braços dados. 
-- E?
-- E o quê?
-- O que ele disse.
-- Um monte de coisa.
-- De que tipo?
-- Segredo.
-- Qual?
-- Deixa de ser abelhuda.
-- Que um raio caia em mim se o meu interesse não for pro seu bem.
-- Quer me pedir para o meu pai.
-- Nossa! Tão depressa assim?
-- Tem de ser devagar?
-- Pra ter tempo de conferir se ele é solteiro e se pode cuidar direito de ti.
-- Não me desoriente! Preciso pensar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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