domingo, 11 de janeiro de 2015

PARTE II - Capítulo Um

NO MEIO DA NOITE

Os morros são mais negros em noites claras como esta. Contrastam com o escuro azulado do espaço e recortam os descampados do alto com as suas silhuetas sobranceiras. São também singulares. Formas que evocam sentidos. De poder, com o íngreme da sua solidez rotunda. De sensualidade, com a curva alongada da sua orla. De agonia, com o alcantilado do seu cume: um feixe de pontas espichadas, verdadeiro ponto de fuga para as alturas onde o sol nasce. Esses ao fundo da paisagem separam o arraial de Copacabana do bairro de Botafogo. Nessa região nascida à beira da enseada cujo nome a batiza, a Rua São Clemente corre como um rio e é endereço de um solar, onde um casal está deitado num dos quartos.
A mulher se levanta num movimento cuidadoso. O barrado da camisola desliza do leito e cobre as pernas, enquanto o pingente em formato de estrela percorre pelo elo a fina corrente ao redor do pescoço e pende rente ao peitilho da roupa. Catarina aparenta ter menos que seus trinta anos. O corpo é esguio, os cabelos, longos e ruivos, e o ar, vivaz. Olha para o marido: Não acordará, acha. Calça-se, pega um xale e sai.
Sem sobressalto, Theodoro abre os olhos. Espera alguns minutos, levanta-se e também sai. Mais baixo do que alto, tem trinta e seis anos. Caminha pelo corredor e entra num aposento, onde abre a janela no escuro. Vê a luz de um candeeiro que se desloca por entre as árvores do fundo da propriedade. Afasta-se e surge no quintal. Das sombras da noite, aparece Abdias, empregado de confiança, alguns anos mais velho, que lhe confirma o paradeiro da mulher.
-- Foi com Josefa para o poço. A benzedeira já está lá.
-- Viram você?                                         
-- Não.
-- Os outros?
-- Dormindo ou de folga.
-- Vigie a distância. Dona Catarina não deve ser incomodada.
-- Não será. 
Abdias volta para as sombras da noite e Theodoro para o quarto, certo de que o melhor a fazer é ignorar a benzeção, que ocorre longe de olhos estranhos. 


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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