sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Capítulo Dezessete

DA SEÇÃO DE FOTOS


Catarina lê na sala de estar. Valentin chega, com a cara inchada de dormir e carregando seu material de fotografia.  Senta-se diante dela.
-- Descansou?
-- Até demais.
-- Mandarei Josefa preparar algo para você comer.
-- Adiantei-me a sua gentileza e comi frutas e carnes, na cozinha.
Catarina acha a combinação saborosa, porém o local inapropriado.
-- Satisfeito?
-- Sim, uma delícia.
-- Que bom. Irá fotografar?
-- A luz da tarde é sempre convidativa.
-- Falarei para Abdias te levar.
-- Prefiro tomar um coche de aluguel. Posso me demorar.
-- Como quiser. Divertiu-se ontem?
-- Dentro do possível, sim.
A resposta instiga a curiosidade de Catarina em saber o que limitou a diversão. Porém Theodoro a aconselhou fortalecer o entusiasmo do hóspede.
-- Confio que terá uma bela temporada na cidade.
-- Que Oxalá a escute e aquela deusa esteja a dormir!
-- Pense sempre em tudo de bom que possui e a afastará.
-- Simples assim?
-- É. Levana não muda os acontecimentos. Apenas nos ensina a respeitar os designíos do destino.
-- Com suas amantíssimas filhas, como se chamam mesmo?
-- Lágrimas, Suplícios e Trevas.
-- Boazinha a mestra, não?
-- Está a troçar de mim e desatento.
Valentin para de mexer numa pequena câmera fotográfica
-- Perdão. Conte-me sobre as lições da mestra.
-- Quer mesmo ouvir?
-- Claro! Como evitar Lágrimas se a realidade é um temporal?
-- Vê? É assim que ela age, nos fazendo olhar para as tristezas da vida.
-- E...?
-- Ora! Sem a gente perceber, a dor no mundo nos penetra, o pranto toma conta de nossa alma e nos lastimamos contra os céus...
Catarina continua a falar com os braços erguidos e as mãos espalmadas, numa imitação da deusa. Valentin se levanta e a enquadra. A posse é desfeita.
-- O que faz?
-- Quero te fotografar.
-- Não estou vestida para tanto.
-- Engana-se.
-- Por favor, Valentin.
-- Repete o gesto. Estava belo.
As palavras a incitam, mas ela faz charme.
-- Não. Não sou uma atriz.
-- Dê-me esse gosto
Os olhos se fitam até que os de Catarina desviam e miram o alto; seus braços se modulam em alturas diferentes. Valentin sobe numa banqueta e a aprecia pelas lentes da câmara: Como é bela! Fotografa-a.
-- E Suplícios, o que ela nos faz?  
-- Apropria-se de nossas desilusões. Abaixamos os olhos e nada os faz brilhar. Opacos, sombrios, revelam o desalento de um desejo morto...
Valentin desce da banqueta e pede que ela fique como está. Ajoelha-se e se deita no chão. Enquadra-a com o rosto ligeiramente virado para o lado e inclinado para baixo. Catarina se mexe.
-- Volte o olhar para os seus pés. Isso, excelente.
O retrato é tirado. Ergue-se.
-- E Trevas?
Catarina também se levanta, incorporada no papel. Caminha.
-- Usa um véu negro, transparente, que cobre o rosto em uma atitude de desafio ao infortúnio, porém, de seus olhos escapa uma luz de desespero. Enquanto Lágrimas anda com uma beleza trágica e Suplícios em comovente melancolia, Trevas não. Seus passos são selvagens. Quando visita alguém, arromba a porta e pula sobre a presa. Com garras felinas, prende a vítima debaixo de si e a põe numa torturante prova de resistência.
-- Renda a presa, Catarina. Pule.
-- Valentin!
-- Não quebre a concentração. Sapateie... Isso. Mais forte. Ótimo. Não se mexa.
Pés firmes no chão, saia puxada de cada lado pelas mãos, olhar metálico, Catarina se deixa fotografar.
-– Belíssimo! É uma grande atriz.
O que foi que fiz?-- Por favor, não mostre essas fotos para ninguém.
-- Serão suas.
-- Obrigada. Agora me dê licença. Tenho coisas a fazer.
A inquietude percebida é analisada como resultado de uma repreensão à liberdade com que posou. Valentin procura dissipar o sentimento negativo.
-- Você esteve magistral.
-- Pare de me mimar e vá para suas fotografias, antes que perca a luz da tarde.
Em olhar reflexivo, Valentin recua.
-- Até mais tarde.
-- Não tão tarde. Vamos celebrar o Dia de Reis.
-- Serei pontual.
No jardim Valentin muda seus planos, ansioso em revelar os retratos. Tranca-se na casa de hóspedes e Catarina corre para o seu quarto, onde revive a seção de fotos. Como se eu tivesse desembestado de mim. Escuta novamente o pedido: dê-me esse gosto. E entende que se desgovernou pelo prazer que quis dar ao amigo: é meu campo magnético em ação; devo-me cuidar, não sou uma mulher libertina.
Pela manhã, seus olhos correm pelos retratos. Após descartar receios, examina cada foto com calma, apreciando as poses e o talento alheio para lhe eternizar tão bem. O retrato de Lágrimas lhe soa como um clamor de esperança, não de desalento; o de Suplícios emana resistência, ao revés de passividade. Já o retrato de Trevas a exibe com um ar devorador: esse é perigoso!
-- Nunca vi nada parecido, exceto no teatro.
-- Dignos de serem expostos.
-- Menos Trevas. É um retrato por demais ousado.
-- Mais parece o de uma dançarina flamenga.
-- Só com você poderia me abrir a tal experiência. Será nosso segredo. Até porque foi um momento tão nosso.
Valentin acomoda-se na poltrona em frente, com a variação da sua dúvida de estar diante de uma sedução velada ou de um inocente e não menos perigoso modo de ser.
-- Agora é a sua vez de me dar um gosto.
-- Se estiver ao meu alcance.
-- Dedique-se com carinho às fotografias da cidade.
Valentin lhe dá um sorriso enigmático.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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