domingo, 11 de janeiro de 2015

Capítulo Cinco

DO BAILE NA ILHA FISCAL


Desde sempre, Catarina sonhou se casar e com um nobre. Possibilidade que lhe parecia impossível de ser realizada na fazenda. Já no Rio de Janeiro, na sede da corte do Brasil de então, poderia conseguir um marido à altura do seu desejo. Mesmo que a mãe a alertasse sobre os perigos da corte, de ser esse um mundo de bajulações, intrigas e traições, mesmo assim, Catarina sonhava com um destino nobre na Capital.
A vida conspirou a favor. Era observada pela tia-madrinha, esposa de um diplomata e defensora do matrimônio, como meio de fortalecer alianças entre famílias influentes. Irradia vivacidade, meiguice e saúde, constatava a mulher acerca dos atributos da garota e julgava um desperdício esse tesouro estar na fazenda, sob a guarda da inadequada irmã, sempre a pensar pelo avesso das coisas, e do desmiolado cunhado, que abandonara uma próspera carreira de médico na corte para realizar pesquisas de remédios, num pequeno laboratório montado num antigo curral. Mulher também sofrida, com filhos que nasciam, amarelavam e morriam, canalizou seu amor maternal para a sobrinha, após perder, para a varíola, o primogênito, já quase um adolescente.
Aos treze anos de idade, Catarina regressou para a Capital e foi morar com sua protetora. Passou a estudar com uma preceptora alemã. No ano seguinte, apresentou-se ao piano, no Paço Municipal, numa festa que celebrava o aniversário da princesa Isabel. Conquistou aplausos e o afago do Imperador: “és uma mocinha bela e virtuosa; serás uma grande mulher”. Aos quinze anos, foi ao primeiro baile da sua vida, na Ilha Fiscal. Descrever essa noite foi para ela outro momento de deleite.
Querido amigo, em suas alvas e leais páginas, abro meu efusivo coração. Para quem mais poderia descrever a iridescente felicidade da minha alma? Ah, o baile! Foi tudo o que sonhei e muito, muito mais. Conheci dois deuses – ouviste bem? Um possui o brilho do sol, o outro, a magia da lua. Que encontro! Como foi? Sê paciente! Só assim poderás saborear toda a revelação.
Num súbito, senti uma vontade enorme de tomar ar. Desvencilhei-me dos meus tios, do bulício do salão, e me encaminhei para a mureta que separa a Ilha do mar. Fiquei a vagar por ali, contemplando as lanternas chinesas que pendiam das pilastras, o pirilampear das luzes distantes da cidade e o luar das candeias das barcas no mar. A brisa soprava doce e brandamente sobre mim. O céu estrelado era um reflexo do meu cintilante enlevo nessa noite encantadora. 
De repente, não muito distante, um cavalheiro surgiu sobre a mureta e pulou para o chão. Parei. Sem me ver, ele se ergueu e debruçou-se sobre o peitoril. Inclinei-me também. E vi outro deixar uma canoa no mar e ser içado com a ajuda de uma corda que era mantida nas mãos daquele que surgiu quase do céu. Logo os dois estavam diante de mim. Olhei para um e fui tomada por um clarão, como se uma translúcida combustão estourasse no ar. Seu rosto se iluminou com um sorriso confiante. Olhei para o outro e uma onda de calor percorreu meu corpo, enquanto seu olhar me banhou com uma luz ardorosamente misteriosa.
Ah, meu querido! Reviver tão esplendoroso encontro me traz de volta tudo de magnífico que vivi nesses minutos mágicos e, nos seguintes, entre risadas, danças e sorvetes saboreados com os meus deuses. Chego a vê-los de novo diante de mim. E eles inundam o meu quarto com os fluidos elétricos de sua fidalga e vigorante presença. Isso me deixa mole, mole, de um modo tal, que peço licença para parar por aqui. Essas inebriantes sensações me consomem por demais. Mas, por favor, não amues. Em breve, contarei mais sobre o baile, sobre a atração que despertei nos deuses e como mantive o meu círculo de magnetismo pessoal intacto. Também lhe revelarei um segredo. Adianto porque me entenderás, sem exigir maiores explicações. O efeito físico dos meus deuses em mim me mostrou que tenho muito gosto pelos cavalheiros. Percebo agora que o meu sonho de casar é ondulado por outros deleites, que jamais poderia imaginar na minha inocência infantil. Mas, adulta, ciente dos fatos da vida e, sobretudo, depois do vivido nessa noite, entendo que essa dulcíssima atração que sinto e emano faz parte da natureza da mulher para que possamos acolher as sublimes responsabilidades para com o marido e a maternidade. Durma bem. Sonhe com os anjos. Eu.
PS: No próximo sábado, irei a um sarau em que meus deuses também irão. Antes que me perguntes, eles se chamam Theodoro de Alcântara Avelar e Valentin Lopes de Santarém. Recém-graduados em direito, possuem linhagem de muitas gerações e seus pais, vastos recursos. Por que pularam a mureta? Estripulias de deuses que perderam o bilhete de ingresso no baile.  
     
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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