PROSA REVELADORA
Assuntos amenos são tratados durante
e depois do jantar, para alívio de Catarina. Estranhou Theodoro ter comentado
temas sensíveis da reforma urbana sem esperar Valentin se ambientar com
a realidade local. Mas como o marido recuperou a diplomacia que tanto a
fascina, tranquilizou-se com a ocorrência e, neste instante, traz à baila um tema
que pode manter a conversa em território aprazível e sabe que é de interesse dele.
-- Theo, conte do sarau que
faremos.
-- Um pequeno evento para
celebrar o lançamento da revista Kosmos.
-- Irá gostar de conhecer os
editores.
-- E também de colaborar com
eles.
-- Sempre pensando em tudo.
-- Por que não? A revista é uma
oportunidade valiosa para a sua rentrée
no Rio.
-- E não deixa a desejar a
nenhuma das melhores de Paris. Vou pegar o primeiro exemplar que guardamos para
você.
-- Obrigado.
-- Que tal expor suas fotografias
da cidade no sarau?
-- Não são muitas intenções para
um único evento?
-- Mas convergentes. Vamos expor
plantas e croquis das melhorias da reforma.
-- Uma ideia original.
-- De Catarina.
Valentin aprecia a informação e
procura se inteirar do trabalho.
-- Que tipo de fotografias quer
ter neste momento?
-- Tudo que mostre porque somos
chamados de túmulo dos estrangeiros.
-- Ora, por que escancarar as
chagas?
-- Resistências! Resiste-se até
as medidas de saneamento.
-- As epidemias não são
suficientes para convencer da necessidade?
-- Coisas da oposição – e de
espíritos arcaicos.
-- E a imprensa?
-- Abundam críticas e falta a
percepção de que os desconfortos das demolições são um mal necessário rumo ao
progresso e à civilização.
-- Muito virá abaixo?
-- Sim, não temos escolha. O
porto está obsoleto, as ruas estreitas estrangulam a cidade, o trafego de
cargas é lento e o capital internacional revoa longe daqui.
-- Medidas para apoiar a
população que será desalojada?
-- Para os mais humildes. Estamos
em tratativas com os empreiteiros para a construção de habitações populares.
-- Melhor fotografar essas obras e mostrar melhorias a caminho que propagandear mazelas conhecidas por todos.
-- Excelente sugestão. Faremos isso por época da inauguração.
-- Por que não já, na fase da
construção?
-- Como disse, estamos em
tratativas. E pode haver demora.
-- Não há como o governo assumir
de imediato uma parte?
-- Não há fundos para fazer tudo
de uma vez e o compromisso do presidente é findar o mandato com o novo traçado
urbano pronto e a reforma do porto em fase adiantada. Assim, o bota-abaixo vem
primeiro.
Valentin não gosta de saber desse planejamento que lhe soa como um descaso do governo com os despejados. Também não gosta de entender que Theodoro lhe omitiu esse particular durante as cartas que trocaram para tratar do trabalho. Controla-se para
não polemizar já na partida da sua estada no solar.
-- Quando acha que terminarão as
tratativas para as construções?
-- Ainda é cedo para eu arriscar
um palpite. Por quê?
-- Compromissos me esperam na
Amazônia e gostaria de fotografar as novas moradias dos despejados.
-- Não seja por isso. Volta
depois para fechar com chave de outro o trabalho.
-- Uma possibilidade, responde se
sentindo mais confortável com a perspectiva.
-- Pronto para arregaçar as
mangas e entrar para a história?
-- Tão logo tenha tomado um bom
banho de mar.
-- Uma prescrição médica?
-- Não. Puro deleite.
Theodoro abre um sorriso forçado
e o coração de Catarina dispara. Retornava quando ouviu Valentin indagar sobre
as demolições. Preferiu esperar, atrás da porta, o desenrolar da prosa para
entrar. Considera o destino dos despejados um assunto delicado e não quer expor
sua opinião ao julgamento alheio. São
tantos os pobres! Reproduzem-se com uma facilidade absurda que se tornam um
problema insolúvel. Não há caridade que dê conta desse exército de sofredores e
minore a fadiga da compaixão. Razão pela qual aceita o argumento dos
reformistas de que os arrabaldes devem ser habitados pelos despejados. Na
cidade, só devem residir os que podem sujeitar-se aos preceitos da higiene e do
bom-tom. Então, quando a conversa se mostrava favorável ao seu retorno, foi
surpreendida pelo tema polêmico: o banho de mar. Não quis constranger Theodoro.
À escuta, aguarda novo momento para entrar.
-- Alguma prescrição médica?
-- Puro deleite – e merecido
depois de tão longa travessia.
-- O mesmo excêntrico de sempre.
Evite exposições para não dar o que falar.
-- Não se preocupe. Com tanta modernidade
a caminho, logo os banhos de mar serão liberados para o prazer.
Os olhos de Catarina brilham.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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