sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Capítulo Vinte e Um

INTERFERÊNCIAS


Imerso na banheira, Valentin ouve batidas na porta. Enrola-se numa toalha e se dirige à saleta. Ouve a voz de Catarina:
-- Sou eu.
-- Aconteceu algo?
-- Posso lhe falar?
-- Se preferir, posso ir ao seu encontro na sala.
-- Não é preciso.
-- Aguarde um instante e depois entre.
Destranca a porta e dirige-se para o quarto pensando no que ela quer.
Catarina espera. Seu olhar percorre a escuridão do jardim. Impacienta-se.
-- Já posso entrar?
Não ouve resposta. Penetra vagarosamente o espaço e deixa a porta aberta.
-- Estou aqui...
Observa o ambiente: a câmara fotográfica sobre uma poltrona, a mesa ocupada com material de desenho, a garrafa de vinho aberta e uma taça já servida. Procura por outra e não encontra. O que se passa com Josefa? Pelo menos três taças devem estar sempre aqui. Serve-se na usada. Abre a esmo o caderno de viagem de Valentin. A folha aberta revela o desenho de um rosto. A feição lhe parece familiar.
-- Firo o bom-tom se me apresento à vontade?
Catarina se surpreende em vê-lo vestido com uma túnica.
-- Firo o bom-tom se vejo seu caderno sem permissão?
-- Bobinha. Você pode. É uma querida.
-- Hã! - Exclama disfarçando o incômodo com a irônica imitação de si. Volta os olhos para o desenho. -- Quem é a modelo?
Valentin pega a taça da sua mão, com um olhar provocativo.
-- Você.
O corpo dela afogueia-se. Afasta-se, dissimulada.
-- Está impossível hoje. Mas o desenho é excelente.
-- Faz parte da minha coleção particular.
-- É uma honra ser tema de suas criações mais caras.
-- Sua visita faz parte da modernidade do Rio Civiliza-se?
-- Estou na minha casa, com um cavalheiro, quase parente, e a porta está aberta.
-- Admirável a sua autoconfiança.
Catarina senta-se numa poltrona. Valentin bebe de um gole só o vinho e se serve de mais. Caminha e lhe estende a taça.
-- Agradeço. Só queria saber se era bom.
-- O que não é bom no solar dos Alcântara Avelar?
-- Só você pode responder.
-- A visão do seu marido.
-- O que pensa fazer?
-- Partir.
O coração de Catarina bate forte.
-- Imagino quão difícil é resolver um impasse desse modo.
-- Dificuldade alguma. Apenas sigo em frente.
-- Movido por uma aceitação passiva.
-- Para que prolongar debates infrutíferos?
-- Não falo de debates, mas de ação.
-- Theodoro mandou você aqui?
-- Sabe que vim porque quis e para pedir que tire os retratos da cidade.
-- Não sou um delator nem me envaidece criar um cartão-postal mentiroso.
-- Que, no entanto, pode promover seus dons e lhe dar os aplausos que têm direito.
-- Prefiro ser reconhecido por outros feitos.
-- Um passo leva a outro.
-- E, nesse caso, para mais degenerações do bem.
-- Deixe de analisar tudo de modo tão amplo e profundo.
-- Inexiste estreiteza e rasura no nefasto.
-- Não pode apenas fotografar os cortiços e deixar o resto para a história julgar?
-- O presente tece a sentença de tornar a vida do povo mais ingrata.
-- Livre-se do peso do mundo.
-- Sou dado a acanhamentos que não consigo vencer.
-- Por que tanto amor ao próximo e tão pouco para com você mesmo?
Valentin se ressabia.
-- Sem sentido a sua afirmação.
-- Torne esse momento uma oportunidade, não outra fonte de desistência.
-- Não diga o que não sabe.
-- Pense então em tudo que não sei e, depois, parta se é o que quer, ainda que seja triste ver você ir embora.
-- Partidas são sempre desagradáveis.
-- Principalmente quando não as desejamos.
-- Seja clara, Catarina, o que quer dizer?
-- O momento é inapropriado.
-- Talvez não haja outro.
-- Que diferença faz, se o seu coração está fechado para ouvir o meu?
Catarina sai. Acaricia seu berloque enquanto caminha: Faça-o ficar, minha Estrela-guia.
Pela janela, Valentin observa Catarina se distanciar após tumultuar a certeza de que partir seja a decisão certa. Raia a percepção de ser um errante que sempre se move não porque enxerga algo melhor à frente, mas, sim, porque não vê na permanência a solução para seus conflitos. Com a angústia que as suas razões deploram, afasta-se da janela e prepara o seu condão de bem-estar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário