terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Capítulo Trinta

O SARAU


Catarina está ainda mais bela. Usa luvas longas, uma flor nos cabelos em coque e a delicada corrente entremeada com contas de opalas que ganhou de Theodoro. Nela, colocou o pingente de estrela. O vestido modela o corpo e possui um caimento farto. A manga cobre apenas o início do braço e é feita de renda que decora o decote.
O colunista social de um grande jornal a contempla: merveilleuse! E escreve em seu bloco de notas o comentário que fará dessa maravilha na sua coluna do dia seguinte: a elegância é um dom especial, uma particularidade, um dote tão difícil, louvável e precioso como a graça e a inteligência. A senhora Theodoro de Alcântara Avelar demonstrou, mais uma vez, ter esse dom. Com decoro, propriedade e dentro do espírito inovador dos tempos atuais, uniu tradição à modernidade. O vestido feito de...
 Theodoro também está bonito e elegante. Mais parece um lorde inglês. Recebe os convidados, ao lado da esposa, no pórtico do solar. Após os cumprimentos, criadas contratadas para a ocasião, de olhos claros e impecavelmente uniformizadas, conduzem os recém-chegados pelo terraço que contorna a ala de recepções.
Colunas brancas e redondas erguem-se espaçadas e majestosas. Esculturas de pequenos pássaros, de flores e de ramagens enfeitam as colunas no seu encontro com o teto. No jardim que margeia o terraço, há bancos de pedra debaixo de frondosas árvores. Tochas fincadas no gramado serão acessas tão logo caia a tarde de verão.
Salões contíguos foram abertos para o sarau. Um piano de cauda e cadeiras para os músicos se destacam diante de graciosas poltronas que formam o espaço da plateia. Mais tarde serão afastadas para liberar o local para as danças. O próximo salão destina-se às conversas e à degustação de iguarias que também podem ocorrer ao redor de mesas redondas que ocupam o salão seguinte. Arranjos de flores e frutas decoram os móveis de todos os ambientes. Candelabros completam a iluminação.
Os cavaletes com as fotografias de Valentin se exibem no terraço e são ladeados por outros que expõem croquis da reforma da avenida central e de outros espaços urbanos. Para cada painel da realidade atual, há dois para ilustrar a modernidade aspirada. Exemplares da Kosmos estão sobre pequenas mesas. Músicos tocam violinos, enquanto garçons de libré servem refrescos, ponches e champanhe de boas-vindas aos convidados que se espalham pelo ambiente e apreciam os painéis.
-- Quem sabe essas praças ajardinadas despertem no povo o gosto do belo?
-- Com certeza, hão de influir em seu caráter, modificar seus hábitos.
-- Devo confessar. Temi quando soube que iam rasgar a Avenida Central.
-- E eu não? Receei que fosse ser entregue ao mau gosto de algum mestre de obras, a exemplo do que se construiu nesses últimos tempos.
-- Mas esta exposição aplacou meu susto.
-- O meu também. São uns artistas esses engenheiros arquitetos!
-- Sabe dizer se a venda de terrenos já começou?
-- Não, mas Theodoro poderá nos informar.
Mais à frente, mulheres analisam as fotos de Valentin. 
-- Estou em dúvida: não sei se acho bonito ou feio.
-- Eu também: não sei se gosto ou não.
-- Ah, como vocês se desorientam facilmente.
-- Mas tem um brilho...
-- O brilho é da fotografia e não dessa gente do retrato.
-- Confunde, então.
-- Nada parece ser o que é.
-- Poderíamos ter sido poupadas dessa imprecisão.
-- Definitivamente não há nada a ser apreciado aí.
Valentin surge. Olhares de través examinam seu cabelo longo, o terno de linho claro que usa e contrasta com os trajes pesados dos demais. Observações são trocadas.
-- Veja aquilo.
-- Como se estivesse em um balneário! Só faltou o chapéu palheta.
-- Mas com todo aquele cabelo fica difícil. Conhece a pessoa?
-- Não tive o desprazer de ser apresentado. Que descortesia com os anfitriões.
-- E conosco também.
Valentin encontra-se com Bilac, que justifica a ausência do retorno esperado.
-- Foi uma semana infernal.
-- Imprevistos acontecem.
-- Mas lemos o artigo: é um diligente esforço de compreender o Brasil.
-- Foi alcançado?
-- Ideias sempre precisam de arautos, porém, há na vida coisas que se dizem, mas não se escrevem; coisas que só se escrevem e outras que nem se escrevem nem se dizem, mas apenas se pensam.
-- Casa de ferreiro, espeto de pau, é isso o que quer me dizer?
-- Reflita, senhor Valentin, e me dê licença.
Sozinho, o aconselhado depreende que, se suas ideias sobre o Brasil podem ser pensadas, mas não faladas nem escritas, as reformas da cidade têm muito de encenação. Sente-se um otário por ter se envolvido no que já considera um capricho de Theodoro por exclusividades. Afinal, o Rio possui fotógrafos fazendo o que foi convidado a fazer. Não tinha porque me chamar.
Munhoz se aproxima, trajando uma sobrecasaca de lã.
-- Como tem passado?
-- Muito bem. Belo evento, não?
-- Incomparável. Tudo concorreu para o melhor.
-- Até a tarde... Azulada, sem nenhuma promessa das chuvas de verão.
-- Realmente. E fresca, não acha?
-- Agradabilíssima, responde dissimulando a sua estupefação.
-- Muito trabalho?
-- Bastante. Aliás, o seu material foi bem apreciado pela Kosmos: um diligente...
-- Esforço de compreender o Brasil.
-- Já esteve com Bilac!
-- Rapidamente.
-- Parece que chamam para o sarau. Não vai entrar?
-- Ainda não. Mas, por favor, fique à vontade.
-- Agradecido. Com sua licença.
Munhoz apressa o passo: tarde fresca! Irá se dar mal comigo!
Encostado à coluna, com nova taça de champanhe à mão, Valentin observa a sujeição dos convidados à moda dos países frios. Como suportam? De fato os presentes se vestem como os aristocratas europeus que tanto admiram. Porém, o observador só percebe o sacrifício de vestir trajes inapropriados ao verão brasileiro e não a satisfação que os convidados sentem de se diferenciar do povo com suas roupas simples, leves e arejadas. Muito menos percebe que, com seu terno, com a proposta da sua fotografia e com as críticas do seu texto, avilta crenças, fere carismas e questiona o saber daqueles de quem busca a apreciação do seu trabalho. Peixe fora d’água, desejoso de renovar a água do aquário para nele poder nadar, Valentin se dirige ao salão, onde Theodoro, após saudar os presentes, apregoa os novos tempos que se descortinam para o Brasil.
-- A reurbanização abrirá as portas de nossa cidade para as forças do progresso. Decerto que viveremos alguns desconfortos durante a execução dessa empreitada. No entanto, os suportaremos irmanados pelo apreço ao progresso, pelo valor da ordem e pela luminosidade das artes. Com esse espírito, organizamos este sarau para celebrar o lançamento da Kosmos. Primorosa em forma e conteúdo, já se tornou a publicação menina dos olhos da Capital Federal e a expressão do nosso ressurgimento como povo que quer ocupar o lugar a que tem direitos incontestáveis no convívio das grandes nações. Nesta ocasião, coube a mim a honra de anunciar os virtuosos de nossa sociedade que nos brindarão com o seu talento, num repertório que reúne solos ao piano, poesias declamadas com fundo musical, bel canto e ainda peças ligeiras para música de câmara. Senhoras e senhores, com enorme satisfação, chamo minha esposa, Catarina de Alcântara Avelar e o jornalista e poeta Olavo Bilac para abrir este sarau.
Ao som de efusivos aplausos, os virtuosos assumem suas posições. Iniciam o repertório. A melodia tocada expande os sentidos da poesia declamada.
À porta, Valentin observa a sensualidade ao piano, o prazer que parece extrair do som de cada nota, a fluidez com que evolui nos tons e semitons do bemol ou do sustenido, como se inexistisse esforço algum em tocar, apenas o deleite. Imagina-a em seus braços, em meio das espumas brancas, no azul do mar.
Virtuosos se renovam, apresentações se sucedem e a plateia aplaude o fim do sarau. Os convidados se dispersam. Catarina circula como uma brisa. Beija uma querida aqui, cumprimenta outra ali e atende à solicitação de uma caríssima mais adiante. A todas, dedica uma palavra gentil, uma escuta encantada e um sorriso doce que amplia o prazer desfrutado. Troca também olhares com Valentin. Theodoro observa de longe essa cumplicidade até que a interrompe. Conduz o amigo para uma roda onde está Rio Branco, ministro das Relações Exteriores da República brasileira, a quem trata pelo seu antigo título nobiliárquico. O barão confirma que a expedição para o Acre ainda não tem data marcada, mas acontecerá até o final do ano. Em seguida, conversam com o ministro da Guerra, que vê amplas possibilidades de pôr Valentin em contato com o major Rondon, porém, lembra que a expansão das linhas telegráficas acontece neste momento entre Corumbá e Cuiabá, e não na Amazônia. Um convidado tira Theodoro da roda. Catarina aproveita a ocasião para se aproximar. Logo mais já dança com Valentin.
-- Decidiu me levar ao mar?
-- Não me respondeu o porquê de pedir para mim.
-- O que acha?
-- Não acho. Quero ouvir sua resposta.
-- Posso ter a honra de dançar com minha mulher?
Valentin faz uma mesura e, a contragosto, entrega a anfitriã aos braços do marido.
-- Aguardava por você, sussurra Catarina no ouvido de Theodoro.
-- Já lhe disse que está maravilhosa?
-- E eu que você é o mais raro entre os raros homens do mundo?
Theodoro sorri e a faz rodopiar pelo salão, enquanto Valentin, aturdido com as intenções ambíguas de Catarina, recolhe-se ao seu aposento, sem ver o final do evento.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário