sábado, 24 de janeiro de 2015

Capítulo Quarenta e Três

DESPEDIDA


Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1904.
Estimada Catarina,
Parto logo mais e já me embarga a saudades da cidade e dos cantares apaixonados de suas noites enfeitiçantes. Rios correm para o mar. Faço o trajeto inverso, na vertigem provocada pelo refluxo das correntezas que, sem apelação, me empurram para novas coordenadas. Carente de razão maior, exceto prosseguir, parto. Mas não é do futuro que quero falar. Abro meu coração para lhe dizer do presente que finda e levo comigo.
Aqui fui surpreendido pelo mais doce, gratificante e inesperado acaso. Mágico, encantou-me; eloquente, me fez desejar mudar o rumo da minha vida. Imprevisível, me deixou a ver navios. Ainda que eu recuse aceitar a razão da sua brevidade e me torture o vazio deixado pelo seu fim, parto ciente de que viveria minha existência outra vez, para desfrutar novamente de tão sublime acaso.
Com a saudade agradecida de tanto, embarco. E lembro-a do selo que pedi para guardar. Nada me é mais caro que esse acolhimento.
Valentin assina a carta. Em um envelope lacrado, deixa sua despedida debaixo da flanela que cobre o teclado do piano de Catarina. Fecha o tampo. Parte para o cais, no coche conduzido por Abdias. Theodoro não pôde acompanhá-lo.
Em seu gabinete, Bilac escreve a coluna do dia seguinte: desde ontem as picaretas entoam um hino jubiloso pondo abaixo as casas condenadas da Avenida Central. No aluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, há um longo gemido. O gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio. A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, soluça o soluçar dos apodrecidos materiais que desabam. Mas o hino claro das picaretas abafa esse protesto impotente. Com que alegria cantam elas – as picaretas regeneradoras! E como as almas dos que ali estão compreendem bem o que elas dizem. No seu clamor incessante e rítmico, celebram a vitória da higiene, do bom gosto e da arte.
O vapor Alagoas deixa a ilha Fiscal com destino a Belém do Pará. No convés, Valentin avista a nuvem de poeira que sobe das demolições da Avenida Central para o céu avermelhado do entardecer de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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