sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Capítulo Dezenove

O IMPASSE


No restaurante do Club dos Diários, Theodoro e Valentin aguardam o almoço ser servido em companhia de Bráulio Munhoz e Olavo Bilac: este colaborador da Kosmos e inspetor escolar do Distrito Federal, aquele secretário de redação da revista e ambos próximos dos quarenta anos de idade. Theodoro se levanta para cumprimentar um conhecido e a prosa sobre a realidade do país prossegue à mesa.
-- Costumo dizer, meu fraterno, que nossa Capital viverá a metamorfose da lagarta em borboleta. Em breve, surgirá bela e radiante.
-- E nós da Kosmos iremos acompanhar essa reabilitação material e moral, além, é claro, de propagar os primores de nossos artistas e as nossas belezas naturais. 
-- A propósito, Theodoro comentou que daqui irá para o norte do país.
-- Primeiro Belém, depois Manaus.
-- Encontrará duas fervilhantes e requintadas cidades. Começaram mais cedo a sua reurbanização e já colhem os frutos das suas iniciativas.
-- Li a respeito.
-- Conte conosco para publicar suas impressões de lá.
-- Obrigado. 
-- Mas nada de exibir o Brasil de cocar ou de trunfa na cabeça. Olha lá, hem!
Valentin dá um sorriso amarelo para Munhoz, porque essas são exatamente as imagens que os editores franceses querem.
-- Farei um trabalho especial.
-- Ótimo.
-- Percebeu muitas mudanças na cidade?
-- Sim. Está mais adensada, combalida, e as contradições mais gritantes.
-- Deveras, mas entramos em fase de restauração, graças aos governantes atuais. Baniram os decretos da indiferença e da ignorância que fechavam nossas portas para a beleza, a higiene e o conforto.
-- Tudo o que perturba e envergonha a idade civilizada será extinto junto com os cortiços. Os tempos são de transformações radicais.
-- Que soem as picaretas regeneradoras! Um brinde à civilização.
Taças são erguidas, com um Valentin desapontado com essa visão que passa ao largo do impacto social das demolições. Contém-se para não polemizar. Após o almoço, telegrafa de novo para o Museu Goeldi, preocupado com a ausência de respostas. O retorno ao solar ocorre somente de noite. Catarina para de tocar piano e o recebe.
-- Que bom que chegou. Já jantou?
-- Na cidade. Perdoe-me por não ter avisado.
-- Sente-se bem?
-- Sim. Só entrei para dar boa noite.
Theodoro surge vindo da biblioteca e Catarina sai discretamente.
-- Aguardávamos você.
-- Acabei me atrasando.
-- Sem problema. Que tal, gostou do almoço?
-- Esclarecedor.
-- Causou boa impressão. Terá quantas páginas quiser para publicar os retratos da cidade. Pode até escrever sobre a reforma.
-- Tenho dúvidas se querem saber o que penso.
-- Não diga isso.
-- O que mais posso dizer ante as picaretas regeneradoras?
-- É só uma expressão poética para saudar os novos tempos.
-- Que resume bem a insensibilidade com o povo.
-- Entendo como um desabafo: estamos todos exaustos com o nosso atraso social.
-- E nada cerimoniosos para revelar ignorâncias e impiedades.
-- Por que ofensas?
-- Ofensivo é responsabilizar a população pela própria miséria e esquecer a incúria dos poderosos que causaram esse estado de coisas.
-- Ninguém está a responsabilizar nada e não adianta identificar culpados, nem podemos desperdiçar forças. A conjuntura é apertada para tudo o que precisamos fazer.
-- Esperem o caos. O povo não aguentará tanta violência.
-- Não exagere. Ademais o progresso chama o progresso. 
-- Da minoria, porque a maioria perderá o pouco que conseguiu fazer da sua herança nos troncos.
-- Não é bem assim.
-- Como não se grande parte dos desalojados é negra? Uns ficarão sem moradia perto de onde ganham o pão, outros sem o ponto comercial que possuíam. Não percebe que o chicote continua a açoitar e a separar?
-- É uma questão racional. Não podem pagar pela valorização do espaço. Fora que, com as demolições das pocilgas, o Governo porá fim às aos aluguéis abusivos.
-- Pois espere também a insatisfação dos locadores.
-- Cada um tem que fazer um sacrifício. 
-- Menos os banqueiros e os empreiteiros.
-- Não podem trabalhar de graça e há um preço para construir melhorias. 
-- Estão é gastando dinheiro a rodo, isso sim. Acha mesmo que os pobres irão para os arrabaldes?
-- Por que não?
-- Porque ninguém irá morar longe, se existem os morros, perto do trabalho. Aliás Castelo e Providência estão em petição de miséria.
-- Em breve, virão abaixo.
-- Mais uma medida esdrúxula.
-- Olha os termos!
-- Faltam-me palavras para qualificar essa proposta.
-- Que irá ampliar a área central e ainda renovar os ares.
-- Melhor que os reurbanizassem e educassem a todo mundo, porque é reduzido o entendimento do que faz florescer uma nação. 
-- E cadê a varinha de condão, hein? Porque o que propõe é o ideal, não o emaranhado de prioridades que trava aqui e impõe o acolá. É na realidade do possível que podemos avançar. O resto é utopia.
-- Menos ampliar o fosso entre os ricos e os pobres. Isso é líquido e certo.
-- Essa é a sua visão, não a minha.
-- Escreva o que digo: enfraquecerão ainda mais o povo e construirão um paredão contra o progresso.
-- Que pessimismo.
-- Por que me convidou para fotografar essa reforma se sabe bem como penso?
-- A quem mais poderia dar a honra de escrever a história?
-- Quanto eufemismo. Os retratos da cidade não passam de uma delação da miséria alheia. Só me cabe declinar ao convite.
-- A hora não é boa para conclusões. Vamos voltar a falar em outra ocasião.
-- Que seja. Boa noite.
-- Até amanhã.
Valentin sai. Ao passar pela porta, depara-se com Catarina, encostada à parede e desanimada com o rumo dos acontecimentos. Olham-se e ela acaricia o rosto dele, com pena de tanta sensibilidade. O gesto o confunde. Quer retirá-la dali, saber a razão de mais um afago ambíguo. Mas é só um desejo passageiro com relação à mulher do próximo, que se vira em direção da sala, ao encontro do marido.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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