terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Capítulo Onze

PROSA REVELADORA


Assuntos amenos são tratados durante e depois do jantar, para alívio de Catarina. Estranhou Theodoro ter comentado temas sensíveis da reforma urbana sem esperar Valentin se ambientar com a realidade local. Mas como o marido recuperou a diplomacia que tanto a fascina, tranquilizou-se com a ocorrência e, neste instante, traz à baila um tema que pode manter a conversa em território aprazível e sabe que é de interesse dele.
-- Theo, conte do sarau que faremos.
-- Um pequeno evento para celebrar o lançamento da revista Kosmos.
-- Irá gostar de conhecer os editores.
-- E também de colaborar com eles.
-- Sempre pensando em tudo.
-- Por que não? A revista é uma oportunidade valiosa para a sua rentrée no Rio.
-- E não deixa a desejar a nenhuma das melhores de Paris. Vou pegar o primeiro exemplar que guardamos para você.
-- Obrigado.
-- Que tal expor suas fotografias da cidade no sarau?
-- Não são muitas intenções para um único evento?
-- Mas convergentes. Vamos expor plantas e croquis das melhorias da reforma.
-- Uma ideia original.
-- De Catarina.
Valentin aprecia a informação e procura se inteirar do trabalho.
-- Que tipo de fotografias quer ter neste momento?
-- Tudo que mostre porque somos chamados de túmulo dos estrangeiros.
-- Ora, por que escancarar as chagas?
-- Resistências! Resiste-se até as medidas de saneamento.
-- As epidemias não são suficientes para convencer da necessidade?
-- Coisas da oposição – e de espíritos arcaicos. 
-- E a imprensa?
-- Abundam críticas e falta a percepção de que os desconfortos das demolições são um mal necessário rumo ao progresso e à civilização.
-- Muito virá abaixo?
-- Sim, não temos escolha. O porto está obsoleto, as ruas estreitas estrangulam a cidade, o trafego de cargas é lento e o capital internacional revoa longe daqui.
-- Medidas para apoiar a população que será desalojada?
-- Para os mais humildes. Estamos em tratativas com os empreiteiros para a construção de habitações populares.
-- Melhor fotografar essas obras e mostrar melhorias a caminho que propagandear mazelas conhecidas por todos.
-- Excelente sugestão. Faremos isso por época da inauguração.
-- Por que não já, na fase da construção?
-- Como disse, estamos em tratativas. E pode haver demora.
-- Não há como o governo assumir de imediato uma parte?
-- Não há fundos para fazer tudo de uma vez e o compromisso do presidente é findar o mandato com o novo traçado urbano pronto e a reforma do porto em fase adiantada. Assim, o bota-abaixo vem primeiro.
Valentin não gosta de saber desse planejamento que lhe soa como um descaso do governo com os despejados. Também não gosta de entender que Theodoro lhe omitiu esse particular durante as cartas que trocaram para tratar do trabalho. Controla-se para não polemizar já na partida da sua estada no solar.
-- Quando acha que terminarão as tratativas para as construções?
-- Ainda é cedo para eu arriscar um palpite. Por quê?
-- Compromissos me esperam na Amazônia e gostaria de fotografar as novas moradias dos despejados.
-- Não seja por isso. Volta depois para fechar com chave de outro o trabalho.
-- Uma possibilidade, responde se sentindo mais confortável com a perspectiva.
-- Pronto para arregaçar as mangas e entrar para a história?
-- Tão logo tenha tomado um bom banho de mar.
-- Uma prescrição médica?
-- Não. Puro deleite.
Theodoro abre um sorriso forçado e o coração de Catarina dispara. Retornava quando ouviu Valentin indagar sobre as demolições. Preferiu esperar, atrás da porta, o desenrolar da prosa para entrar. Considera o destino dos despejados um assunto delicado e não quer expor sua opinião ao julgamento alheio. São tantos os pobres! Reproduzem-se com uma facilidade absurda que se tornam um problema insolúvel. Não há caridade que dê conta desse exército de sofredores e minore a fadiga da compaixão. Razão pela qual aceita o argumento dos reformistas de que os arrabaldes devem ser habitados pelos despejados. Na cidade, só devem residir os que podem sujeitar-se aos preceitos da higiene e do bom-tom. Então, quando a conversa se mostrava favorável ao seu retorno, foi surpreendida pelo tema polêmico: o banho de mar. Não quis constranger Theodoro. À escuta, aguarda novo momento para entrar.
-- Alguma prescrição médica?
-- Puro deleite – e merecido depois de tão longa travessia.
-- O mesmo excêntrico de sempre. Evite exposições para não dar o que falar.
-- Não se preocupe. Com tanta modernidade a caminho, logo os banhos de mar serão liberados para o prazer.
Os olhos de Catarina brilham.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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