quinta-feira, 23 de abril de 2015

Quarenta e Três

DO POLVO


Silêncio na biblioteca do solar.  À escrivaninha, Theodoro anota providências que terá de tomar durante a ausência do pai na cidade. Em véspera de embarcar para o exterior com a esposa, Honório Augusto está de pé, perto da janela. Reservara o final do despacho familiar para tratar de temas delicados e introduz o primeiro da sua lista.
-- O comendador me procurou bastante aflito. O que se passa?
-- Não posso atendê-lo a toda hora e ele não aceita que estou de mãos atadas.
-- Está mesmo?
-- Não tenho amparo legal nem a tal Sinhá quer vender o imóvel. 
-- Com tantas leis novas, deve haver uma para pressioná-la a mudar de ideia.
-- Quer que eu gaste munição com bobagem?
Honório Augusto se vira para Theodoro e responde em voz firme.
-- Bobagem, não. Temos interesse na valorização da região e o comendador perdeu renda com a desapropriação dos cortiços. Não esquecerá se o ajudarmos.
-- Verei o que posso fazer e agradeço se não me envolver mais em coisa miúda.
-- Deixe de ser insolente e ingênuo. O comendador vota e faz voto.
-- Que tal um cálice de licor?
-- Aceito.
Theodoro caminha até uma mesinha com um riso de canto de boca. Ali escolhe a bebida e a serve para os dois. Já o pai se senta e lhe pergunta sobre uma operação emperrada que tem tudo para contrariar amigos próximos:
-- Como anda o arrendamento do porto, alguma novidade?
-- Nenhuma. Tudo indica que o acordo será empurrado para o próximo governo.
-- Faz sentido. Tem de haver uma divisão mais equânime das oportunidades entre os estabelecidos, sobretudo, os nacionais.
-- Dinheiro não tem pátria e não lucraremos nada se ficarmos a defender a colcha de retalhos das concessões, diz e lhe entrega o cálice de bebida.
-- São os da terra que levarão você a presidência, retruca Honório Augusto e ergue a taça numa menção de brinde.
Theodoro responde ao gesto e se senta diante do pai, que prossegue.
-- Pelo menos na concessão da eletricidade deveria tentar integrar um dos nossos.
-- Sem condições – e por deliberação do grupo.
-- As animosidades se formam e tendem a ficar maior. Se alguém descobre que você está metido nisso, não irá lhe poupar.    
-- Estou tomando os meus cuidados e haverá contrapartidas para os perdedores.
-- Antes assim. Telegrafe-me tão logo feche a participação.
-- Pode deixar.
-- Depois, quando eu voltar, aparo possíveis arestas e a gente começa a tratar da sua candidatura ao governo do Rio.
-- A partilha de quem ficará com o quê nas concessões federais será decidida de agora em diante. Melhor eu ficar perto do próximo presidente.
-- Não temos como te emplacar de novo na secretaria e precisa atuar num posto efetivamente executivo. Vamos mirar a pasta de viação e obras públicas. O que acha?
-- Ganho visibilidade maior e perco liberdade para articular.
-- Nem tanto. Ontem mesmo, no Jóquei, Marcondes só lhe teceu elogios e a mesa inteira concordou. Tem um exército para articular em seu lugar. Basta estalar os dedos.
-- O que mais conversaram?
-- Trivialidades no geral, mas a sós, Marcondes disse que conta com você para achar um bom diretor para a empresa de asfalto. Quem pensa em indicar?
-- Algum engenheiro com um bom trânsito no governo.
-- Escolha bem. Anda a favorecer gente esforçada, mas sem berço. Isso não é bom.
-- Porém necessário. Precisamos de técnicos e de dar ar republicano ao governo.
Honório Augusto faz um esgar de desdém. 
-- Modernidades a troca de nada. Sem laços de sangue e compadrio não há poder.
-- Estou a cuidar dessa segunda parte.
-- Quem sabe convenço seu irmão a voltar. São tantas as perspectivas.
-- Bota perspectiva nisso. Além da usina, o grupo quer construir uma siderúrgica.
-- Onde?
-- Na Ilha do Governador.
-- Temos aquele terreno do seu tio.
-- Sim e o plano é perfeito: extrai o minério das Gerais, despacha a carga pelo trem, processa o produto na Ilha e o exporta pelo porto. Tem ideia do que é isso?
-- Um polvo de tentáculos de ouro.
-- A enlaçar também a eletricidade e a telefonia.
-- Não desconsiderei esse adicional. É um plano fabuloso. Nunca vi nada igual.
-- Tem mais. Podemos montar a mesma sequencia para a borracha. A estrada de ferro no Acre sairá. É ponto acordado com a Bolívia. Há o porto de Manaus prontinho, a nossa espera. Só falta instalar a processadora na Amazônia para completar a corrente de lucros. O que me diz?
-- Não há porque Hélio Augusto cuidar de oliveiras em Portugal.
-- É o que digo há tempos: o lugar dele é do nosso lado, não com o sogro.
-- Quanto a esses outros negócios, irá propor também participação acionária?
-- Posso ser remunerado de modo diferente?
-- De modo algum. Não é contínuo para receber gorjeta por ajudas valiosas.
-- Ajuda não. Trabalho duro e caro. Não chegamos até aqui num passe de mágica.
-- Não mesmo. Irei falar com seu irmão. É preciso haver um equilíbrio entre as fortunas de vocês. Assim a família tem base sólida para ficar sempre unida.
-- Não faço objeção alguma e a hora de ocupar o espaço é agora. Mais uma dose?
-- Obrigado. Já bebi o suficiente. 
Theodoro se dirige à mesa de bebidas e o pai aborda o último tema pendente.
-- Mudando de assunto, como pôde insistir na contratação de Valentin?
-- Tenho motivos e não há mais o que dizer se ele já está no solar.
-- Alto lá. Ainda sou seu pai e não posso ser pego de surpresa como fui hoje aqui.
-- Evitei falar para não lhe incomodar antes da hora.
-- Hun! Às vezes você é de uma imprudência que não faz jus a sua inteligência.
-- Só Valentin possui as aptidões para o serviço que eu quero.
-- Rigor tolo. A cidade possui bons fotógrafos com raízes na França.
-- Porém é bom o serviço ter uma assinatura familiar.
-- Sim, se não houvesse o risco das excentricidades de Valentin.
-- Não se preocupe, terminado o trabalho, ele partirá.
-- Espero. Agora vamos voltar para a sala. Cordialidade é sempre bom até com hóspedes indesejáveis.
Theodoro toma a bebida de um gole só e segue Honório Augusto.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário