REUNIÃO PRESIDENCIAL
Theodoro esbanja humor a espera do início de uma
reunião com Rodrigues Alves. E o faz de caso pensado para exercer influência
futura na sua plateia, formada pelo ministro da Indústria, Viação e Obras, o
engenheiro militar Lauro Müller, de quarenta anos, e pelo Diretor de Saúde, o
médico higienista Oswaldo Cruz, de trinta e um. Considera esse um idealista
afoito e tenta o envaidecer, enquanto diverte aquele, que acha um nacionalista
enrustido, perigoso aos seus interesses. Imbuído de tal proposito, relata a
entrevista dada horas antes pelo presidente, em companhia de Cruz, a Dimas
Reis, jornalista conhecido por embaraçar políticos. Ora como o entrevistado, ora como o entrevistador, explora as nuances do gestual de cada um enquanto conta que Dimas desenterrou o
fato, bastante divulgado na época, de que o prefeito Pereira Passos e Oswaldo Cruz
haviam condicionados o aceite do cargo à completa liberdade de ação, sem
interferências políticas.
--
Muitos enxergam nessa liberdade um poder excepcional, não consonante com uma
República representativa, disse o Dimas. O presidente o fitou...
--
Com aquele olhar faiscando objetividade, enfatiza Cruz, sentado à ponta da
sólida mesa de reunião e com o prazer a colorir seu rosto de traços fortes,
marcado ainda pela basta cabeleira e pelo respeitável bigode.
O
esclarecimento reforça a interpretação de Theodoro na pele do presidente.
--
Se o Congresso desempenha suas funções e aprovou esse poder, tudo está dentro
da legalidade. Ademais só com autoridade o Prefeito e os Ministros podem
triunfar na missão que lhes deleguei.
--
Boa resposta, diz Müller, acariciando o cavanhaque e com ar de que vê a cena.
--
O melhor está por vir, avisa Oswaldo.
Sim,
porque sabe como o Dimas é marrento. Insistiu, dizendo que o prefeito e todos nós
agíamos como se fossemos o chefe da nação. Não deu outra. Sem titubear, o presidente
respondeu que era algo parecido o que acontecia e que não podia ser diferente.
Aí com aquela fina ironia que bem conhece, sentenciou: todos da minha equipe estão
aptos a sentar-se na cadeira que eu ocupo e suas respectivas pastas são uma fração
da responsabilidade da minha. Há de ter então poder de decisão.
--
Hun! Enaltecedor. Realmente, fazemos tudo o que queremos. Mas o mais correto é
dizer que não fazemos nada que ele não queira, observa Müller numa cadência
tonal e expressão facial que acentua sua espirituosidade.
Todos riem – e Theodoro
ainda perscruta a fisionomia de Müller, incerto de quanto o comentário revela obediência
à hierarquia. A porta se abre e Rodrigues Alves entra, seguido por Pereira
Passos, de sessenta e oito anos, e pelo ministro Joaquim José Seabra, de
quarenta e nove. Cumprimentos trocados, assentos tomados, preliminares faladas,
o presidente informa que sancionou a reorganização dos serviços de higiene da
União e aborda o foco da reunião: as demolições na Avenida Central.
--
Proponho a operação para logo após o carnaval. Acham o prazo adequado?
A
concordância é unânime e o presidente prossegue.
--
Ótimo. Friso que essa data é de conhecimento exclusivo dos senhores e assim
deve permanecer até a conclusão dos preparativos para as demolições. Sugiro que
aproveitem o momento para discutir onde o trabalho de um depende do outro a fim
de que interdependências sejam administradas e possam garantir uma operação
célere e eficiente. Por eficiência, entendo também uma correta cobertura da
imprensa e ausência de distúrbios. Algum parecer acerca do meu entendimento,
Dr. Theodoro?
--
Somente o meu endosso, presidente.
--
Muito bom. Acompanharei a evolução das atividades nos despachos individuais ou
em conjunto quando necessário. Alguma dúvida?
O
grupo responde não.
--
Deixo então os senhores para que prossigam os trabalhos.
O
presidente se retira e o grupo se atualiza das agendas de cada um. Passos prevê
o término dos processos das desapropriações e da entrega final da ordem dos
despejos em um mês. Com a mesma segurança, Cruz declara ser possível concluir também
em trinta dias o levantamento dos imóveis insalubres que devem ser demolidos.
Ninguém fala em impactos na população, exceto Theodoro que sugere a inclusão
das edificações combalidas no calendário da operação.
--
É sempre melhor fazer o pior de uma vez só, enfatiza.
--
Infelizmente, nesse caso específico, teremos de esperar a instauração da
Justiça Sanitária para autorizar o que virá abaixo, adverte o ministro da
Justiça.
--
Urge que o presidente designe o Juiz nos próximos dias, avalia Oswaldo.
--
Se não houver queda de braços pelo cargo...
--
Cuidarei para que não haja, prontifica-se Theodoro.
--
Porém temos de pensar no prazo para a análise dos processos e a expedição desses
mandatos, acrescenta Seabra que começa a revelar incomodo com a pressa.
--
Dê-me logo o juiz que tudo será realizado também em trinta dias, compromete-se
Oswaldo.
--
Agradeço o pronto repasse das desconformidades identificadas.
--
Com certeza, senhor Prefeito. Terá inclusive informações sobre terrenos vazios
e imóveis mal ocupados.
--
Excelente. As diretorias de Patrimônio e Obras terão meios para certificar a
atualização dos registros prediais e acelerar a expedição de taxas e avisos
necessários.
Seabra
receia a indiferença despertada pelos seus conselhos e insiste na cautela.
--
Esperem pela regulamentação do Código. Lembro que há controvérsias em legislarmos
sobre modos de ocupação dos imóveis.
--
Ora, estamos respaldados pela legislação de outros países e o caso é matéria de
apreciação da Justiça Sanitária, retruca Oswaldo.
Seabra
vira o rosto e fita Theodoro.
--
Será essa a visão da oposição?
--
Tenho trabalhado para que seja, e posso providenciar a divulgação das
legislações estrangeiras, além de artigos que expliquem as razões profiláticas
de excluir práticas rurais do perímetro urbano.
O
prefeito gosta da iniciativa e pede a inclusão também de matérias que defendam
o imposto sobre o terreno baldio e outras que elucidem as perdas para o
progresso de haver moradia em pavimentos térreos, apropriados ao comércio.
--
Isso no que diz respeito ao centro urbano, esclarece.
Muller
quieto até então confirma os números da operação planejada.
--
Mantenho a estimativa de 650 demolições na Avenida?
--
Sim. Os imóveis insalubres da região entram no meu planejamento. Já tem esse
cálculo fechado, Oswaldo?
--
Cerca de 300, a princípio.
--
De modo escalonado, tenho recursos, responde Passos.
--
Seja como for, reforçarei as picaretas e os homens, caso precise de apoio.
--
Obrigado. Aviso, se precisar.
--
Pelo que vejo, a operação será ainda mais rápida e fulminante do que a pensada
pelo presidente, comenta Seabra.
--
E em calmaria, acrescenta Theodoro.
--
Oxalá o ouça!
--
Algo mais que minha presença se faça necessária?
--
Da minha parte, não, responde Seabra a Passos.
Com
as sucessivas negativas, encerram a reunião e Theodoro se dirige para o próximo
compromisso: encontrar-se com Catarina e Valentin para mostrar no local o
trabalho fotográfico que convidou o amigo a fazer e os reaproximou novamente.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário