domingo, 11 de janeiro de 2015

Capítulo Dois

DA BENZEÇÃO


-- Ora iê iê ó! Salve, mamãe Oxum! Acode essa filha, doce senhora! Derrame sobre ela suas graças, seu axé.
Quem pede é Divina Negrão, a benzedeira. Tem cinquenta e poucos anos, usa um turbante branco, colar de contas coloridas, bata de algodão e saia de chita amarela. Incensa o corpo de Catarina com ervas que fumegam em uma gamela.
Josefa, criada do solar e amiga de Divina, com quem regula a idade e a condição de ex-escrava, molha um feixe de arruda no líquido de uma bacia sobre a borda do poço. Entrega o feixe para a benzedeira, que lhe dá a gamela e se volta de novo para Catarina, em quem borrifa gotas da infusão.
-- Abençoe essa madre, mamãe Oxum. Abençoe. Cure males e quebrantos. Ajude essa filha a cumprir seu destino de mulher.
Salve Rainha, Mãe misericordiosa, vida, doçura, esperança minha! A vós rogo, suplico, ó clemente, doce e piedosa Virgem Maria, dê-me a graça de ser mãe.
Catarina reza fervorosamente. Há muito quer ser mãe. Não concebe um casamento sem filhos, uma existência sem descendentes, nem entende sua dificuldade para engravidar, se é tão saudável e capaz de sentir o que de mais sublime uma mulher pode conhecer nas doces comunhões conjugais. Por que então seu ventre recusa o fluido do amor de Theo? Tenta realizar seu intento até com os recursos da fé. Não desdenha de nenhuma. É religiosa de um modo peculiar. Da mãe, herdou a devoção a Virgem Maria e, do pai, o entendimento de Deus como a própria magia, a Substância Primordial de onde o universo se fez e pôs em marcha o surgimento da vida.
Cresceu entre os cultos católicos e as crenças dos escravos da família, com as quais conviveu mais de perto, quando se mudou, menina ainda, da cidade para a fazenda da Divisa, uma grande propriedade no estado do Rio de Janeiro, que adentra as terras de São Paulo e de Minas Gerais. Esses foram tempos de farta liberdade: de pés no chão, de banhos em poço de cachoeira, de conversas ao redor da fogueira e de brincar de rainha amada e maravilhosa com o séquito mirim formado pelos irmãos e pelos filhos dos cativos. Foram tempos também de iniciação nos estudos, ministrados pelos pais, e de longas horas ao piano, que ama e toca muito bem.
Catarina acaricia o ventre, imaginando-se grávida. De repente, sente algo se desprender dentro. Assustada, pressiona uma coxa na outra e se agacha. No gesto, o xale desliza para o chão e a camisola se prende por entre as pernas. Divina para o ritual. Josefa encoraja a patroa a se erguer. Corpo ereto, a veste expõe a mancha da menstruação. Descorçoada, Catarina mira as mulheres e Divina clama:
-- Pelo poder de Deus, de Oxalá e de mamãe Oxum, eu te degrado enfermidade para a ilha de enxofre do mar coalhado, pelo tempo de nove luas, até essa madre dar à luz; porque eu sou a benzedeira, a senhora, a curandeira.
A percepção lampeja em Catarina: nem tudo está perdido. O ritual não acabou... Posso tentar também o banho de mar... Começa a girar ao redor de si, como fazia quando criança. Se, no passado, rodava para explorar a sensação da vertigem, neste instante cria o movimento para desvencilhar-se da decepção e recuperar a esperança da qual não quer se apartar.
Divina enxerga na gira a incorporação de um orixá. Põe-se a dançar, com volteios de um lado para outro, quase parada no mesmo lugar.
-- Epa hey oyá! Salve, Iansã! Junte sua força à de mamãe Oxum. Afaste com seus ventos o mal que aflige essa mulher. Dê a ela o rebento que tanto quer.
Catarina se deixa cair no chão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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