sábado, 31 de janeiro de 2015

Capítulo Cinquenta e Cinco

DO INFORTÚNIO ALHEIO


Numa luxuosa e espelhada confeitaria, descortina-se para Catarina a desgraça de Carlota Abreu Vaz, uma das irmãs da Ordem da Estrela.
-- O magistrado possui uma teúda e manteúda.
A revelação aperta a dor calada no peito de Catarina.
-- Coitada. Imagino como deve estar sofrendo.
-- Destruída pela mais apática melancolia. Só reage com cálices de Porto.
-- Quem te falou?
-- Eudóxia e está possessa. Contou que o comércio do marido sofre com essa escandalosa invasão.
-- Invasão?
-- Das desclassificadas. Estão a fazer o mais desvelado trottoir nas ruas.
-- Não me diga?!
-- Na Sete de Setembro, sobem e descem até em plena luz do dia, abanando o rosto cheio de pintura com leques de elevado preços. Não há casa comercial que resista a tão dissoluta companhia.
-- Foi assim que o magistrado conheceu a pessoa?
-- Em lugar pior. No bordel da francesa, a tal Ninon de não sei o quê. Já ouviu falar da peçonhenta?
-- Vagamente.
-- Dizem que a devassada se veste com um luxo só.
-- Carlota descobriu de repente?
-- Não, aos poucos, por causa das constantes ausências noturnas do magistrado, mas há muito que dormem em quartos separados.
-- Ó dó!
-- Pois então. Carlota recolheu-se no silêncio, achando que essas ausências fossem apenas uma necessidade passageira, coisa de homem, sabe como é?
-- Sei.
-- Qual o quê! A dissoluta enlouqueceu o magistrado. E o despropério alcançou as alturas. Parece que montou casa para a perdida ou a botou num hotel.
-- Ah, não!
-- Quem poderia imaginar uma coisa dessas, não é? O magistrado sempre foi tão atencioso com Carlota.
-- Mas ela precisa lutar.
-- E não lutou? Chorou, descabelou, arrufou... O que mais pode fazer senão padecer com dignidade?
        Catarina não sabe responder a questão, pelo menos nesse momento, mas acha que deve tirar partido do infortúnio alheio para resolver o inconfessável que ameaça o seu casamento.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Cinquenta e Quatro

NA PERFUMARIA


Na perfumaria, o clima é de impasse. Catarina resiste a acreditar que Pierre Reverbel não esteja na loja. Tilinta o sino da porta da rua e uma jovem senhora entra.
-- Catarina!
-- Amelinha, que surpresa!
-- Como vai, minha querida?
-- Bem e você?
-- Nem te conto! Tem tempo para tomar um lanche?
-- Claro.
-- Serei rápida, só vim pegar uma encomenda, e você?
-- Agora a sua espera.
Amelinha dirige-se ao atendente que já está de posse de um embrulho. Com um sorriso atencioso, Adamastor faz a entrega e a cliente se dirige à amiga.
-- Vamos?
-- Sim, responde Catarina e se vira para o atendente: por favor, diga ao senhor Reverbel que espero notícias da minha encomenda e a devolução da amostra.
-- Pois não, madame.
-- Passar bem.
As duas partem e Adamastor apressa-se em transmitir o recado para o patrão. Escondido no escritório, Reverbel está nervoso em ter de se acuar no seu domínio e frustrado de não poder se valer da intermediação de Catarina para obter um ponto na futura Avenida Central. No entanto, teme indispor-se com forças poderosas, caso revele sua suposição acerca da dona da fragrância misteriosa. Pensou em avisar Theodoro da desconfiança da mulher e desistiu da ideia com medo de ser mal interpretado, como se quisesse gerar gratidão e tirar vantagem pessoal do fato. Ante a esse cenário, dar uma canseira na esposa do secretário de governo lhe pareceu ser o menor dos males.

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Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Cinquenta e Três

EM MANAUS


16.6.1904
Banhada pelo rio Negro, Manaus é ondulada por pequenas elevações. O centro foi reurbanizado recentemente. Possui praças ajardinadas, passeios largos, sólidas construções e majestosos palacetes. O luxo convive com a selva próxima e abastados velejam nas águas do rio. A população está na casa de 50 mil habitantes e os traços indígenas são facilmente identificados. Diversas linhas de navegação ligam a cidade aos Estados Unidos e à Europa. Transportam regularmente cargas e pessoas envolvidas com o comércio dos produtos locais ou dos seus países. São alemãs as duas principais empresas que comercializam a goma da seringa, chamada de “ouro negro” e responsável em grande parte pelas fortunas existentes em Manaus.
A atmosfera é úmida e quente. Após as pancadas de chuva, o vapor eleva-se às alturas. A noite traz um pouco de alívio para o ar abafado do dia. Vivo ensopado de suor. As águas são um sedutor convite para um mergulho totalmente nu, como alguns meninos fazem por aqui. Contenho esse meu desejo.
Logo que cheguei aqui, procurei na repartição o Diretor Geral dos Índios, mas o encontrei somente na sua residência. “É melhor para trabalhar”, disse-me esta espécie humana hábil em sobreviver no seu meio, com o soldo mensal pago pelo Estado e ocupado com o que lhe apetece a alma: orquídeas. Sobre os índios, pouco falou. Disse que posso encontrar os assimilados pelas ruas ou no porto de Manaus. Já os selvagens só nos rincões das matas ou nas cabeceiras dos rios: “os seringueiros espantam as pobres almas. E elas também preferem a liberdade do homem à do cidadão”, observou.
Depois de tão rasa explicação, andei pela cidade. Em frente ao Palácio do Governo, descobri um estúdio fotográfico. Fui atendido pelo dono, George Hübner, alemão radicado em Manaus. Já participou de diversas expedições pela Amazônia como fotógrafo. Para minha surpresa, é amigo de Grünberg e do seu assistente, Heinrich Schmidt, outro integrante da colônia alemã da cidade. Deu-me notícias dos dois que estão no rio Aiary. Ao contrário do Diretor Geral, sugeriu algumas rotas para minha expedição ao longo do rio Negro. Decidi ir ao encontro do etnólogo.
Ao sair do estúdio, fui comprar passagem para seguir viagem e descobri que vapor para o rio Negro só daqui a duas semanas.  A baixa atividade econômica na região reduz as ofertas das linhas de navegação para lá. Sem ânimo para me aventurar sozinho, fico alguns dias mais em Manaus.
De noite passeei pela Avenida Eduardo Ribeiro. Bela e larga, acolhe cavalheiros de todas as idades reunidos ao redor de mesas dispostas na calçada. Bebem, discutem política, fecham negócios, divertem-se com jogos diversos, além de se entreterem com a visão das elegantes damas de fino trato e de trato fino que passeiam por ali.
Conversei com um latifundiário. Conhece Cândido Batista. Chamou-o de filho da terra e defensor intrépido do seu seringal. Junto com ele, já botou pra correr bolivianos e peruanos que se aventuraram na região para explorar o caucho. Espera que as negociações do governo com a Bolívia e o Peru ponham fim nessas invasões. Caso contrário, mais sangue correrá nas matas.
Para o meu interlocutor os nativos são como “galo de campo, por mais milho que se dê a eles, preferem as dificuldades da capoeira aos nossos costumes”. Também são temperamentais. Basta o patrão ralhar para fazer o serviço certo ou que desconfie de um dito ou de um lugar, para o nativo desaparecer. “Pra segurar o galo, só com vigia e pagamento depois da tarefa feita – e olhe lá. São ardilosos. Gostam do ócio”.
O sistema de endividamento impera na produção extrativa da Amazônia. O trabalhador indígena e também os de fora, geralmente do nordeste do país, compram a crédito mantimentos e instrumentos no barracão do dono das terras para quem trabalham. Na época do acerto, o valor da dívida é sempre superior ao montante recebido pela jornada do trabalho. O resto a pagar de um mês soma-se ao do outro mês e assim sucessivamente as contas nunca são quitadas. É caro ser pobre.
O latifundiário não acha o sistema lucrativo. Alega que, na ponta do lápis, somadas perdas e gastos, até para capturar devedor fujão, as despesas do barracão ficam acima do valor das receitas. Mas não consegue enxergar outro sistema de trabalho. Com ouvido de mercador, relaciono-me em terras alheias.
Mas nem tudo tem sido introspecção aqui, em Manaus, com a sua vida noturna intensa. Há sarau às quintas-feiras, na Praça da República, às sextas, nos jardins do Palácio do Governo, e aos sábados, em frente à igreja da Matriz. Para os apreciadores de operetas ou comédias o Teatro do Amazonas, entre outros, oferece repertório variado e regular. Há também o Teatro Varieté, onde o espetáculo não para nunca. De dia ou de noite, cantoras e dançarinas francesas iluminam o palco e entretêm os cavalheiros.
Outra opção são os salões de dança. Estive no El Dorado, onde se pode bailar com belas manauaras. Peles acobreadas e olhos fogosos reluzem, em corpos com molejos indeléveis, quer na pista de dança ou na rede. Reanimam sujeitos combalidos, dão ímpeto à letargia e abrandam dores. Para completar o efeito desse bálsamo, tomei banho em um igarapé de águas frias e compreendi expressões usadas pelos naturalistas para descrever Manaus. Finalmente senti o delicioso clima mencionado por Wallace ou a gloriosa temperatura registrada por Bates e mirei o céu de opalas descrito por Mornay. Lembrei-me com saudades de uma estrela do Rio de Janeiro. Será que pensa em mim? Como tem feito para seguir com a sua vida?
  
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Cinquenta e Dois

MEU RARO


Desde que chegou da fazenda, Catarina tenta envolver Theodoro em suas carícias e, mais uma vez, é paternalmente rejeitada.
-- Fique quietinha, fica.
-- Ah, Théo, por quê?
-- É tarde, estou cansado e nada de pôr em risco o bebê. Podemos não ter outro.
Por um instante, a feição de Catarina, infantilmente amuada, permanece estática, com os olhos postos em Theodoro, enquanto a mente atribui a rejeição ao saciamento do marido no corpo da dona do perfume. Com uma frieza indescritível, continua a farsa.
-- É. Fomos muito abençoados. Temos de cuidar de tamanha graça, diz e encerra a questão, jurando em silêncio que aniquilará a rival misteriosa.
Ao longo dos próximos dias, mostra-se compreensível com o retorno atrasado do marido. Toca-lhe sonatas, dirigi-lhe palavras amáveis e o ouve serenamente. Comenta leituras de jornal que julga ser do seu interesse, conta-lhe curiosidades sobre a confecção do enxoval do bebê, pede sua opinião sobre a decoração do quarto do rebento e, há pouco, aconselhou-se com ele sobre como responder à participação do nascimento da sobrinha em Portugal. Mais uma vez, acatou sua orientação de adiar o comunicado da gestação para quando tiver passado os meses mais suscetíveis de perda. Com tais atitudes, exercita a força do gênio que diz ter se apoderado de si e espera o retorno à loja do perfumista, certa de que Reverbel lhe revelará a identidade da responsável pela sua adversidade conjugal. Aí, esclarecida por tanto, saberá como mover as peças desse jogo para dar o cheque mate final e tirar de vez a outra da vida do seu marido e da sua cama.
Theodoro surge vindo do quarto de vestir.
-- Não achei aquele meu casaco de casimira inglesa.
-- Qual, meu querido?
-- Aquele cinza escuro.
-- O que usou na véspera que cheguei?
-- Não me lembro.
-- Se for, mandei para a lavanderia em Paris.
-- Catarina, mas só o vesti uma vez!
-- Não me pareceu, desculpe.
-- Mais atenção.
-- Terei, contudo devo admitir: fica tão bem com este que é até providencial não ter o outro para usar.
Theodoro olha-se no espelho, apruma o corpo.
-- É. Também gosto. Bom, vou tomar café. Quer que eu mande servi-la aqui?
-- Não. Vou com você, meu raro.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Capítulo Cinquenta e Um

AO LONGO DO AMAZONAS


26.5.1904
Embarquei hoje no Lydia com destino a Manaus. O vapor é pequeno e somente o pavimento superior possui cabines; o inferior é um amplo espaço de convivência que se transforma em dormitório à noite quando redes de dormir são abertas. 
Escaldado com a mareação a bordo do Alagoas, suportei investidas de piuns e me mantive durante o dia no convés. A paisagem se repete nas inúmeras voltas do rio, em uma apreciação adequada aos botânicos. Sabem enxergar diferenças nas semelhanças e se encantar continuamente. Fotografei algumas paisagens que penso ser a expressão do que os meus editores querem ver. É uma profusão de folhagens das quais reconheço as palmeiras com seus caules esguios e majestosos leques. Araras voam em pares e as cores de suas penas brilham sob a incidência dos raios do sol. Às vezes um grupo de martim-pescador sobrevoa as águas. Ouvi estampidos de tiros e fui ver o que era. Um passageiro atirava para espantar uma garça branca à espreita de um peixe. Outro tiro foi dado. Assustada, a ave plainou num voo elegante e pousou mais na frente num galho de árvore perto da água. Bonito de ver, mas um esforço adicional à criatura no seu empenho para viver. Bom para o peixe que se salvou. Estamos na máxima da enchente do rio. E, onde avistamos as margens, são de fato várzeas. As praias submersas ressurgirão nas secas quando serão povoadas por mergulhões, guarás vermelho e outras aves, conforme ouvi no convés. 
Câmera fotográfica sempre desperta curiosidade e incita aproximações. Sem disposição para falar, contornei com sucesso as abordagens sobre os meus objetivos de viagem. Um passageiro de meia idade, olhar firme, corpo pequeno, porém rijo e pele curtida de sol, observou essas tentativas e as minhas monossilábicas respostas. Com os olhos na curva do rio, ele me disse: -- quem anda em terra alheia, pisa o chão devagar. Meneei a cabeça em um sinal de deferência e voltei para a cadeira onde estou com as ideias dele ainda a girar as minhas ideias.

27.5.1904
Ainda avançamos entre as ilhas do Pará. A paisagem em curvas se repete com variações apenas na largura do canal. Neste instante, está estreito. Nas margens, cachoeiras de folhagens derramam-se sobre as águas enquanto troncos e caules disputam as alturas. Os cipós se misturam uns aos outros formando um cabo grosso enrodilhado ou pendido. Trepadeiras sobem as árvores e das copas caem em festões coloridos e compridos, ora em forma de espigas, ora como uma trombeta.  A selva sombreia a água, num dia luminoso.
Em pontos esparsos dessas paragens, há humildes casas de madeira fincadas nas várzeas inundadas. Os moradores são pobres e costumam se apresentar na frente de suas moradas com um olhar quase sempre comprido, enquanto crianças nuas nadam como peixes nas águas próximas. Não os fotografei. Receio que suas adversidades alinhavem raciocínios de uma raça inferior – e não o abandono e a solidão que vejo.

28. 05.1904
Esta manhã Lydia ultrapassou a desembocadura do Xingu e mais um pouco, entramos no colossal rio Amazonas. Em alguns trechos, não se veem as margens, em outros, a terra se mostra como a linha do horizonte e, somente quando o vapor se aproxima de uma margem, a selva se revela fechada por árvores gigantescas.

29.5.1904
O ponto alto da travessia de hoje foi o encontro das águas de cor verde-esmeralda do Tapajós com as barrentas do Amazonas. É uma guerra entre titãs. Por um trecho, ambos os rios mantêm sua coloração. Em uma linha divisória sinuosa, ora um invade o espaço do outro, ora recua, sem que os dois alterem a cor de suas águas, até que se misturam, e o Amazonas segue em triunfo. Na foz do rio Tapajós, ergue-se o povoado de Santarém, polo importante de escoamento da goma das seringueiras. É região também dos Munduruku, índios conhecidos no passado como audaciosos guerreiros e com a tradição de mumificar a cabeça dos inimigos como um talismã para obter a força do seu antigo dono.
De tarde passamos por uma procissão de canoas. Enfeitadas com bandeirolas coloridas, seguiam a canoa principal que levava um santo sobre um aparador ornado com flores. Os fiéis cantavam ao som de flautas e tambor. Lygia apitou três vezes e o cortejo respondeu com efusivos acenos de mãos. O encontro nos alegrou. Dispersamo-nos pelo convés com expressões brilhantes e brilhosas – está quente e úmido.

30. 5.1904
Pela manhã, ultrapassamos Óbidos, município ainda nas águas do Pará e de terras associadas às Amazonas. Esta sociedade de lendárias guerreiras cortava o seio direito para melhor puxar a corda do arco. Se com os dois as mulheres já acertam seus alvos, imagina sem o alegado inconveniente. O alvejado morria de vez. Eu pelo menos ando, alquebrado, mas ando.
De Óbidos em diante, o cenário ribeirinho apresenta variações. Nas margens, sobretudo da esquerda, há campos e distantes montanhas – uma encantadora visão para olhos somente embebidos de águas e matas. Em alguns trechos, surgem sítios com plantações e criação de animais, casas de tijolos e as habituais choupanas de pau a pique cobertas por palhas. Um desses sítios me surpreendeu pela grande quantidade de cabeças de gado, além da imponência da casa principal. Uma bela propriedade em plena selva. Quase sempre, nas ribanceiras, há lenha empilhada para ser vendida. Às vezes, um caboclo, como são chamados os nativos dessas regiões, singra ao nosso lado em sua ubá, uma estreita canoa feita de tronco de árvore.
O baralho é um bom passatempo a bordo. Mas tenho evitado os jogos que me dão desejo de beber. Desde a mareação no Alagoas, estou em abstinência. Domo a vontade com a proposta de somar mais um dia abstêmio ao cumulado. Ultimamente meus objetivos se restringem aos interesses que só dependem de mim para a sua realização.
Outro passatempo a bordo são as conversas. Ouço bastante. Eu e o passageiro de olhar firme e corpo pequeno. Fazemos companhia um sentado ao lado do outro e quase sempre quietos. Às vezes abrimos a guarda, como hoje, quando dedicamos nossa atenção a dois jovens militares, recém-formados em engenharia pela Escola Militar da Praia Vermelha. Em Manaus, descerão o rio Purus a caminho do Acre. Lá integrarão a comissão que organiza esse novo território nacional, com a capital fundada às margens dos rios Iaco e Caeté. O feito, disseram, porá fim aos conflitos armados que ocorrem na região entre os seringalistas brasileiros e os da Bolívia e do Peru, numa pacificação garantida pela demarcação das terras do Acre. Vislumbram nessa demarcação a oportunidade de se coletar dados para a realização de melhorias na navegação local e comentaram sobre a construção de uma estrada de ferro que solucionará o problema das cachoeiras do rio Madeira, um empecilho ao escoamento dos produtos extrativos. Outra façanha é a ligação do Acre a Manaus pelas linhas telegráficas. Em resumo: entusiasticamente apresentaram um plano infalível, no qual a lei, telégrafos e transportes impulsionarão a ação civilizadora pelo território do rio Amazonas. 
Tamanha convicção, ou melhor, tanto desejo de progresso evocou o meu, combalido pelos regeneradores da cidade do Rio. Parabéns e boa sorte, disse-lhes. 
-- Precisarão. Essa é uma tarefa difícil, retrucou o meu companheiro de viagem. 
A resposta iniciou um debate entre eles.
-- Com certeza, domar a selva é um esforço extraordinário, porém possível.
-- A Amazônia é tinhosa. Tem uma ordem diferente.
-- A lei e a ciência dão conta.
-- Tirem a prova com o Purus. Terão muito trabalho por lá.
-- Estamos preparados.
-- As águas também. As terras caídas que o digam.
Os jovens se entreolharam, com reservas zombeteiras.
-- Terras caídas de onde?
-- Das margens dos rios. Águas grandes solapam o entorno. Num piscar de olho, ribanceiras desabam e matas são tragadas. Na seca, o leito do rio está cheio de lomba e de tronco amontoado. O homem só passa com a montaria nas costas.
-- É questão de limpar o leito e desafogar a travessia.
-- Esforço sem fim. Logo mais estará tudo cheio de novo.
-- Podemos corrigir as curvas do rio e remover os entulhos.
-- As águas podem chiar. Coisa da natureza: gosta de dar voltas.
-- A engenharia se entende com esse modo de ser.
-- Sei não. Às vezes nem terra firme escapa da inundação. E tem a mata. Num dia o sujeito abre a picada; no outro, a capoeira toma de assalto. E vem mais ramosa, miúda, enrodilhada, difícil de lidar.
-- O senhor trabalha em quê?
-- Sou sentinela da natureza.
-- Tipo um vigia, capataz?
-- O que achar melhor.
Resposta vaga e pareceres céticos afugentaram os jovens. Após uma breve pausa, meu companheiro de viagem falou:
-- Natureza só tem cara de paisagem. Mas tenta botar cabresto na Amazônia. Verá quem será arreado.
-- Conhece bem a região?
-- Sou nascido, criado e retornado para o Solimões quase na boca do Juruá.
-- E de onde retornou?
-- De um seminário em Belém do Pará. Era para ter sido padre.
-- Posso saber por que decidiu ser sentinela da natureza?
-- Necessidade da vida: ora vigiar a mata e as águas, ora defender a terra da ambição alheia.
-- Muitos ataques?
-- Há bichos e forças de todo jeito.
-- É possível descanso e conforto?
-- De olhos bem abertos. Seja cauteloso naquilo que for fazer por aqui. Aqueles que chegam fortes demais costumam tombar ou sair bem fracos da região.
Venho de uma família para quem o esperado de um homem é um posicionamento claro dos seus princípios, sobretudo, em nome do bem. Crença e natureza acolheram-se mutuamente em mim, como a mão a luva, a ponto de eu ter prazer em ser sincero.  Ingênuo ou delirante, desdenhei de conselhos como o dado pelo meu companheiro de viagem. O silêncio é de ouro e também grilhões da crueldade e do atraso. Contudo alcancei o meu limite. Reconheço minha inaptidão em contribuir para uma vida melhor. Não sou talhado para lidar com ardis tramados com cautela e esperteza exemplares. A miséria me constrange, a má-fé me revolta, a injustiça me desarvora, e o verbo costumava disparar da minha boca. Não mais. Assumi minha incompetência e me rendi aos fatos: na competição pela vida, o bem comum é preterido por várias razões. Minha crença em uma humanidade fraterna e digna não me alimenta mais. Em passos de cágado, nosso processo civilizador avança impulsionado pelo acaso de um emaranhado de ações das quais muitas são míopes, medíocres e perversas. O mal também gera conforto, que todos querem, e a prudência cala. Assim o humano se protege. Curvei-me a essa força e sou mais outro a se calar. Como um caramujo forasteiro, estou determinado a me deslocar sobre o chão alheio de boca fechada e cumprir sem demora minhas obrigações contratuais aqui. Acharei depois um modo de viver mais consistente com a minha condição de inadequado da espécie.
Começa o entardecer. A luminosidade aqui se esvai rapidamente.

Lydia margeia as ilhas com rochedos que encobrem a boca do Rio Madeiras. Ao final da manhã, o Amazonas enfrenta outro titã, o rio Negro. Por algum tempo, as águas duelam com as suas cores, e o Amazonas desvia seu caminho, quando então se torna Solimões. O vapor lança a âncora diante do cais de Manaus. No convés, Valentin se encontra com seu companheiro de viagem.
-- Em terra firme outra vez.
-- Nada é tão firme aqui.
-- Certo. Terras caídas.
-- Cândido Batista, ao seu dispor no Solimões, quase na boca com o Juruá.
-- Valentin Lopes de Santarém, em viagem pela Amazônia.
Apertam as mãos e se separam. Valentin desembarca convencido de que nunca duas pessoas se entenderam tão bem no silêncio. Cândido segue viagem.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Capítulo Cinquenta

DO AROMA FINAL


Catarina se desespera com os indícios da traição do marido. Jamais imaginou que Theodoro lhe fosse infiel. Em meio ao pranto, Pierre Reverbel, perfumista, casado com Clotilde, uma irmã da Ordem da Estrela, lhe vem à mente. No ano passado, convenceu Theodoro a desembaraçar mercadorias na alfândega que Reverbel importara de modo inadequado. Sem essa intervenção, os prejuízos teriam sido enormes. Decide entrar em ação e ter retribuída a sua prestimosa ajuda. Com o casaco dentro de uma sacola, tempo depois já está a manusear pequenos frascos de essências, sob o olhar do perfumista, na loja decorada com elegância. Frascos de todos os tamanhos e formas se exibem nas prateleiras da grande estante, atrás de um balcão.
Catarina aspira uma essência – e Reverbel espicha o corpo como se puxado pelo nariz. Mas ela balança negativamente a cabeça e o tronco dele desmonta-se com essa outra fracassada tentativa de reconhecer um aroma misterioso. Não tem mais o que lhe oferecer, entre as essências amadeiradas, orientais, frutadas e chipre-florais que possui.
-- Madame, temo pela sua fadiga olfativa. Já inspirou muitos aromas.
Nem o estômago embrulhado a faz desistir da investigação.
-- Por favor, dê-me mais grãos de café.
Prontamente uma caixinha de prata lhe é estendida. Inala o conteúdo e pede também um minúsculo pote, de onde pinça uma pitada de sal marinho que coloca na língua. Respira. Olha para os frascos.
-- Estou em dúvida.
-- Com justa razão. Um perfume é a combinação de muitas essências.
-- Há um espaço reservado onde possamos conversar?
Embora estranhe a pergunta, Reverbel atende à solicitação. Puxa a cadeira para sua cliente se levantar com a sacola que o intriga e a conduz para os fundos da loja. Entram num gabinete, com prateleiras ocupadas por mais potes e frascos. Sentam-se. Da sacola, Catarina retira o casaco de Theodoro e o estende para o perfumista.
-- Reconhece essa fragrância?
Reverbel imagina de quem seja o dono da roupa e intui os motivos ocultos da investigação aromática.
-- Madame!
-- Preciso saber que perfume é esse e quem o usa em nossa cidade.
-- Não serei capaz de tanto, responde receoso de se meter num entrevero conjugal.
-- Estou certa de que é capaz e que terei a sua eterna discrição.
O perfumista entende a pressão. Só essa que me faltava! Inspira a peça e expira para o lado. Reconhece um floral pesado, como nota de fundo. Supõe outras essências que poderiam ter participado da construção desse aroma. O que farei?
-- Há quanto tempo essa memória está no casaco?
-- Menos de um dia.
-- Pois então, as notas de saída e do coração já evaporaram. Volúveis e não menos essenciais compõem o aroma final. Com essa débil lembrança, nem um mago poderia dizer que perfume é esse e quem o possui entre suas clientes.
-- Mas não reconhece nada?
-- Um ponto de partida, um acorde inicial, nada mais que hipóteses.
-- Talvez de alguma fórmula que o senhor tenha feito para uma cliente loira?
A cor do cabelo fortalece a suspeita de um nome irrevelável.
-- Não saberia dizer. Ademais o perfume pode ter sido comprado na Europa!
-- Como se desprestigia o produto nacional. Mas com certeza isso terá um fim com a reforma da nossa querida cidade. Por falar no futuro, já pensou em ampliar o negócio para a nova Avenida Central?
-- Tenho planos, mas nada conclusivos. Os preços dos terrenos estão proibitivos.
-- Talvez Theodoro saiba de uma oportunidade. Posso sondar, se tiver interesse.
-- Se puder averiguar, serei muito grato.
-- Eu também ao senhor. Quando pode me dar um parecer sobre essa fragrância?
-- Madame, temo desapontá-la.
-- Não se preocupe em ser preciso. Satisfaço-me com hipóteses. Deixarei o casaco com o senhor, diz e se levanta.
-- Acompanho a senhora.
-- Penso em não comentar nada com a nossa querida Clotilde, estarei certa?
-- Separo negócios dos assuntos familiares.
-- Imaginei que sim. Volto na semana que vem. E espero trocar com o senhor boas informações de nosso interesse.
Reverbel declina levemente a cabeça pensando em como se livrar da enrascada  chamada Catarina.

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Capítulo Quarenta e Nove

NÃO. NÃO PODE SER!


Eis-me de volta, querido e saudoso amigo. E grávida! Não é maravilhoso? O sonho é realidade. A princípio tudo foi difícil com os doces suplícios da acomodação desse estado vivificante em minha natureza. Mas, para minha habitual alegria, depois do terceiro mês, notei a gradativa redução do mal-estar e das ocasionais melancolias. Com grande alívio, percebo a cada dia mais o retorno da expressão mais pura do meu ser – e de modo ampliado. Sinto-me inundada por uma descomunal sensação de poder. Como um gênio que tudo abraça, essa sensação tomou posse de mim. Sinto-me capaz de fazer com glorioso sucesso qualquer coisa que me dispuser a fazer. Finalmente posso exultar minha felicidade. Consegui. Serei mãe e Theo, pai.
Sobre meu querido, adorado e raro marido, nem te conto qual foi sua reação quando soube da notícia. Exultou de alegria, mais parecia uma criança. Depois dizem que nós mulheres somos sensíveis. Pois sim! Theo não sabe que cheguei. Quis lhe fazer uma surpresa. Há tanto me espera. Mandei preparar um jantar apetitoso, irei me banhar e adocicar a minha pele. Sinto muitas saudades do meu viril marido. Confesso que estou ligeiramente nervosa, sem saber como tudo será nesse meu novo estado: meus seios estão maiores e, pouco abaixo do meu estômago, há uma pequena e arredondada protuberância. Mas confio na sabedoria de Theo. Saberá me conduzir pelos caminhos do seu dulcíssimo amor. Ah, como estou feliz. Até.
Bela, cheirosa e cheia de amor, Catarina espera Theodoro. Decepcionada janta sozinha à mesa organizada para celebrar seu retorno. Depois se senta ao piano. Abre a tampa, retira a flanela: a carta de Valentin plaina no ar até pousar no chão. O coração bate forte a suspeita de quem seja o autor da proeza. Ergue a correspondência e a lê. Emociona-se. Oh, meu querido! Guardo mais que o selo do seu amor... Catarina retifica seus pensamentos. Guardo a sua amizade. Este filho é de Theo. Começa a tocar.  Vencida pelo sono, recolhe-se. Quando acorda, é dia claro e Theodoro a contempla de pé e vestido. Levanta-se num pulo e se aninha em seus braços. 
-- Que bom te ver!
-- Que imprudência! Como seus pais deixaram que viajasse sozinha?
-- Esperei tanto por você ontem.
-- Por que não me avisou que vinha?
-- Queria lhe fazer uma surpresa. Onde estava?
-- Em uma reunião extraordinária. E o bebê como vai?
-- Estamos bem. Acabou o mal-estar.
-- Recompensarei cada dissabor sofrido.
-- Então me recompense. Estou saudosa, diz e o puxa para a cama.
-- Não! Tenho compromissos. Vamos tomar café. Estou faminto e atrasado.
Catarina estranha a recusa do marido, mas nada em sua feição a denuncia. Hora depois, no jardim, acena para Theodoro, que parte para o trabalho no coche conduzido por Abdias. Vira-se e avista a casa de hóspedes com as janelas fechadas. Considera a possibilidade de mandar demolir a construção e fazer no local uma fonte. Mas a ideia a remete às águas que ninam insônias... Não. Nada de criar mais lembranças de Valentin. 
Entra com os pensamentos nas atividades que tem pela frente: ir se consultar com Dr. Eugênio, visitar Dra. Thereza, contratar costureiras para a confecção do enxoval do neném, decorar o quarto do bebê, retornar a Ordem da Estrela, pôr em dia as cartas, voltar para o amado piano e, sobretudo, reaver seus dias radiantes e suas noites gloriosas como esposa-amante e agora futura mãe.
No quarto de vestir, vê as roupas de Theodoro sobre a poltrona. Pega o casaco e o abraça. Num triz, sente o cheiro de perfume. Fareja a roupa. Oh, meu Deus! Vasculha os bolsos do casaco, não encontra nada. Leva-o até a janela e o examina. Em um ombro, encontra um fio loiro de cabelo. Não, não, não! Não pode ser!

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Quarenta e Oito

EM BELÉM


Belém do Pará, 25.05.1904.
Escrevo em uma pequena casa amarela, para onde me mudei há quase dois meses. Atraiu-me à primeira vista e me fez desejá-la quando entrei na sala e vi o bucólico emoldurado pelas janelas azuis. Schaeffer intermediou o contato com o proprietário do imóvel, que se dispôs a alugá-lo para mim.
Num arranjo de gente hospitaleira, a casa erguida em uma rocinha, como são chamados os sítios na região, foi mobiliada com o essencial. Preferi assim. Quis conhecer o mínimo que preciso para sobreviver. Comprei rede de dormir e outra só para balançar. E balancei bastante na companhia de uma preguiça dependurada lá fora no caule de uma árvore. Afeiçoei-me ao seu olhar infantil e o seu gemido tristonho dialogou muitas vezes com o meu. Para alegrar essa interlocução, havia o canto dos passarinhos. Meu espírito agradeceu tão suave prazer.
Li também bastante. Schaeffer me emprestou livros escritos por naturalistas que percorreram o rio Negro e o Amazonas entre os anos de 1781 a 1852. A descrição do cenário humano me interessou mais que a do cenário natural, apesar de ter chamado a minha atenção a visão acerca dos efeitos da floresta sobre o peregrino, que se sente encantado com a exuberância e, ao mesmo tempo, inquieto com a solidão da selva. A descrição do brasileiro como um povo cordial, apreciador da música e de festas está sempre presente nos relatos. E há apreensões comuns nem sempre boas com relação à falta de capricho com o cultivo das plantações.
Um dos viajantes narrou sobre a nação indígena Manao. Ferrenhos combatentes da ocupação territorial pelos portugueses, essa nação mantinha relações comerciais com os espanhóis e soldados brasileiros desertores, para quem capturavam índios em troca de armas e outros produtos de interesse. Seu líder era Ajuricaba. Destemido, dominou o rio Negro, com a bandeira dos holandeses arvorada nas canoas da sua flotilha. Certa vez atacou uma aldeia e, no embate, matou o paxé, um afeiçoado da oficialidade do Grão-Pará. Houve intensa represália oficial e ele foi preso. Durante a travessia para Belém, jogou-se nas águas, acorrentado, numa tentativa de fuga.
Sua história quebra as lentes complacentes que infantilizam os silvícolas e as também equivocadas com relação à evolução do homo sapiens. Revela um perfil humano similar ao dos piratas ou corsários dos mares, com a diferença de que Ajuricaba era o governante do seu próprio corso e o defendeu ao longo dos rios e nas matas. Assaltou tribos com o intuito de comercializar a vida humana, em vez de uni-las para juntos lutarem contra os colonizadores. Não, não posso ser tão taxativo. Vai que tentou e, malsucedido, concretizou a máxima “ou está comigo ou contra mim”.
Conversei com Schaeffer sobre a escravização dos índios pelos próprios nativos e depois a realizada pelos brancos. Não soube me dizer nada além do predomínio da lei natural sobre a artificial. Criada pelo Marques de Pombal, essa lei acenava aos índios brasileiros direitos iguais aos demais vassalos de Portugal. A barbárie dos brancos predominou ora em luta para capturar escravos, ora para vingar ataques. A escravidão perdura em novas formas de cativeiro por esses sertões afora. 
Fiz da devolução de cada livro lido uma oportunidade de visitar Schaeffer e de apresentar-lhe e a sua família minhas estimas e reconhecimento pelo fraterno apoio. Voltei a pintar aqui e os presenteei com uma marinha. Gostam de embarcações.
Estive outras vezes também com Dr. Matias. Providenciou quininos e piretros para minha viagem e acompanhou minha recuperação física. Dei-lhe uma tela do Forte do Presépio, que fica à beira do Guamã, um rio de Belém. Ele aprecia a vista de lá. Sensibilizou-se com a lembrança e me encorajou abraçar a pintura de vez.
Ao longo dessa minha temporada, fui cuidado por Dona Maninha, mulher forte no corpo, doce na alma e desinibida no espírito. Filha de português e de índia, ela viveu com freiras até se casar. Achou-me magro: -- vou cevar o senhor para aguentar a fadiga puxada da viagem acima, disse-me logo que começou a trabalhar aqui. E me cevou. Engordei alguns quilos. Mais alguns dias de convivência já falava de rezas que desembaraçavam tristezas. Pedi que rezasse por mim. Acendeu velas e me benzeu. Deu para me aconselhar também: -- coração solto não descansa porque não tem pouso. Casa com moça de bem que o alívio vem. Talvez ela tenha razão, mas os pensamentos continuam na estrela de grandeza maior que daqui não consigo avistar.
Para Dona Maninha, pintei Nossa Senhora de Nazaré. Apreciou a tela, porém sentiu falta da cobra-grande que diz ter sido esmagada pela santa com a força da sua fé. Prontifiquei-me a corrigir o erro. Respondeu-me que não carecia. Pairava a dúvida de que a cobra renascera avariada, fugira para dentro da terra de Belém e lá desmaiou. Mas, se acordar, como aconteceu certa vez, a cidade tremerá e as águas grandes engolirão o povo. Os fiéis rezam sempre em outubro para a Santa, numa procissão que percorre toda a cidade a fim de evitar esse intento e outros mais. Embora absolvido do meu erro, decidi remediá-lo. Pintei o que bem conhecia: Dona Maninha farta em um vestido branco, sentada com os braços arredondados sobre o colo e o cabelo negro lustroso escorrido de lado em trança grossa, pontilhada com flores coloridas. Esfumacei todo o espaço ao redor com tons de verde. Dona Maninha deslumbrou, acanhou-se e comentou: -- poliu demais o atual. Mas no passado fui formosa assim. Feliz, seguiu para casa levando a eternidade de si.
Conheci ervas no mercado, ouvi lendas e casos, fotografei paisagens, pessoas e folguedos e, a despeito dos perrengues da alma, das saudades sobre as quais nem ouso falar e da preguiça em viajar, é hora de partir, de deixar a proteção dessa pequena casa amarela e das amizades feitas em Santa Maria de Belém do Grão-Pará.

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domingo, 25 de janeiro de 2015

Capítulo Quarenta e Sete

DA REAÇÃO INESPERADA


 Theodoro é recebido na fazenda de Divisa. Observa o sorriso amoroso de Catarina em semblante esmaecido, mas não externa preocupação. Logo depois, na privacidade do quarto, pergunta a razão do seu abatimento.
-- Não se sente bem?
-- É apenas o doce suplício do nosso amor realizado.
-- O que quer dizer?
-- Aconteceu. Seremos pais.
Theodoro esperava esse momento, imaginara como reagiria ao ouvir essa notícia. Porém, em vez de se exaltar com o desejo realizado, de se orgulhar com o atestado de virilidade obtido, abate-lhe o peso da desconfiança, de não saber até onde o ímpeto de Catarina a levou depois do indisciplinado banho de mar. Tensiona-lhe o fato de ela não ter-lhe contado a novidade por carta. Teria tido tempo para se acertar com a diferença entre a situação imaginada e a realizada. Tomado por uma sensação opressiva, senta-se.
-- Por que não me escreveu contando?
-- Como poderia abrir mão da felicidade de ver sua alegria primeira?
O descompasso entre a alegria sugerida e a fisionomia pressentida aumenta a opressão dele. Tudo parece fugir ao seu controle. Fita-a com um olhar inquisidor.
A perscrutação sobre si e a reação atônita preocupam Catarina. Debate-se em silêncio, sem saber o que fazer. Teme que o marido desconfie da sua entrega a Valentin e, pior do que desconfiar de sua lealdade, é confirmar a própria esterilidade. Prefere que ele jamais conheça essa dor.
A percepção de Theodoro acerca da estupidez de se voltar contra a sua aliada de todas as horas, por causa de um ciúme ridículo, ajuda-o a soerguer-se dos sentimentos conflitantes. Expressa a verdade inacessível a qualquer reação primária.
-- Sua gravidez é o maior presente que pode me dar.
-- Seremos uma família de fato.
É isso o que importa, pensa Theodoro. Porém, quer ficar um tempo sozinho. Levanta-se e caminha. A mulher o indaga.
-- Aonde vai?
-- Andar um pouco.
-- Irei com você.
-- Melhor se poupar.
-- Sinto-me bem.
-- Ainda assim, fique.
-- Mas quero tanto...
-- Fique, é uma ordem.
-- Estarei com você em pensamentos.
Theodoro sai. O olhar assustado de Catarina mira o nada como a um espelho no qual vê refletidos seus medos. Acaricia o berloque e cogita que o marido esteja tomado pelo medo dos riscos da gravidez. Pede a sua estrela-guia força para vencer esse decepcionante momento e proteção para viver a sua gravidez como sonhou.
O clima entre o casal melhora na manhã seguinte, quando Theodoro participa ao sogro a notícia do rebento a caminho. Feliciano já suspeitava da concepção e comentado com a esposa, que lhe disse apenas: -- também acho, mas vamos aguardar para ter certeza. Aguardou e, neste momento, abre um sorriso emocionado com a notícia. Crê que as ervas manipuladas por ele ajudaram a natureza a cumprir a sua função. Abraça a filha e o genro. A mãe se comove e entrega seus receios nas mãos de Nossa Senhora. 
Após o festivo almoço pascal, os pais levam o casal para pegar o trem. Ao longo do trajeto, Catarina passa mal e obriga várias paradas. Finalmente chegam à estação. Theodoro e Feliciano acham melhor ela não viajar. Constança resiste; tem que lugar de mulher é do lado do esposo, em qualquer situação. A grávida hesita e o marido decide a questão: -- melhor ficar, venho te buscar quando te sentires mais forte, diz e parte.  
Os dias passam. Catarina anda chorona. Ora porque a indisposição não a abandona, ora porque teme que o seu estado debilitado faça mal ao bebê. Às vezes, também sente medo de um parto difícil. Outras vezes, se entristece ao lembrar-se da reação tensa de Theodoro ao saber da gravidez. E, ainda que sinta saudades, que concorde com a mãe de que seu lugar é ao lado do marido, a única coisa que quer é ser cuidada e acarinhada como tem sido pelos pais. Abril chega ao fim e o desconforto da gravidez diminui conforme o mês de maio avança.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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Capítulo Quarenta e Seis

REGISTROS DE VIAGEM


Belém do Pará, 24 de março de 1904.
Há mais de uma semana, hiberno no quarto do hotel, com a sensação de ainda estar no mar. Confesso que temi a morte, a bordo do Alagoas. Morrer com a percepção de ser um inadequado da espécie é uma perspectiva tão desabonadora que me ata à vida. No entanto, sinto-me sem forças para prosseguir.
Ao longo desses dias, inteirei-me da chuva miúda e diária de Belém. Da janela comecei a desvendar a cidade: as cumeeiras dos telhados, as torres altas das igrejas, as frondosas mangueiras das ruas largas, o céu nublado em prata. Desse meu solitário posto de observação, Belém se mostra caiada em branco molhado pelo céu e banhada pelo rio quase mar, sem morros a modular a paisagem. É amplidão de terra, água e céu. Majestosa até para meus olhos descorçoados de se iludir com o belo. No aconchego do quarto me acostumo com a nova realidade na qual devo me mover.
Enviei um recado para o senhor Andreas Schaeffer, secretário do Dr. Emílio Goeldi. Preocupado com as notícias da minha indisposição, veio me visitar e trouxe o médico Carlos Matias. Pessoas gentilíssimas. Dr. Matias acha que a gripe agravou a mareação, ou vice-versa; fez várias recomendações para eu me recuperar e como devo me cuidar na floresta. Evite o álcool, disse-me. Nem precisava. Já plaino suspenso em mim mesmo. Alcancei o entorpecimento em plena abstemia imposta pelo mal-estar. Valer-me de qualquer remédio para abrandar minhas tristezas é correr o risco da minha mente desatar de vez do meu corpo. Não quero pagar para ver.
Para a expedição à Amazônia, Dr. Matias receitou doses diárias de quinino e aconselhou o uso de bota o tempo todo, camisa fechada para dentro da calça, meia sobre a barra da calça, para vedar o corpo e impedir os piuns, durante o dia, e os carapanãs, durante a noite. Recomendou-me dormir sempre protegido por um mosquiteiro e acender piretros para afugentar os voadores da febre amarela e malária. Disse que a fumaça narcotiza, tonteia o carapanã, mas não o mata. Posso imaginar o delírio dessa criatura de Deus. 
O senhor Schaeffer confirmou minha suspeita do Doutor Goeldi já ter ido para o seminário na Europa. A surpresa foi saber que os meus telegramas chegaram e foram respondidos. Sei lá porque não os recebi. Decidimos falar sobre as possibilidades da minha expedição quando me sentir melhor.

 28 de março de 1904.
Hoje me empurrei para fora do quarto. Tomei um bonde e passeei a esmo pela cidade. Acolhi Belém. A cidade possui praças com belos jardins, ruas amplas e arborizadas. Navios de muitas nações movimentam o porto e barcos à vela deslizam pelos rios que contornam a cidade. Diversas casas comerciais estrangeiras estão presentes e a população em grande parte revela traços indígenas.
Fui ao Museu Goeldi. Tudo lá é exuberante e grandioso: espaço, árvores, folhagens, vitórias-régias. Ali a natureza se mostra organizada somente com o seu melhor. Um sonho aberto ao público. O nome do Museu é um reconhecimento em vida ao seu diretor, e a instituição possui uma história de realizações de brasileiros e suíços aqui radicados. Bem-aventurados aqueles que se dedicam a um trabalho que dá sentido a sua vida e ainda contribuem para engrandecer a experiência humana.
Novamente eu e as minhas questões. Mas, dessa vez, recuso-me a ter expectativas com relação ao meu trabalho. Meus editores terão o que querem sem um pensamento destoante do oficial. Chega de ser tratado como um sujeito que, no meio de uma missa, arranca a roupa e nu quer consagrar o sangue do desatino que se derrama sobre nós. 
Com Schaeffer, analisei dois roteiros de viagem. No primeiro, sigo pelo rio Purus rumo ao sul para me integrar a uma expedição do Museu que está em algum ponto dessa região. No segundo, viajo pelo Rio Negro em direção ao noroeste da Amazônia com a expectativa de me encontrar com Theodor Koch-Grünberg, um etnólogo alemão que estuda indígenas não aculturados. Outro Theodoro em minha vida. Schaeffer o conheceu em sua passagem por Belém do Pará, no ano passado. Esta opção me atrai em razão do estudo do etnólogo ser o objeto da minha reportagem, ainda que possa haver desencontros e eu acabe fazendo o percurso sozinho. Estou sem pressa para decidir e partir. Só de pensar em embarcar, sinto calafrios.

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Capítulo Quarenta e Cinco

INTUIÇÃO DE MÃE


Assim que testemunhou o primeiro enjoo de Catarina, Constança pensou de imediato em gravidez. Alegrou-se. Se certa, chegava ao fim a triste sina aventada há tempos pelo marido médico de que, por razões ignoradas, a filha ou o genro era estéril. Mas o enjoo mudava aquele infortúnio. Era o sinal de uma concepção tardia, quase um milagre intercedido, com certeza, por Nossa Senhora.
Ao pensar nessa amorosa mediadora, lampejou a dúvida de ter havido mais outra força em ação. Não, não é possível. Mas os fatos se lhe ofereceram espontaneamente. Ordeiros organizaram-se como um leque de cartas de baralho e lá estavam: o enorme desejo de ser mãe da filha, seu ímpeto desmedido, suas notícias efusivas sobre a estada de Valentin no solar, a simpatia recíproca entre os dois, a concepção ocorrida durante a presença do hóspede e a visita inesperada de Catarina. Só ficou de fora a viagem de Theodoro, que ignora. Mas, ante os fatos conhecidos, todos concorreram para a suspeita de que a criança a caminho fosse fruto de um romance extraconjugal. A mãe desejou estar errada. Rezou para estar. Contudo, os dias passaram sem a dúvida se dissipar.
Entra no quarto da filha para avisá-la que o empregado a espera. 
-- Tibério está aí fora. Disse que você quer ir até o povoado.
-- Só até a estação de trem despachar a carta para Theo.
-- Pálida desse jeito... Não sei se é conveniente se sacolejar na charrete.
-- Talvez a fresca da tarde me faça bem.
-- Acho que não. Dê-me a carta. É melhor Tibério fazer isso para você.
 Catarina entrega a missiva e se deita. A mãe sai e retorna minutos depois. Senta-se à cadeira defronte da cama.
-- Estou preocupada com você.
-- Pela minha indisposição?
-- O que quer me contar?
-- Os meus sintomas já não falam por si?
-- Falam de uma provável gravidez.
-- Só nos cabe torcer para ser verdade.
-- Tem certeza de que agora é só torcer?
-- Claro que sim. Não é tudo que desejamos há tanto tempo?
-- Com certeza. E, depois de tantos anos, acontece, assim de repente.
-- Uma lição de esperança e fé.
-- Com o solar vivendo em condições tão diferentes do normal.
Catarina percebe aonde a mãe quer chegar e se assombra com a intuição dela.
-- O que quer me dizer?
-- Que jamais a abandonarei, por mais difícil que seja a situação.
-- Sei disso, só não entendo o motivo da sua inquietação.
-- Há anos vem tentando em vão ser mãe.
-- Por acaso, eu e Theo não merecemos ser agraciados com a benção de uma concepção tardia?
-- Merecem e é o que mais desejo: que essa graça tardia seja fruto da abençoada comunhão com o seu marido.
-- Como se pudesse ser diferente. Ora, mamãe! Se não a conhecesse bem, tomaria até como uma ofensa.
-- Pode então compreender o desassossego do meu coração. 
-- É muita surpresa. Agitou a sua imaginação.
-- Oh, e como! Pensei em tanta coisa.
-- Os pensamentos são mesmo ingovernáveis.
-- Imaginei uma concepção fruto de um romance proibido ou somente do seu desejo de engravidar.
-- Mamãe! Causam-me estranhamento seus devaneios.
-- Causaram a mim também e me acenaram até uma gravidez ilícita, porém de comum acordo com o seu marido.
-- Isso já é loucura! Contenha-se antes que alguém a ouça.
-- Precisava desabafar.
-- Já o fez e eu já disse: não há nada com o que se preocupar.
-- Espero, porque, para além da honra aviltada, da violação dos costumes, o que mais me aflige, é a insensibilidade ao outro.
-- Santo Cristo, por que insiste nisso?
-- Conheço bem a sua natureza e a de Theodoro. São resolutos e desmedidos.
-- Por favor, pare. Tudo tem limites.
-- Bom que pense assim porque o contrário é chamar Levana para si e para muitos.
-- A criança que espero é fruto do meu amor por Theo e ponto final.
-- Que Nossa Senhora os guarde e a chama da verdade nunca se apague entre nós.
-- Assim é e assim será, amém.
Constança se levanta e caminha para a porta. Catarina a chama.
-- Não comente nada com papai do meu estado interessante; quero ter certeza e contar primeiro para Theo.
-- Deixarei para você falar. 
A mãe sai. Pela janela aberta, Catarina avista as quaresmeiras floridas em branco e violeta que se espalham pelas encostas dos morros verdes no fundo da paisagem. Acaricia sua estrela: Levana e Nossa Senhora, amorosas guias, escutem minha prece. Sabem que sou uma pessoa boa, mas não pude ser sincera. Valentin jamais entenderia um filho sem romance e uma natureza apaixonada sem o compromisso do amor. Mamãe que é sensibilíssima e divagante. Tanto que se torna fantasiosa. Que homem arranjaria outro para fecundar a sua esposa? Theo é um homem raro, mas não um santo. Nesse ponto, Nossa Senhora pode me entender melhor. Contou com a anunciação do anjo Gabriel para apaziguar o coração do amantíssimo São José. Imagino os olhares sobre ele. Mas isso também é passado e tudo ficará bem. Valentin irá para longe, conhecerá uma moça, que lhe dará quantos filhos quiser. Meu bebê nascerá. Theo o erguerá e apresentará sua fonte às estrelas, como você, Levana, nos ensinou. Dirá: eis meu filho, para quem invoco proteção. Será lindo. E depois, Nossa Senhora, haverá o batizado à luz de velas, com água, sal e óleos bentos... Seremos boníssimos pais; educaremos nossa criança na fé e nos valores do bem. Assim, vos peço: continuem a me iluminar e a interceder sempre por mim. Amém.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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