domingo, 25 de janeiro de 2015

Capítulo Quarenta e Seis

REGISTROS DE VIAGEM


Belém do Pará, 24 de março de 1904.
Há mais de uma semana, hiberno no quarto do hotel, com a sensação de ainda estar no mar. Confesso que temi a morte, a bordo do Alagoas. Morrer com a percepção de ser um inadequado da espécie é uma perspectiva tão desabonadora que me ata à vida. No entanto, sinto-me sem forças para prosseguir.
Ao longo desses dias, inteirei-me da chuva miúda e diária de Belém. Da janela comecei a desvendar a cidade: as cumeeiras dos telhados, as torres altas das igrejas, as frondosas mangueiras das ruas largas, o céu nublado em prata. Desse meu solitário posto de observação, Belém se mostra caiada em branco molhado pelo céu e banhada pelo rio quase mar, sem morros a modular a paisagem. É amplidão de terra, água e céu. Majestosa até para meus olhos descorçoados de se iludir com o belo. No aconchego do quarto me acostumo com a nova realidade na qual devo me mover.
Enviei um recado para o senhor Andreas Schaeffer, secretário do Dr. Emílio Goeldi. Preocupado com as notícias da minha indisposição, veio me visitar e trouxe o médico Carlos Matias. Pessoas gentilíssimas. Dr. Matias acha que a gripe agravou a mareação, ou vice-versa; fez várias recomendações para eu me recuperar e como devo me cuidar na floresta. Evite o álcool, disse-me. Nem precisava. Já plaino suspenso em mim mesmo. Alcancei o entorpecimento em plena abstemia imposta pelo mal-estar. Valer-me de qualquer remédio para abrandar minhas tristezas é correr o risco da minha mente desatar de vez do meu corpo. Não quero pagar para ver.
Para a expedição à Amazônia, Dr. Matias receitou doses diárias de quinino e aconselhou o uso de bota o tempo todo, camisa fechada para dentro da calça, meia sobre a barra da calça, para vedar o corpo e impedir os piuns, durante o dia, e os carapanãs, durante a noite. Recomendou-me dormir sempre protegido por um mosquiteiro e acender piretros para afugentar os voadores da febre amarela e malária. Disse que a fumaça narcotiza, tonteia o carapanã, mas não o mata. Posso imaginar o delírio dessa criatura de Deus. 
O senhor Schaeffer confirmou minha suspeita do Doutor Goeldi já ter ido para o seminário na Europa. A surpresa foi saber que os meus telegramas chegaram e foram respondidos. Sei lá porque não os recebi. Decidimos falar sobre as possibilidades da minha expedição quando me sentir melhor.

 28 de março de 1904.
Hoje me empurrei para fora do quarto. Tomei um bonde e passeei a esmo pela cidade. Acolhi Belém. A cidade possui praças com belos jardins, ruas amplas e arborizadas. Navios de muitas nações movimentam o porto e barcos à vela deslizam pelos rios que contornam a cidade. Diversas casas comerciais estrangeiras estão presentes e a população em grande parte revela traços indígenas.
Fui ao Museu Goeldi. Tudo lá é exuberante e grandioso: espaço, árvores, folhagens, vitórias-régias. Ali a natureza se mostra organizada somente com o seu melhor. Um sonho aberto ao público. O nome do Museu é um reconhecimento em vida ao seu diretor, e a instituição possui uma história de realizações de brasileiros e suíços aqui radicados. Bem-aventurados aqueles que se dedicam a um trabalho que dá sentido a sua vida e ainda contribuem para engrandecer a experiência humana.
Novamente eu e as minhas questões. Mas, dessa vez, recuso-me a ter expectativas com relação ao meu trabalho. Meus editores terão o que querem sem um pensamento destoante do oficial. Chega de ser tratado como um sujeito que, no meio de uma missa, arranca a roupa e nu quer consagrar o sangue do desatino que se derrama sobre nós. 
Com Schaeffer, analisei dois roteiros de viagem. No primeiro, sigo pelo rio Purus rumo ao sul para me integrar a uma expedição do Museu que está em algum ponto dessa região. No segundo, viajo pelo Rio Negro em direção ao noroeste da Amazônia com a expectativa de me encontrar com Theodor Koch-Grünberg, um etnólogo alemão que estuda indígenas não aculturados. Outro Theodoro em minha vida. Schaeffer o conheceu em sua passagem por Belém do Pará, no ano passado. Esta opção me atrai em razão do estudo do etnólogo ser o objeto da minha reportagem, ainda que possa haver desencontros e eu acabe fazendo o percurso sozinho. Estou sem pressa para decidir e partir. Só de pensar em embarcar, sinto calafrios.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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