sexta-feira, 17 de abril de 2015

Capítulo Trinta e Nove

CONSULTA CONSPIRATÓRIA


O toque da corneta anuncia a alvorada na Escola Militar da Praia Vermelha. Em andamento lento, como se desse tempo para se entender que é hora de acordar, o chamado para o dia ganha ritmo à medida que evolui e ressoa por onde Estácio de Sá fundou, em 1565, São Sebastião do Rio de Janeiro, a serviço da Coroa Portuguesa.
Nessa região histórica, a Escola se exibe incrustada entre o sopé do maciço de onde irrompe o Pão de Açúcar e a base do morro de flanco para o areal do Leme. Decerto que tais elevações superam em imponência a da edificação, erguida em 1864. Mas verdade igual é que a Escola, atravessada no descampado como um istmo, marca a sua presença com seus austeros e retilíneos pavilhões, interligados por um vistoso pórtico central. Assim, de estrutura tão sólida quando a dos fundamentos do pensamento científico cultuado no seu interior, a Escola se destaca na paisagem e faceia, de um lado, a praia da Saudade e, do outro, a praia Vermelha, cujo nome ostenta.
A princípio, atribuiu-se a cor dessas areias ao sangue derramado pelos indígenas Tamoios e pelos aliados franceses durante a batalha perdida para os portugueses, em 1560. Os Tamoios deram combate em defesa do seu território e os aliados, do princípio que facultava a exploração da terra por quem a ocupasse. Os portugueses, por sua vez, os combateram com base no Tratado de Tordesilhas de 1494, que dividiu, entre o reino de Portugal e o da Espanha, o mundo descoberto e o por descobrir para além da Europa. Mais tarde a ciência revelou que a cor vinha de cristais de granada presentes naquelas areias regadas pelo fluxo e refluxo das marés e sem ligação com o sangue ali derramado sob o influxo dos domínios humanos.
O sol já brilha forte quando Agostinho atravessa o pórtico da Escola e muda o seu itinerário. Ao invés de ir para o seu gabinete, dirige-se ao de Herculano, com a intenção de saber se pode envolvê-lo num plano de conspiração. Dado que golpe de Estado se monta, precisa contar com tipos insuspeitos, capazes de aglutinar forças rebeldes. O Capitão lhe parece ser a pessoa ideal, na seara da Escola. Comprovada pelo caráter retíssimo e pelas virtudes acadêmicas, sua palavra tem peso entre os estudantes, enquanto sua influência não causa preocupação às altas patentes, em razão do seu histórico de respeito à hierarquia. Mas essa particularidade não engana Agostinho. Ao contrário. Dá-lhe ideias do que se esconde naquele caráter severo e exigente que jamais granjeou a indiferença dos republicanos mais aguerridos que passaram pela Escola.
Abre a porta do gabinete, após uma batida rápida, e entra sem cerimônia.
-- Tem um minuto, Capitão?
-- Até mais de um, Major, responde Herculano tomado pela suspeita do motivo da visita e levantando-se para bater continência.
-- À vontade. Posso me sentar?
-- Por favor, diz Herculano, indicando-lhe a cadeira da escrivaninha reservada aos visitantes. Do outro lado da mesa, volta a se sentar. -- A que devo a honra?
-- À Pátria, porém numa conversa não oficial entre velhos companheiros.
-- Pois não.
-- No espírito proposto e sem delongas, retomo a pergunta que lhe fiz ontem sobre as reformas. Acha que desencadearão insatisfações passíveis de depor o governo?
A pergunta apraz Herculano, mas nada em sua feição revela o prazer de confirmar sua suspeita de ser alvo de uma consulta conspiratória, nem mesmo a sua entonação, reflexiva, o denuncia. 
-- Projeto grande, Major.
-- Elucubrações, Capitão, de um obstinado patriota a outro, retruca Agostinho com ar de ressalva humorada. -- O que me diz? 
Herculano não se deixa seduzir pela cumplicidade aventada e mantém a reserva.
-- É preciso haver condições concretas de vitória, não acha?  
-- Tanto acho que estou aqui de peito aberto e disposto a ouvir a sua opinião a respeito, a menos que não se sinta confortável em especular sobre o assunto.  
-- Desconforto algum. Analisar cenários faz parte do ofício militar e sabemos que despotismos, arbitrariedades, criam potencial para um golpe. Resta saber se essa oportunidade será bem aproveitada. Outras não o foram, no passado.   
-- Fomos vencidos pelas oligarquias e também por falta de coesão.
-- O que pode se repetir se não houver o adobo das ideias para criar tal coesão.
-- Restaurar a República não lhe parece uma liga consistente? 
-- Parece, porém só a adesão aos meios da restauração pode sustentar no tempo a vitória. Aliás, recorda-se do que propunha em seus discursos em dias da monarquia?
-- De fazer a moral prevalecer no governo?
-- Exato. E mais especificamente de ser preciso uma força de intensidade tal capaz de desviar para o bem o curso maléfico das coisas e dos homens.
-- Acha que teremos força suficiente para fazer esse desvio?
-- Sim, se estiver aglutinada na ideia de fechar o Congresso.
A proposta não atrai o Major e suscita acautelamento.
-- Receio resistências se seguirmos ao pé da letra a doutrina de Comte.
-- Então não teremos as bases da vitória. Não se disciplina afeições egoístas com o parlamento em funcionamento. Pelas brechas do sistema, o mal se propaga.
Agostinho gosta de ouvir o plural não usado até então por Herculano. Animado por esse sinal de inclusão no movimento, recorre à experiência do governo positivista, implantado por Julio de Castilho com adaptações, para dissuadi-lo do rigor doutrinário.
-- O Congresso é um sistema vulnerável, porém o do Rio Grande do Sul mostra que é possível funcionar a contento se houver mecanismos eficientes.
-- A Pátria espera um progresso maior, mais célere e sem o custo estéril de manter um órgão malsão apenas para aquietar os oportunistas e os utópicos.
-- Contudo, a representação política tornou-se sinônimo de democracia.
-- Numa obra da má-fé e causa do atraso do método de governar. Está na hora de explicar que o progresso e o bem comum não são matérias de crenças nem de barganhas, mas, sim, de ciências aplicadas. Urge edificar o Estado científico sem penalizar mais gerações.
-- Não é temerário querer realizar de uma vez uma tarefa hercúlea de longo prazo?  
-- Não. Fazer o malfeito requer a mesma dificuldade que fazer o bem-feito.
-- Porém ir contra a maré não ajudará implantar a ciência de governar.
-- Esclarecimentos, sim. Tão insano quanto assinar em branco uma procuração para um advogado é entregar aos políticos a deliberação sobre as nossas vidas.
-- Sabe bem o quanto professei a doutrina do mestre. Mas, a duras penas, aprendi que a política tem a sua razão de ser.
-- Porém exercida pelos cidadãos e fora do Estado. Todo cidadão tem de fiscalizar e aconselhar o governo. Mais que dever ou direito, isso é garantia contra o nefasto.
-- As pessoas não têm tempo e é inviável realizar plebiscitos a toda hora, ainda mais num país grande como o nosso e de iletrados, sem preparo para opinar.
-- É. Trata-se de uma empreitada complexa e de risco. Porém, se ela intimida, é melhor deixar o governo que aí está, pois uma opressão igual ou maior será instaurada.
-- Essa é a sua condição para se unir as reflexões?
-- Se fala em reflexões, permita-me amadurecer a questão à luz da sua opinião.
-- Claro, até porque tudo não passa de pensamentos ditos em voz alta.
-- Como os meus.
-- Voltamos a nos falar em outra oportunidade.
Herculano acompanha Agostinho até a porta e a fecha. Enquanto um caminha pelo corredor incerto com os resultados do encontro, o outro permanece parado a recapitular suas opiniões incisivas. Precisava ser e contornei bem o impasse. Todavia o receio de ter se inviabilizado no processa o pressiona. Com a expressão carregada e o olhar fito, assevera consigo mesmo: não ficarei de fora dessa vez. Irei restaurar a República.  

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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