terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Capítulo Trinta e Seis

NOITE DE SALOMÃO


Toques à porta soam e Valentin pula da cadeira. Um suspiro imperceptível se esvai quando abre a porte e contempla o que se apresenta: Catarina envolta em uma capa-capuz feita de um tecido tão escuro como um céu sem estrelas. Mas o seu olhar... Esse cintila promessas. Da angústia do vazio, Valentin migra para o frêmito da plenitude. Coração também palpitante, desejos e receios entrelaçados, a recém-chegada penetra o espaço e o examina como a antecâmara do quarto real onde cumprirá a sua missão. Deixa o capuz cair e Valentin lhe pergunta se não quer tirar a capa.
-- Ainda não.
-- Quer que feche as janelas?
-- A cortina. E aceito uma taça de vinho.
Ocorre o atendimento dos pedidos. Taças são erguidas.
-- A você.
-- A você.
Valentin nota a expressão levemente inquieta: está nervosa. Não é pra menos.
-- Não quer se sentar?
Caminham em direção à mesa. Valentin se dá conta que deixou exposto o que não devia. Catarina observa a matéria dessa percepção.
-- É o que suponho?
-- Não sou adivinho.
-- É o cachimbo dos sonhos orientais?
-- Por que diz isso?
-- Li a respeito e ouvi falar que o conheceu nas suas viagens
-- O que leu?
-- Que leva a um estado excepcional do espírito e dos sentidos.
-- E ao inferno também.
-- Por que fuma, então?
-- Um bom remédio em dose certa.
-- Sente-se mal?
-- Quantas perguntas.
-- Posso experimentar?
-- Não precisa.
-- De sonhos ou do remédio?
-- De correr riscos. A alegria gosta de você.
-- Nem para estar contigo uma única vez no abrandamento das suas dores?
A pergunta reverbera dentro de Valentin que não sabe precisar o que ilumina mais o rosto de Catarina: se o olhar ou o sorriso. Cresce o desejo de possuí-la; de penetrar o seu corpo iluminado por esse sorriso-olhar e, atado no aconchego tépido e úmido da carne, tomado pela escuridão do prazer, gozar o fugidio êxtase e dele retornar preenchido pelo amor compartilhado. Com esse desejo, conclui a preparação do ópio. Silenciosos, fumam sentados à mesa.
Poucos tragos já inundam Catarina de um onírico bem-estar. Levanta-se em languidez. A luz da saleta flui com reflexos que lembram lantejoulas e lhe agradam. Desvencilha-se da capa enquanto anda. A sensação é de flutuar, de ser uma pluma. O ópio apaziguou a agitação que sentia em ter de trair Theodoro e concentrou o desejo de ser fecundada por Valentin, que se aproxima como um ator.
-- Quem é esta que surge como a aurora, radiante como a luz?
O regozijo brota em Catarina e se espraia pelo corpo como um orgasmo. É sublime se entregar a um homem capaz de tanto lirismo. Replica com mais poesia.
-- Sou a estrela-guia, a esperança do amanhecer.
Seu rosto é acariciado e a sedução avança com o desafio dos versos improvisados.
-- Bela é a tua face entre os brincos; teus lábios são fitas de carmim.
-- Teu toque é suave e tuas palavras doces e frescas como a brisa.
-- Tua voz restaura minha força e teu semblante afugenta minhas sombras.
Giram um ao redor do outro.
-- Sem me aperceber, trouxeste-me para ti. És um pastor do amor.
-- Encantaste meu espírito com o teu sorriso-olhar.
-- Onde pastoreias tua alma ao luar da meia-noite?
-- Próximo às corredeiras que ninam a insônia de pensar em ti.
-- Quero contigo estar. Mas temo me perder no caminho e não saber voltar.
Pela cintura, Valentin a traz para junto dele.
-- Deixa-me te conduzir; é tempo de celebrar tão longa espera.
-- Teu peito apoia minha cabeça e o teu braço me enlaça; já me sinto segura e alegre em ouvir o júbilo do teu coração.
Dirigem-se para o quarto, fitando um ao outro. Ao lado da cama, param. Diante do semblante extasiado, Catarina desliza uma manga sobre o braço, depois a outra e, com as mãos sobre os seios, segura por um instante o vestido até deixá-lo deslizar e tombar no chão. Deita-se com os olhos no amigo.
-- Venha para meus braços, alimente-me com teu desejo.
A paixão arde em Valentin, que se despe sorvendo a visão do éden revelado. Em seguida, estira-se na cama e a acaricia.
Braços, tronco, ancas reagem a cada toque em movimentos dolentes. A volúpia ilumina ainda mais o rosto de Catarina, que murmura quando dedos a penetram.
-- Ah!
-- És toda bela, mulher.
   Beija-a e estende-se sobre ela. Sente-se como num sonho dentro de outro de delícias sem fim. Gira o corpo com o dela junto ao seu.
-- Dos teus lábios fluem mel.
-- Teus olhos são centelhas divinas e tuas carícias estremecem meu íntimo.
-- Cubra-me de beijos.
Os longos cabelos ruivos acariciam o rosto, o peito, os quadris do corpo sob o seu, como ramagens que, ao sabor das brisas, balançam e riscam a areia do chão. Solos aquecem-se mais, entranhas latejam e o deus da fecundação, hasteado em glória, quer ser adorado – e é adorado. Num primeiro momento, apenas os lábios o deslizam; no seguinte, a boca inteira o reverencia e o abandona fremente de mais prazer.
-- É como um cedro rijo e macio. Embriagai-me com teu ardor.
Valentin contempla a paixão modelada sobre ele: os bicos rijos dos seios, os cabelos em profusão, o sorriso molhado de luxúria, os olhos em brilho ardente – e se pergunta até onde essa noite desabrochada em dádivas o levará.
-- Põe-me como um selo sobre teu coração
   E a noite sobre a noite, morna e úmida, desce vagarosamente e engole a terra. Corpos gemem. A luz suave da arandela banha a tela da mulher que gira a esfera.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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