DO POLVO
Silêncio na
biblioteca do solar. À escrivaninha,
Theodoro anota providências que terá de tomar durante a ausência do pai na
cidade. Em véspera de embarcar para o exterior com a esposa, Honório Augusto está
de pé, perto da janela. Reservara o final do despacho familiar para tratar de
temas delicados e introduz o primeiro da sua lista.
-- O comendador
me procurou bastante aflito. O que se passa?
-- Não posso
atendê-lo a toda hora e ele não aceita que estou de mãos atadas.
-- Está mesmo?
-- Não tenho
amparo legal nem a tal Sinhá quer vender o imóvel.
-- Com tantas
leis novas, deve haver uma para pressioná-la a mudar de ideia.
-- Quer que eu
gaste munição com bobagem?
Honório Augusto
se vira para Theodoro e responde em voz firme.
-- Bobagem, não.
Temos interesse na valorização da região e o comendador perdeu renda com a
desapropriação dos cortiços. Não esquecerá se o ajudarmos.
-- Verei o que
posso fazer e agradeço se não me envolver mais em coisa miúda.
-- Deixe de ser
insolente e ingênuo. O comendador vota e faz voto.
-- Que tal um
cálice de licor?
-- Aceito.
Theodoro caminha
até uma mesinha com um riso de canto de boca. Ali escolhe a bebida e a serve
para os dois. Já o pai se senta e lhe pergunta sobre uma operação emperrada que
tem tudo para contrariar amigos próximos:
-- Como anda o arrendamento
do porto, alguma novidade?
-- Nenhuma. Tudo
indica que o acordo será empurrado para o próximo governo.
-- Faz sentido.
Tem de haver uma divisão mais equânime das oportunidades entre os
estabelecidos, sobretudo, os nacionais.
-- Dinheiro não
tem pátria e não lucraremos nada se ficarmos a defender a colcha de retalhos
das concessões, diz e lhe entrega o cálice de bebida.
-- São os da
terra que levarão você a presidência, retruca Honório Augusto e ergue a taça
numa menção de brinde.
Theodoro responde
ao gesto e se senta diante do pai, que prossegue.
-- Pelo menos na
concessão da eletricidade deveria tentar integrar um dos nossos.
-- Sem condições
– e por deliberação do grupo.
-- As
animosidades se formam e tendem a ficar maior. Se alguém descobre que você está
metido nisso, não irá lhe poupar.
-- Estou tomando
os meus cuidados e haverá contrapartidas para os perdedores.
-- Antes assim.
Telegrafe-me tão logo feche a participação.
-- Pode deixar.
-- Depois, quando
eu voltar, aparo possíveis arestas e a gente começa a tratar da sua candidatura ao governo do Rio.
-- A partilha de
quem ficará com o quê nas concessões federais será decidida de agora em diante.
Melhor eu ficar perto do próximo presidente.
-- Não temos como
te emplacar de novo na secretaria e precisa atuar num posto efetivamente
executivo. Vamos mirar a pasta de viação e obras públicas. O que acha?
-- Ganho visibilidade
maior e perco liberdade para articular.
-- Nem tanto.
Ontem mesmo, no Jóquei, Marcondes só lhe teceu elogios e a mesa inteira
concordou. Tem um exército para articular em seu lugar. Basta estalar os dedos.
-- O que mais
conversaram?
-- Trivialidades
no geral, mas a sós, Marcondes disse que conta com você para achar um bom
diretor para a empresa de asfalto. Quem pensa em indicar?
-- Algum
engenheiro com um bom trânsito no governo.
-- Escolha bem. Anda a favorecer
gente esforçada, mas sem berço. Isso não é bom.
-- Porém
necessário. Precisamos de técnicos e de dar ar republicano ao governo.
Honório Augusto
faz um esgar de desdém.
-- Modernidades a
troca de nada. Sem laços de sangue e compadrio não há poder.
-- Estou a cuidar
dessa segunda parte.
-- Quem sabe
convenço seu irmão a voltar. São tantas as perspectivas.
-- Bota
perspectiva nisso. Além da usina, o grupo quer construir uma siderúrgica.
-- Onde?
-- Na Ilha do
Governador.
-- Temos aquele
terreno do seu tio.
-- Sim e o plano
é perfeito: extrai o minério das Gerais, despacha a carga pelo trem, processa o
produto na Ilha e o exporta pelo porto. Tem ideia do que é isso?
-- Um polvo de
tentáculos de ouro.
-- A enlaçar também
a eletricidade e a telefonia.
-- Não
desconsiderei esse adicional. É um plano fabuloso. Nunca vi nada igual.
-- Tem mais.
Podemos montar a mesma sequencia para a borracha. A estrada de ferro no Acre sairá.
É ponto acordado com a Bolívia. Há o porto de Manaus prontinho, a nossa espera.
Só falta instalar a processadora na Amazônia para completar a corrente de
lucros. O que me diz?
-- Não há porque
Hélio Augusto cuidar de oliveiras em Portugal.
-- É o que digo
há tempos: o lugar dele é do nosso lado, não com o sogro.
-- Quanto a esses
outros negócios, irá propor também participação acionária?
-- Posso ser
remunerado de modo diferente?
-- De modo algum.
Não é contínuo para receber gorjeta por ajudas valiosas.
-- Ajuda não.
Trabalho duro e caro. Não chegamos até aqui num passe de mágica.
-- Não mesmo.
Irei falar com seu irmão. É preciso haver um equilíbrio entre as fortunas de
vocês. Assim a família tem base sólida para ficar sempre unida.
-- Não faço
objeção alguma e a hora de ocupar o espaço é agora. Mais uma dose?
-- Obrigado. Já
bebi o suficiente.
Theodoro se
dirige à mesa de bebidas e o pai aborda o último tema pendente.
-- Mudando de
assunto, como pôde insistir na contratação de Valentin?
-- Tenho motivos
e não há mais o que dizer se ele já está no solar.
-- Alto lá. Ainda
sou seu pai e não posso ser pego de surpresa como fui hoje aqui.
-- Evitei falar
para não lhe incomodar antes da hora.
-- Hun! Às vezes
você é de uma imprudência que não faz jus a sua inteligência.
-- Só Valentin
possui as aptidões para o serviço que eu quero.
-- Rigor tolo. A
cidade possui bons fotógrafos com raízes na França.
-- Porém é bom o
serviço ter uma assinatura familiar.
-- Sim, se não
houvesse o risco das excentricidades de Valentin.
-- Não se preocupe,
terminado o trabalho, ele partirá.
-- Espero. Agora
vamos voltar para a sala. Cordialidade é sempre bom até com hóspedes
indesejáveis.
Theodoro toma a
bebida de um gole só e segue Honório Augusto.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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